A sangue-ruim
Ainda nos beijamos algumas poucas vezes naquele ano, escondidos pelos sólidos muros do castelo, quase sempre por iniciativa minha em algum momento de fraqueza. Você cansou de me questionar o que acontecia cada vez que eu resolvia me atirar em seus braços quando encontrava uma pequena oportunidade, ao final de uma aula de Poções ou num encontro furtivo pelos corredores. Eu não te explicava nada. Apenas buscava seus carinhos, o toque quente dos seus lábios, e depois saía correndo, quase tão vermelha quanto os meus próprios cabelos, o coração palpitando dolorosamente no peito e uma lágrima salgada escorrendo pela bochecha. Éramos assim, cheios de mistérios. Você cada vez mais envolvido nos seus segredos, e eu aprendendo contigo. Havia pouca conversa para nós naqueles dias, cada vez mais diferentes que nos tornávamos um do outro.
Você sabia que eu andava mais na companhia dos Marotos, que você tanto odiava. Eu sabia que você não largava Mulciber e Avery, e só tinha dispensado Lucius, a figura de seu quase mentor, porque ele havia concluído os estudos em Hogwarts. Por todos os cantos do mundo bruxo o que se ouvia falar era que Aquele-que-não-deve-ser-nomeado continuava avançando em seu intento de habitar a face da Terra apenas com puros-sangue. A elite do Departamento de Aurores trabalhava duro para tentar capturar os seguidores do bruxo das trevas, que, já naquela época, intitulavam-se Comensais da Morte, uma alusão sinistra ao fato de devorarem a vida daqueles que se atreviam a cruzarem seus caminhos. Eles deixavam um rastro de destruição por onde passavam. Eu tinha calafrios quando ouvia falar deles, e temia por você.
A aproximação dos exames para obter os Níveis Ordinários em Magia tinha nos afastado sensivelmente. Raramente eu o procurava, pois me concentrava em estudar na biblioteca com Remus até Madame Pince nos expulsar aos berros, e então continuávamos na sala comunal. Algumas vezes Peter, Sirius e James nos acompanhavam, mas eu ficava visivelmente irritada quando isso acontecia. A duplinha Sirius e James era incapaz de se manter calada e concentrada por muito tempo nos estudos, e a qualquer sinal de uma possível confusão à vista, Peter também se dispersava com eles. Às vezes Remus sorria de lado, acho que tentando esconder de mim o fato de que se divertia diante das piadas e comentários totalmente alheios às matérias propostas para os NOM´s. Eu abanava a cabeça e tentava me controlar, mas geralmente acabava a noite emburrada, brigando com James por qualquer motivo idiota.
Já nessa época ele tinha intensificado seus planos de conseguir um encontro comigo em Hogsmead, ou seja, reforçava o convite de todas as maneiras mais criativas e imaginativas possíveis a cada oportunidade que julgava ter durante uma aula particularmente chata (para ele) ou um intervalo no qual ele não estivesse fazendo nada e trombasse comigo pelos corredores. Ao mesmo tempo em que eu me irritava com o jeito insistente e convencido de James, no fundo aquele jogo me divertia. James era bonito, um bruxo talentoso, embora absolutamente desligado dos estudos, e tinha verdadeira aversão às Artes das Trevas, exatamente como eu. Apesar de ser metido, e um pouco mimado por ser filho único, James tinha bom coração e vinha me mostrando isso a cada dia, mal sabia ele, na relação que mantinha com Remus e os outros Marotos.
Porém, o nível de estresse que me aguardava naquela tarde faria com que algumas coisas mudassem para sempre. Eu tinha passado os últimos meses em intensa preparação para os exames e tirei a maioria deles de letra, embora tivesse ficado com um verdadeiro bolo no estômago antes de cada prova, de forma que pouco me alimentei naqueles dias. O último exame era o de Defesa Contra as Artes das Trevas, que me esforcei em concluir dentro do prazo exigido pelo pequeno e astuto professor Flitwick. No momento em que ele convocou os mais de cem rolos de pergaminho e caiu sob o peso deles, fui uma das que estava mais próxima e me levantei imediatamente para ajudá-lo, na companhia de alguns outros alunos. O salão principal ia se esvaziando à medida que os estudantes abandonavam as carteiras milimetricamente dispostas para os exames. Depois de me certificar que o pequeno professor de Feitiços estava bem, acompanhei o fluxo e fui me colocar à beira do lago, na companhia das minhas colegas da Grifinória. Cheguei logo depois das garotas, que já tinham se acomodado para aproveitar o sol e a falta de mais provas naquele ano letivo. Elas sussurravam e soltavam risinhos, apontando para uma frondosa faia próxima ao lago. Virei o pescoço na direção do dedo gorducho de Mary McDonald, já esperando avistar aquele grupinho: Sirius, James, Remus e Peter. Mary murmurou, perdida em pensamentos:
- Aquele Sirius é um pedaço de mau caminho...
Eu sequer consegui prestar atenção no resto da frase, pois o que avistei me fez perder toda a alegria de ter concluído o último exame para os NOM´s. James tinha acabado de lançar uma azaração em você, e imediatamente começaram a escorrer de sua boca bolhas de sabão cor-de-rosa. Fiquei me perguntando onde estaria sua varinha, até que a avistei, em meio a uma multidão de alunos que já se aglomerava, um borrão jogado na grama, totalmente fora do seu alcance. Imaginei que, covardemente, James o havia desarmado. Minha mente travava uma terrível batalha interna, perguntando-se por que James tinha que fazer aquilo. Eu sabia que vocês se odiavam, mas a atitude era simplesmente desleal. A espuma já cobria seus lábios e o fazia se engasgar, sufocar. Eu achava que James tinha amadurecido nos últimos tempos, mas percebi naquele momento que estava enganada, e fiquei profundamente decepcionada. O sentimento que nutria em relação a você falou mais alto e abri caminho pela multidão com passos determinados, a varinha em punho.
- Deixem ele em paz!
Seus olhos negros pousaram sobre os meus e pude ler um intenso desagrado neles. Eu sabia que corria esse risco ao tentar te defender. Sustentei o seu olhar com a cabeça erguida, num sinal de desafio, como se fosse eu a te azarar, ao invés de defendê-lo. Seus lábios se contorciam, enquanto a espuma dispersava, já que James havia baixado a varinha e se concentrava apenas em segurar o pomo de euro, que se debatia nas mãos do apanhador. Um novo movimento dele chamou a minha atenção: tinha arqueado as costas e estufado o peito como um pavão, e então disse, num tom de voz muitas vezes mais grave e que soou falsamente maduro:
- Tudo bem, Evans?
- Deixem ele em paz! – abandonei de vez seus olhos negros para encontrar os castanhos de James, o rosto retorcido num sorriso que chegava a ser quase idiota. Eu estava furiosa, mas na verdade o que pretendia ao olhar para ele era fugir da decepção que sentia ao encarar seu rosto carregado de vergonha e rancor. Continuei a dirigir o meu desagrado para James, um profundo desprezo pelas atitudes dele crescendo dentro de mim. – O que foi que ele lhe fez?
- Bom – e James prosseguiu, dando de ombros – É mais pelo fato de existir, se você me entende...
A multidão ao redor caiu na gargalhada. Eu sabia que você não era exatamente popular em Hogwarts. Muitos temiam seu jeito misterioso e fechado, e você era um Sonserino. De qualquer forma, ser um membro da casa das serpentes não inspirava muita simpatia naqueles dias. Sirius e Peter estavam às gargalhadas. Remus ainda estava absorto num livro qualquer, sentado sobre a sombra da faia como se nada estivesse acontecendo. Ele não ria. E nem eu. Senti que minha voz poderia congelar quando proferi as palavras seguintes:
- Você se acha engraçado, mas não passa de um cafajeste, tirano e arrogante, Potter! Deixe ele em paz!
- Deixo se você sair comigo, Evans – James estava tão absorto em meus olhos, e a multidão na cena que ele fazia, que sequer perceberam os seus movimentos em direção à varinha caída. As asinhas do pomo continuavam se mexendo velozmente, presas pelos dedos dele. Você ainda cuspia restos de espuma enquanto se arrastava, e eu já nem prestava atenção nas palavras de James enquanto te observava, perguntando-me o que você seria capaz de fazer. – Anda... saia comigo e eu nunca mais encostarei um dedo no Ranhoso.
- Eu... eu não sairia com você nem que tivesse que escolher entre você e a lula-gigante!
Sirius se retorceu e curvou as costas, dobrando-se enquanto ria. Eu continuava observando seus movimentos por trás deles.
- Mau jeito, Prongs! OI!
Droga! Sirius percebeu suas intenções e se voltou com agilidade para você. Porém, a varinha já estava firme em sua mão, e a sucessão de lampejos e acontecimentos seguintes quase me fez perder o fôlego. Eu sabia que você andava treinando feitiços não-verbais, algo avançado para alunos do quinto ano. Porém, qualquer coisa na qual você se esforçasse era capaz de desempenhar com habilidade, portanto tinha se tornado muito bom neles. Seus olhos estavam injetados de fúria reprimida enquanto apontava a varinha diretamente para James. Um corte profundo brilhou no rosto do grifinório, salpicando a camisa branca de sangue. Assustada, levei a mão à boca para conter um grito abafado. Queria correr para você e impedi-lo de machucar James, mas minhas pernas simplesmente não obedeciam. Ele girou, e meu coração deu um salto, vindo parar quase na garganta. No segundo seguinte, eu não queria acreditar no que via: você estava flutuando de cabeça para baixo, as vestes negras do avesso cobriam seu rosto e exibiam suas pernas magras e as roupas de baixo. Ruborizei na hora, sem sequer ouvir as gargalhadas que nos envolviam. Meu rosto se contorceu de fúria, porém, estranhamente, tive que reprimir uma intensa vontade de rir. Sentia-me como se estivesse vingada por todos os mistérios, todas as vezes que você havia insistido em se esconder de mim. E lá estava você, de ponta cabeça nos jardins de Hogwarts, mostrando as cuecas para os outros alunos. O riso durou pouco em meus lábios, apenas o suficiente para constatar que James se contorcia em uma cruel gargalhada.
- Ponha ele no chão! – eu gritei, enquanto desviava os olhos da sua figura flutuante ao nosso lado.
- Perfeitamente!
Com um aceno da varinha de James você caiu, as vestes negras emboladas no chão, e um intenso sentimento de compaixão começou a tomar conta de mim. Você tentou sair correndo, mas Sirius já tinha berrado o feitiço:
- Petrificus Totalus!
- DEIXE ELE EM PAZ! – enquanto você emborcava no chão, duro como uma tábua, o grito saiu da minha garganta, quente, feroz. Apontei a varinha de maneira firme para James e Sirius. Ambos assumiram uma expressão preocupada, e notei que Remus fechava o livro sob a sombra da faia, mas ainda continuava sentado, observando a cena sem nela se envolver.
- Ah, Evans... não me obrigue a azarar você – James falou, me encarando de maneira séria. Seus olhos brilhavam por detrás dos óculos de aros grossos. Eu não me deixei abater e completei:
- Então desfaça o feitiço nele!
James parecia emburrado, mas acabou cedendo ao meu apelo. Você começou a se erguer, olhando fundo nos meus olhos. Eu queria tentar ler qualquer sentimento neles, mesmo que fosse o rancor que tinha visto anteriormente, mas você já tinha revestido seu rosto com a expressão impassível que tinha o poder de esconder você de mim. James continuava:
- Pronto! Você tem sorte de que a Evans esteja aqui, Ranhoso.
Você continuava me olhando. O rosto não trazia sequer uma ruga que expressasse o que viria a seguir. Você não deixava transparecer a arma com que iria me ferir, como se fosse um ladrão noturno à espreita, escondendo o punhal que usaria para cravar o coração da sua vítima. Eu julgava que aquilo havia acabado, que você se levantaria, voltaria para os corredores gélidos das masmorras e nós continuaríamos nosso relacionamento doentio de beijos roubados em momentos de desespero. Porém, você não planejava isso. Não sei sequer se planejava algo. Mas, com a fúria de um assassino, deu-me seu golpe de misericórdia:
- Não preciso da ajuda de uma sangue-ruim imunda como ela.
Você disse que não importava, que não fazia diferença, que o sangue jamais seria um fator determinante na nossa relação. Eu tinha nascido trouxa, mas você também era mestiço, não tinha o sangue-puro que seus colegas sonserinos insistiam em ostentar. Mas você disse que isso não era importante, e eu acreditei em você. Você me iludiu como se faz com uma criança, entregando-lhe o doce que vai tirar no futuro. Na época, eu era mesmo uma criança, tão inocente em acreditar no que você dizia. Era como se você me tivesse contado um segredo, o qual eu havia carregado até ali, mas que agora descobria ser uma sórdida e deslavada mentira. A pureza do sangue fazia toda a diferença para você. Então, também faria a diferença para mim. Tentando conter as lágrimas que queriam escorrer pelas minhas bochechas sardentas, desviei os olhos dos seus e jurei que jamais voltaria a me perder neles. As palavras que saíram da minha boca também queriam te ferir, mas elas pareciam ínfimas diante daquela com a qual você tinha me atacado:
- Ótimo! No futuro, não me incomodarei. E eu lavaria as cuecas se fosse você, Ranhoso!
Eu queria virar as costas e sair dali. Correr até chegar a algum lugar onde pudesse evitar todos aqueles olhares pousados sobre nós. Queria me esconder, atirar-me num beco qualquer e esperar que a morte me levasse num frio abraço. Eu tinha perdido você para sempre. E a culpa era toda, toda sua!
- Peça desculpas a Evans! – ainda ouvi James gritar, enquanto apontava a varinha para você de maneira furiosa. Deixei que toda a minha frustração se esvaísse, abandonasse meu corpo nas palavras que proferi, nas ofensas que joguei no rosto de James sem sequer olhar novamente para você:
- Não quero que você o obrigue a se desculpar! Você é tão ruim quanto ele. Despenteando os cabelos só porque acha que é legal parecer que você acabou de desmontar de uma vassoura, se exibindo com esse pomo idiota, andando pelos corredores e azarando qualquer um que o aborreça só porque é capaz... até surpreende que sua vassoura consiga sair do chão com o peso dessa cabeça cheia de titica. Você me dá NÁUSEAS!
Virei as costas. Ouvi James me chamar. Eu só queria abandonar o mais depressa possível aquele lugar. Ficar o mais longe que pudesse daquelas lembranças. E só havia um lugar onde eu poderia me isolar do mundo inteiro: a Casa dos Gritos.
Mas eu sabia que Remus me seguiria para lá quando o vi se levantar de um salto e caminhar na minha direção.
(Não fale, eu sei exatamente o que você está dizendo)
So please stop explaining, don't tell me 'cause it hurts
(Então por favor pare de explicar, não me conte porque machuca)
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