A discussão



Era fim de tarde e eu tinha acabado de sair de uma aula de Herbologia do quinto ano nas estufas semi-congeladas. Era o último período do dia, e os alunos já se encaminhavam para as respectivas salas comunais de suas casas, tentando escapar do frio que fazia no auge do inverno. Hogwarts era muito bonita naquela época do ano, com suas paredes de pedra cobertas de neve e o lago congelado.

Mas eu não gostava do inverno.

Mesmo assim, estava fora do aconchego da torre da Grifinória, enrolando meu cachecol bem firme ao pescoço, como se tentasse barrar o vento gélido que soprava pelo vão aberto do corredor que levava para a torre oposta, a de Astronomia. Eu havia te encontrado no caminho de volta para o salão comunal, e queria há muito conversar com você. Mas você fazia questão de escapar entre os meus dedos como uma escorregadia serpente todas as vezes que eu tentava. O jeito misterioso que tanto havia me fascinado quando eu era menina começava a me irritar conforme crescíamos. Não que eu não gostasse de você assim, mas eu queria mais. Queria mergulhar fundo na sua alma, conhecer cada detalhe dela. Para mim, não bastava apenas um verão. Mas você se esforçava cada vez mais em se esconder.

Eu segurava uma braçada de livros com firmeza, ligeiramente curvada enquanto os carregava e caminhava ao seu lado. Você evitava me olhar, permanecendo escondido sob uma cortina de cabelos, que já lhe chegavam aos ombros e, cada vez mais, escondiam seus olhos de mim.

- O que você achou, Lily? Que seríamos amigos para sempre? Melhores amigos?

- Nós éramos, Sev! – éramos mais que amigos, eu pensei, mas não disse nada. Apenas respirei fundo, tentando controlar o tom de voz que usava para falar com você. Sabia que o assunto era delicado, e o que eu menos desejava era dizer algo que pudesse te afastar ainda mais de mim. Pelo contrário, tudo o que eu mais queria era remover de uma vez por todas a parede que você insistia em construir entre nós. Mas sempre fui impetuosa, você sabe, e por isso meu tom de voz estava ligeiramente alterado quando continuei – O problema é que eu não gosto das pessoas com quem você está andando! Desculpe, mas eu detesto o Avery e o Mulciber! Mulciber! O que você vê nele, Sev? Você sabe muito bem o que ele tentou fazer com a Mary Macdonald!

Você fugia de mim. Esquivava-se. Abaixava ainda mais a cabeça, sem sequer olhar em meu rosto enquanto eu falava. Eu estava cansada de fingir que não notava, estava exausta de tentar te fazer entender. O nervosismo fazia com que meu corpo inteiro tremesse, e eu sabia que aquilo não era apenas frio. Era o medo de não conseguir te convencer, de não trazer argumentos suficientes para que você desistisse daquelas companhias que estavam te levando para o caminho errado. Para o lado oposto ao qual eu me encaminhava. Seus amigos fatalmente te afastavam de mim.

Estanquei o passo abruptamente e parei diante de você, obrigando-o a me encarar. Nossos rostos estavam próximos demais, como não ficavam desde o início do ano letivo em Hogwarts. Desde o nosso verão.

Você desviou os olhos e disse, com a voz baixa:

- Aquilo não foi nada. Era apenas uma brincadeira, só isso.

- Aquilo era Arte das Trevas, Severo! Agora, se você acha que pode ser chamado de brincadeira... – eu falei, cheia de rancor e mais alto do que realmente pretendia. Não conseguia me controlar, um turbilhão de pensamentos afluindo em minha mente, milhares de coisas que eu havia guardado por pura falta de oportunidade em falar antes com você.

Eu procurei seus olhos o tempo inteiro, mas quando você finalmente me encarou, me senti queimar por dentro, sentimentos conflitantes invadindo minha mente. Seu rosto enrubesceu, embora você tivesse feito um esforço visível para esconder, arrumando o cachecol no pescoço enquanto dizia, a voz muito mais cheia de rancor e desprezo que a minha própria:

- E as magias que o Potter e seus amiguinhos fazem?

Foi a minha vez de enrubescer. Por que, afinal, você sempre insistia em incluir meus amigos, especialmente James, nas nossas discussões? Eu sabia que o que eles faziam com você não era algo legal. Muitas vezes eu tentava te defender, principalmente em sua ausência. Comprei brigas com eles por sua causa. Mas era inegável que, em nenhum momento, aquilo que eles faziam se tratava de Artes das Trevas. Eram apenas tolas brincadeiras de adolescente. Mas como é que você poderia saber? Naquele ano, estávamos cada vez mais longe um do outro, você sempre na companhia de seus amigos sonserinos, e eu, cada vez mais grifinória e orgulhosa disso.

- O que o Potter tem a ver com nossa conversa? – eu me ouvi perguntar, sem conseguir conter meus próprios pensamentos, como sempre.

- Ele e sua corja de amigos saíram escondidos ontem à noite – você estava visivelmente deliciado em dizer aquilo, como se pudesse usar as informações que havia obtido para incriminá-los de alguma forma. Você parecia ter um estranho prazer em saber que, definitivamente, eles não eram perfeitos e tinham tantos segredos quanto você. - Há algo muito estranho relacionado ao Lupin. Onde ele têm ido, Lily?

- Ele está doente – eu falei, mas a minha voz transpareceu dúvida. Eu não sabia o que Remus tinha, mas achava que deveria ser algo grave, e isso me preocupava. Todos os meses ele passava um tempo longe de Hogwarts. Quando voltava, estava sempre fraco e abatido demais, profundas olheiras marcando os olhos castanhos e alguns arranhões pelo rosto. – Os meninos dizem que ele está doente...

- Todos os meses, justamente na lua cheia? – você falou, com a voz carregada de desdém. Eu sabia o que você queria dizer. Já tínhamos discutido sobre aquilo, e eu já ouvira seus argumentos contra Remus. Mas ainda me custava acreditar que um rapaz tão calmo, estudioso e centrado pudesse ser amaldiçoado de tal forma. Um lobisomem? Não, não podia ser. Na verdade, eu fechava os olhos diante das evidências não por preconceito, mas porque me preocupava demais com Remus para acreditar e, até mesmo, para confrontá-lo em busca da verdade, o que eu acabaria por fazer mais tarde.

- Eu conheço sua teoria – tentei imprimir frieza à minha voz, em resposta ao desdém que escutei na sua. – Mas por que você está tão obcecado por eles, de qualquer forma? Por que você quer saber o que eles fazem todas as noites?

- Eu só estou tentando mostrar a você que eles não são tão maravilhosos como v... Como todos acham que eles são, aqueles Marotos – e um arrepio percorreu a minha espinha pelo jeito como você falou. Parecia carregar não apenas desprezo, mas ódio. Eu entendia o quanto você se sentia mal com os insultos que eles te dirigiam, especialmente James e Sirius, mas daí a provocar todo aquele rancor que eu percebia em seus olhos negros era outra história. Eu estava assustada, você não se parecia mais com o Severo que passou os últimos verões ao meu lado.

O vento soprou mais forte e assobiou enquanto passava veloz pelo corredor aberto. Eu abracei os livros com mais força, procurando me aquecer. As palavras saíam num turbilhão, altas, cortantes e geladas como o frio do inverno, temperadas com o medo que eu senti ao divisar sentimentos tão intensos e rancorosos vivendo dentro de você:

- Pelo menos eles não usam Artes das Trevas – não dei sequer tempo para que você argumentasse, pois continuei as investindas contra você, o dedo indicador quase se encostando às maçãs pálidas do seu rosto. - E você está sendo muito ingrato. Eu sei o que aconteceu quando você tentou espioná-los por aquele túnel do Salgueiro Lutador! James Potter salvou você do que quer que esteja vivendo lá embaixo.

Seu rosto se contorceu e eu vi fúria em seus olhos quando você respondeu, afastando-se de mim e começando a caminhar na direção das escadas, sua capa negra enfunando na barra enquanto falava ainda mais alto:

- Salvou!? Salvou!? Você acha que ele estava bancando o herói, com sua espada invisível, como fez no Expresso de Hogwarts? Ele estava salvando seu próprio pescoço, e o de seus amigos também! Você não vai pensar... eu não vou deixar você achar que ele...

- Não vai deixar? Não vai me deixar o quê, Severo Snape? Vamos, fale! – e eu já estava completamente descontrolada, o que você obviamente percebeu.

- Eu não quis dizer isso... quer dizer, eu... Ora, Lily! Eu só não quero ver você bancar a tola com ele e... Ele gosta de você, ok? James Potter gosta de você, Lily! E ele não é... não pode ser... esse grande herói do Quadribol que todos pensam que ele é e que...

- Eu sei que James Potter é um arrogante metido – eu disse, cortando bruscamente o que você dizia enquanto sentia minhas próprias orelhas queimarem. Você estava com ciúmes! No entanto, a constatação não me fez parar de defender o meu ponto de vista. – Eu não preciso que você me diga isso. Mas as idéias de humor de Mulciber e Avery são simplesmente cruéis! Eles são maus, Sev! Eu não entendo como você pode andar com esse tipo de gente!

Eu continuava seguindo seus passos e tentando te convencer a se afastar daqueles sonserinos que eu tanto desprezava. Mas você não estava mais me ouvindo, eu sabia. Depois de ter xingado James, você parecia estar muito mais leve e caminhou mais rápido em direção às escadarias. Porém, sua expressão trazia aquele mesmo ar enigmático que você adotava cada vez com mais freqüência com o passar dos anos.

A escada começou a se mover antes que eu pudesse te acompanhar. Fiquei ali, parada, observando você se afastar rumo às gélidas masmorras, mais frias ainda durante o inverno. Eu não sabia como você suportava aquilo. Qualquer ser de sangue quente não poderia viver por lá. Eu sabia que sonserinos eram serpentes, mas não você.

Sozinha, deixei que uma lágrima solitária rolasse pelo meu rosto. Eu estava magoada. Por que você queria me abandonar, Severo? Você havia se esquecido de tudo que representava para mim? Tinha esquecido dos nossos verões e do campo de lírios? Tinha esquecido do sabor dos nossos beijos e do quanto nossas almas pareciam ser uma só quando estávamos juntos? Você foi o meu despertar, o primeiro que me fez acreditar que eu era diferente. Que eu era especial. Você me fez acreditar que receberíamos a carta e iríamos para Hogwarts juntos, Severo! Mas estávamos cada vez mais separados.

E grande parte disse era culpa sua.


“It looks as though you're letting go”
(Parece que mesmo assim você está deixando acontecer)

“And if it's real, well, I don't want to know”
(E se isso é real, bem, eu não quero saber)





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