A decisão



Quando me vi longe o bastante para que não fosse notada, comecei a correr. O plano era inclinado e eu já avistava a sombra gigante do Salgueiro Lutador cortando a planície. Hagrid, o guarda-caças de Hogwarts, estava próximo a orla da Floresta Proibida, entretido em cortar lenha, provavelmente para sua cabana. Procurei passar do lado oposto para que ele não me visse. Mas eu sabia que Remus ainda me seguia, e quando parei ao pé da grande árvore e procurei por um galho para paralisá-la, ele parou ao meu lado sem dizer nenhuma palavra. Os fios ruivos voavam sobre meu rosto e a bolsa que eu carregava já estava no chão, aberta, os livros caídos ao lado dela. As lágrimas insistiam em escorrer pela minha bochecha, quentes, grossas, infalíveis, enquanto eu procurava em vão escondê-las.

Remus recolheu meu material, guardando-o com cuidado dentro da bolsa. Pegou um galho atrás de algumas pedras cobertas de musgo que ali ficavam e, sem palavras, ofereceu-se para paralisar o Salgueiro. Olhei para ele e dei de ombros. Pude notar uma expressão preocupada em seu semblante. Ao mesmo tempo em que me sentia bem com aquela sensação de proteção, ainda imaginava que Remus era um dos melhores amigos de James, e meu coração estava confuso e hesitante em aceitar qualquer ajuda que viesse dele.

Eu só conseguia pensar em você, e em como as coisas tinham chegado àquele ponto entre nós. Eu sempre julguei que seu mistério e seu afastamento fossem provenientes de algum medo bobo em relação a se entregar, mas nunca imaginaria que você estivesse alimentando um preconceito em silêncio, algo que tinha dito anteriormente que não faria a menor diferença entre nós. Eu me amaldiçoava e me corroia por dentro por ter acreditado nas palavras de um menino que nada sabia da vida, e por tê-las carregado comigo e utilizado-as para justificar todos os seus erros. Sentia raiva de você, mas muito mais de mim mesma, enquanto caminhava pelo corredor abafado da passagem secreta que levava à Casa dos Gritos, com Remus em meu encalço.

Entrei na casa coberta de pó e escuridão, cortada apenas por pequenos raios de luz que entravam pelas frestas das janelas fechadas com pedaços de madeira bruta. Era verão, mas o local estava frio e deserto, o que fez com que um arrepio corresse pela minha espinha. Joguei-me no chão de qualquer forma, próxima à lareira. Com um aceno da varinha, Remus acendeu-a e se sentou logo à minha frente. Eu não levantei o rosto para encará-lo, pois sentia vergonha das lágrimas que escorriam por minhas bochechas e manchavam minhas sardas. Lily Evans, a sempre tão forte e corajosa grifinória, naquele momento chorava lágrimas de sangue por causa de um sonserino de alma estragada e coração de gelo, para quem a pureza do sangue fazia toda a diferença.

Não sei quanto tempo ficamos ali, sem sequer nos mexermos. Eu abraçava as pernas e mantinha a cabeça afundada entre os joelhos, os cabelos escondendo o rosto. Sei que Remus não falava em respeito ao meu silêncio, e passei a me sentir confortável com a presença dele. Já não pensava mais que ele era o amigo do James, e sim que era aquele garoto eternamente amaldiçoado, que não tinha culpa de ser quem era, mas que teve sorte de ter encontrado em Hogwarts pessoas que não se importavam com isso. Eu também não me importava, e passei a me sentir egoísta em ter corrido justo para o esconderijo dele, que tinha problemas muito maiores que os meus próprios para esconder e pelos quais chorar. No entanto, era ele ali a me dar apoio, e me senti infinitamente diminuída. Quando as lágrimas secaram e restou apenas o peso no coração foi que eu consegui falar:

- Estou cansada, Remus...

- Eu imagino – ele disse, e então, com cuidado, levantou o meu queixo, da mesma forma que tentei tocá-lo da primeira vez em que nos encontramos naquela casa e ele se retraiu. Naquele momento, aquele gesto era quase como um pedido de desculpas por parte dele. – Mas, veja bem, Lily, há algo que eu preciso te dizer, embora eu ache que talvez não sejam exatamente palavras de consolo.

- Não se preocupe, Remus – eu prossegui, encarando os olhos castanhos que me fitavam, o semblante triste daquele que tinha dividido comigo o pior dos seus segredos sem me questionar. – Acho que já estou destruída o bastante para agüentar o que vier.

- Bom – Remus começou, de maneira um tanto quanto reticente, como se escolhesse cuidadosamente as palavras que empregaria em seguida – Eu acredito que o fato de você ser a garota fantástica, livre de preconceitos e carinhosa que é não explica de todo a maneira como você defendeu o Snape hoje. E nem esse monte de lágrimas que acabei de te ver derramar. Sei que você e Snape são amigos, mas...

- Remus... – eu toquei a mão dele de leve, e ele parou de falar. – Eu sei onde você quer chegar. E eu sei que, para os poucos que me conhecessem, talvez tenha ficado evidente que há muito mais que amizade entre Severo e eu.

- Esse é o meu medo, Lily. Eu tenho ouvido coisas a respeito de Snape que me fazem temer por você. Não estou aqui como amigo de James, e nem tampouco para te dizer o que você deve ou não deve fazer. Tenho certeza de que você é capaz de definir sozinha o que é certo e errado. Mas eu queria dizer só uma coisa, Lily, como um amigo, não como um dos Marotos.

E ele se calou. Era como se pedisse minha permissão para prosseguir, e eu hesitei por um momento. Não sabia exatamente se queria ouvir as palavras que viriam a seguir, mas quando dei por mim, já havia acenado a cabeça de forma a instigar Remus a prosseguir. Então, ele falou:

- Vocês estão em caminhos opostos, Lily. Nada vai mudar o fato de que cada um de vocês já escolheu seu lados, e certamente, não foi o mesmo. Sendo quem você é, será impossível aceitar o que Snape se torna a cada dia. Ele fatalmente será um Comensal da Morte e nós teremos que combatê-lo.

Mordi o lábio inferior para tentar conter uma última lágrima que rolou pelo meu rosto. Imediatamente, Remus a aparou, e sorriu para mim. Talvez ele soubesse como eu me sentia. Talvez também tivesse amado alguém à beira da loucura, alguém que jamais pudesse aceitar quem ele era. Eu não sabia. Mas agradeci intimamente por ele estar ali quando me deixei abraçar e chorei ainda mais.

Voltamos para o Castelo com o sol se pondo no horizonte. Remus não dizia nada, e eu preferi ficar em silêncio. Entramos na sala comunal juntos, e, imediatamente, James se levantou da poltrona próxima à lareira, onde estava sentado esperando por mim, na companhia de Sirius e Peter. Mas não havia nada mais daquela pose arrogante de peito estufado, nem da voz num tom mais grave que ele havia assumido enquanto estava diante de você. Ele se aproximou com uma expressão preocupada, e parou diante de mim sem conseguir articular direito as palavras que proferia:

- Lily, eu... Quer dizer, nós... Digo, eu e Sirius... Hã... Você está bem?

Bem? O que era estar bem? Naquele momento eu imaginava que jamais saberia novamente o significado daquela palavra. Minha alma estava perturbada, recortada em mil pedaços como num impossível quebra cabeças, ou como cacos de vidro que me cortavam ao menor movimento. Não consegui responder nada a James, mas fiquei surpresa quando percebi que seus olhos ficaram ligeiramente molhados por debaixo das lentes dos óculos de aro grosso.

Virei as costas e subi para o dormitório. As meninas que dividiam o quarto comigo fizeram silêncio quando eu entrei, e mantiveram seus olhos pousados em mim até que eu tivesse tirado os sapatos, vestido minha camisola, deitado-me na cama e fechado as cortinas vermelhas. Olhos mais curiosos que piedosos. Eu queria ficar sozinha. Não queria nenhuma daquelas garotas me perturbando com perguntas, com falsos consolos ou palavras bonitas que não poderiam me fazer sentir melhor. Estava cansada e só queria acalmar meu coração, deixar de pensar em você e esquecer tudo o que você havia representado para mim ao longo daqueles cinco anos nos quais evoluímos de verdadeiros amigos para dois desconhecidos que eventualmente se beijavam. A ilusão tinha se tornado pó, tinha sido esmigalhada pelas duas palavras que traziam um significado implícito muito maior que qualquer um poderia imaginar. Saídas de sua boca em direção aos meus ouvidos, representavam uma mentira levada por toda uma vida que se desfazia. Uma mentira que era justificativa para meus atos e nossos beijos. Uma mentira que eu havia carregado como verdade no coração.

Em meios às lágrimas e à dor, o sono veio como um anjo negro que me carregou para mundos desconhecidos, mas nos quais ainda havia muito o que temer.

- Lily!

Eu me sobressaltei ao escutar a voz de Mary. Sonhava com um raio de luz verde que invadia minha visão e tomava conta do local onde eu estava. A ele se seguia uma escuridão opressora, cortada apenas por um grito desesperado que parecia vir da sua garganta, como se você estivesse sofrendo um mal irreparável que caminharia ao seu lado para o resto da vida. Por isso, ao ouvir Mary chamando o meu nome, agarrei o pulso de minha colega com força e abri os olhos, assustando-a. Depois de se afastar um pouco de minha cama, ela prosseguiu:

- O que aconteceu com você, Lily? Está péssima! Seus olhos estão muito vermelhos e... – ela se deteve quando viu a minha expressão desaprovadora no rosto. Então prosseguiu - Eu e as meninas estamos preocupadas com você desde hoje à tarde, quando você se meteu nas brigas dos Marotos com aquele seboso do Snape. Não consigo entender o que você tinha na cabeça!

- Nada, Mary – eu falei, de mau humor. – Por que você me acordou?

- Ah! Então... – ela hesitou, deixando os olhos rolarem para as outras meninas em busca de apoio. Voltou-se novamente para mim quando falou - É o Snape. Ele está lá embaixo, na porta da sala comunal – meu coração começou a protestar furiosamente no peito e um nó se fez em minha garganta. – Eu vim te avisar porque a Mulher Gorda não quer deixar ele entrar, claro, mas ele insistiu que alguém precisava dizer a você que ele estava lá.

- Diga a ele que eu não quero vê-lo – eu virei o rosto antes de completar – Nunca mais.

- Ele disse que vai dormir lá fora se você não descer. Snape vai se meter numa confusão se o Filch pegá-lo. Isso se o James não for até ele primeiro e expulsá-lo a pontapés. Vá falar com ele, Lily!

Observei os olhos azuis de Mary. Você e seus amigos tinham deixado-na por uma semana na enfermaria depois de testar nela um feitiço horrível, que a tinha quase cortado ao meio. Mary tinha perdido muito sangue, e algumas das cicatrizes permaneciam ainda em seu rosto. No entanto, lá estava ela na beira da minha cama, me dizendo para ir conversar com você. Aquilo era o que pessoas como nós, grifinórios, faríamos. Eu me questionava se você faria o mesmo por qualquer um que fosse. Já não era mais capaz de responder.

Levantei-me e rumei para a porta do quarto. Mary ainda questionou, quando me viu saindo descalça e de camisola pelo corredor:

- Você não vai trocar de roupa?

- Não. Eu não pretendo demorar – respondi, e abandonei o dormitório, alcançando rapidamente as escadas.

Havia ainda alguns poucos alunos aproveitando a noite antes de se recolherem para suas camas. Alguns jogavam Snap Explosivo em um canto, e sorriam diante de uma jogada mais ousada, divertindo-se. Eu imaginei se algum dia seria novamente capaz de sorrir com o coração. Não sabia se conseguiria colar todos os pedaços que você tinha feito questão de quebrar.

Saí pela porta da sala comunal como se fosse um fantasma. Os fios de cabelo vermelho completamente despenteados caíam pelos meus ombros, contrastando furiosamente com o branco da minha pele. Eu tinha consciência de estar com o rosto inchado e os olhos vermelhos de tanto chorar, mas você não estava em melhor situação. Seus cabelos estavam ainda mais oleosos do que o normal, e seu rosto pálido estava manchado. Ao me ver, seus olhos negros se acenderam, como se apenas a minha visão ainda fizesse alguma diferença para você, como se minha presença ainda pudesse fazer seu coração bater mais forte. Sua voz murmurou, rouca, como se não fosse utilizada há muito tempo:

- Lily!

- O que você faz aqui? – respondi, fria como gelo.

- Eu vim dizer que sinto muito – e você estendeu os braços, como se procurasse me abraçar. Imediatamente eu me afastei, com repulsa no olhar, e cruzei os meus braços diante do corpo para dizer:

- Eu não estou interessada.

- Eu sinto muito! – você tinha aumentado o tom de voz, e quase suplicava por perdão. Mas eu não queria. Eu não era capaz de perdoar.

- Guarde seu fôlego – eu disse, não te deixando prosseguir com aquele doloroso pedido de desculpas. – Eu só saí porque a Mary me disse que você pretendia dormir aqui.

- Eu iria. Eu teria dormido. Eu nunca pretendi te chamar de sangue-ruim, só que...

- Saiu? – eu não sentia pena de você, e não estava disposta a aceitar sua explicação. Era impossível que você não compreendesse o mal que havia feito, não entendesse que destruiu meus sonhos e meus sentimentos de uma maneira fria e cruel, sem sequer pensar no que fazia. – Agora é muito tarde. Eu fiquei arranjando desculpas para o seu comportamento por anos. Nenhum dos meus amigos consegue entender por que eu ainda falo com você. Você e seus preciosos amigos Comensais da Morte – eu estava nervosa, e deixava transparecer na minha voz a decepção e o desgosto que sentia em relação à sua pessoa e no que você havia se transformado. - Você nem percebe isso! Nem percebe que é isso que estão se preparando para ser! Você mal pode esperar para se reunir a Você-Sabe-Quem, não é mesmo?

Esperei pela sua resposta. Queria que dissesse algo, que continuasse pedindo desculpas, talvez que estivesse disposto a mudar de lado. Era o meu último recurso, o suspiro desesperado de um sentimento prestes a ser completamente morto e enterrado. Observei o contorno de seus lábios se abrirem, como se estivessem prontos a dizer o que eu queria, e por um segundo quase parei de respirar. Mas você se calou. Você não disse. E eu fui obrigada a assassinar a sangue frio o que restava dos meus sentimentos por você. Então eu disse, derrotada:

- Eu não posso mais fingir. Você escolheu seu caminho – engoli em seco antes de prosseguir, utilizando as palavras que Remus havia dito na Casa dos Gritos – E eu escolhi o meu.

- Não, Lily, escute! Eu não pretendia...

- Chamar-me de sangue-ruim? Mas você chama a todos os que nasceram trouxas como eu de sangue-ruim, Severo. Por que seria diferente comigo?

Eu olhei dentro de seus olhos mais uma vez. Vi neles o pânico e a dor de quem estava se perdendo sem nada poder fazer. Mas eu sabia que você podia, se realmente quisesse. Enxerguei sua alma e seu coração protestando quanto ao que estava prestes a fazer. No entanto, não me deixei perder no negro dos seus olhos novamente. Eles me lembravam o campo de lírios. Mas o lírio negro morria naquele momento. E não poderia voltar nunca mais. Tinha sido a sua escolha.

E eu virei as costas para você, entrando novamente no dormitório e sentindo o gosto de sal e dor que me tomava novamente a face.

Morto. O lírio negro estava morto.


Don't speak
(Não fale)

I know what you're thinking
(Eu sei exatamente o que você está dizendo)

I don't need your reasons
(Eu não preciso das suas razões)

Don't tell me 'cause it hurts
(Não me conte porque machuca)


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