O ferimento
Eu e você tínhamos um acordo tácito de férias, que incluía a cláusula de eu jamais ir à sua casa. Eu sabia que você tinha problemas com sua família, mas você falava pouco sobre eles. Não que eu não perguntasse, pois sempre te questionava como iam as coisas, principalmente com seu pai trouxa. Eu sabia que ele tinha problemas com álcool, e que não gostava muito da idéia de você freqüentar Hogwarts. Nada mais. Você tinha um jeito esperto e escorregadio de falar sem dizer nada quando se tratava de sua família. E eram tão escassas as tardes que podíamos passar juntos, que eu acabava por deixar para lá. Não percebi que sua família também contribuía para o caminho que você vinha tomando. Ocupei-me por tempo demais procurando os culpados, sem saber que eles eram vários, e que incluíam até mesmo, e principalmente, a mim.
Desde que mostrei a você o campo de lírios, sempre nos encontrávamos lá no primeiro dia das férias, eu meio emburrada, você frio e distante. Hogwarts nos separava. Mas bastavam dois ou três dias de conversa e já estávamos aproveitando o sol juntos, deitados na grama do parque e brincando de dar formatos às nuvens que passavam lá no alto. Era exatamente onde eu me sentia quando estava com você: no céu.
Mas aquele verão estava diferente. Uma névoa gelada cobria o nosso bairro e pairava por toda Grã Bretanha, e eu sabia que era influência dos dementadores, que haviam se rebelado de Azkaban. Caminhei até o campo de lírios com os braços em volta do corpo, sentindo um peso anormal no ar que entrava em meus pulmões. Quando avistei o lugar, senti vontade de chorar: não havia uma flor sequer. Apenas mato seco e queimado. Destruído. Estéril. Triste.
Meu coração se encheu de angústia e, quando percebi, estava correndo para a sua casa. Eu nem sequer sabia direito onde era, mas não me importava. Só queria te ver, queria que você me abraçasse e dissesse que tudo ficaria bem, que simplesmente não havia o que temer, que os aurores fariam seu trabalho e capturariam Aquele-que-não-deve-ser-nomeado.
Quando cheguei à sua rua, escura e deserta mesmo durante o dia, senti medo. Não era um local amigável, ainda mais para uma menina andar sozinha. O chão era calçado de pedras negras e as casas de tijolos aparentes, muitas delas em ruínas, se enfileiravam diante do rio mal cheiroso, separado por grades altas e ameaçadoras, cobertas de ferrugem. Diminuí o passo e procurei por algum indício que me mostrasse onde você vivia, qual daquelas paredes ocultava o que eu mais desejava ter naquele momento. Eu precisava de você, quase como se não pudesse respirar mais um minuto sequer se não estivesse ao seu lado. Sentia-me só e infeliz, efeito maligno das criaturas que roubam a alegria e a esperança do coração dos homens. Eu queria minha luz de volta, e sabia que você poderia me dar. Acreditava que só você poderia.
De repente, dois olhos negros me espreitaram pela janela de uma construção feia, de paredes descascadas, com um portão alto e negro meio quebrado. Assustei-me, mas segundos depois meu coração se aliviou e não pude evitar um sorriso sincero: você abriu a porta da casa, o olhar mais preocupado e envergonhado que eu já tinha visto na minha vida. A sensação de reconforto em te ver durou pouco, muito pouco:
- Evans! O que você faz aqui?
Gelo. Frio. Triste.
- Evans, Sev? Por que você insiste em me tratar pelo sobrenome? Eu me chamo Lily!
- Ok, então... – você respondeu, ainda surpreso demais para controlar o olhar de preocupação. – Lily, eu disse que não queria você em minha casa. Isso não é lugar para você. É perigoso.
- Ora, Severo, eu sou uma grifinória – eu disse, e não pude deixar de notar uma careta em seu rosto, que você tentou disfarçar sem sucesso. - Se este é o lugar onde você mora, se são estas as paredes que te abrigam, então aqui é lugar para mim, sim – eu disse, impetuosa.
Você olhou para os lados, como se estivesse se certificando de que não estávamos sendo observados. Então, relaxou os ombros e deixou que um ligeiro sorriso tomasse conta de seus lábios. Com um gesto, fez com que eu entrasse enquanto dizia:
- É melhor conversarmos aqui dentro. Essas ruas não são exatamente um lugar seguro.
Eu te acompanhei, um misto de alívio e curiosidade tomando conta de mim mesma. Observei o cômodo em que havíamos acabado de entrar: uma pequena sala de visitas, que mais parecia uma cela acolchoada e escura. Nas paredes, prateleiras cobertas de livros escondiam uma camada de bolor provocada pela umidade do rio. Você se dirigiu à porta que, provavelmente, levava para a cozinha, fazendo um gesto para que eu aguardasse ali. Olhei novamente ao redor e divisei um sofá vermelho e puído, no qual me sentei. Ao lado dele havia uma poltrona velha e uma mesa bamba, agrupados num círculo de luz projetado por um candeeiro preso ao teto. Na mesa, vi o seu livro de poções aberto e imaginei que estivesse estudando algo. Levantei-me de um salto, sorrindo, a fim de observar as páginas do livro e ver o que te interessava tanto, até mesmo nas férias.
A luz do candeeiro era fraca e aproximei meu rosto para enxergar melhor as letras pequenas e espremidas que você escrevia no livro de segunda mão. Eu saiba que você tinha o hábito de anotar ingredientes, dicas e outras coisas que pudessem trazer resultados melhores no preparo das poções. Aquilo lhe rendia pontos e a admiração do professor Slughorn. Mas a palavra que li naquele momento não soava como um ingrediente, pelo menos não que eu conhecesse. Espremidas no rodapé da página, as letras unidas se pareciam mais como um feitiço, do qual eu ainda ouviria falar muito e com extremo pesar: Sectusempra.
Li em voz alta, pronunciando a palavra pausadamente. De repente, um barulho de vidro quebrado irrompeu pela sala, assustando-me e fazendo com que eu me virasse repentinamente. Você estava parado na soleira da porta, o olhar nervoso, o copo de suco de abóbora que trazia nas mãos estilhaçado em mil cacos finos e cortantes no chão de madeira escura.
- O que você está bisbilhotando, Lily? – você disse com raiva, aproximando-se rapidamente e fechando o livro. Então percebi que seu rosto estampava uma expressão de dor, e você fechou os olhos, jogando-se na poltrona velha ao lado da mesinha com um baque surdo.
- Eu... eu... não estava bisbilhotando, Sev, eu... Sev! – então percebi porque seu rosto se contorcia em dor: você havia pisado num caco de vidro, que estava enterrado na sola do seu pé descalço, o sangue brilhando, vermelho, intenso, pegajoso.
Sem pensar duas vezes, ajoelhei-me ao seu lado e coloquei a mão sobre o ferimento, provocando um gemido e fazendo com que, involuntariamente, você me afastasse. Levantei-me e, sem pedir licença, apenas me encaminhei para a porta da qual você havia surgido, tomando o cuidado de desviar dos cacos, embora estivesse calçada. Divisei uma pequena cozinha de azulejos quebrados e encardidos, quase tão escura quanto a ante-sala, mas não parei para observar mais nada do aposento. Tomei um copo que estava no escorredor de louças e enchi com água. Havia um pano repousando sobre a pia. Parecia limpo, então o peguei também. Ouvi sua voz, entrecortada por um espasmo de dor, gritar da sala:
- Há álcool no armário sobre o fogão.
Virei-me rapidamente e vi que havia uma porta aberta por cima do fogão a lenha enegrecido. Corri para lá e peguei o vidro de álcool, apoiando-o em meu braço junto com os outros apetrechos que precisaria para tratar o seu ferimento. Entrei na sala e vi que você havia arrancado o caco de vidro com as mãos. Agora o sangue escorria e pingava em grossas gotas no chão de madeira. Seus cabelos caíam sobre seu rosto, como se você estivesse tentando esconder a expressão de dor, fazendo assim com que eu ficasse menos preocupada. Eu poderia te dizer que não adiantava nada se esconder de mim, mas por que falaria naquele momento se jamais tinha dito antes? Certas coisas entre nós sempre ficavam subentendidas. Eu tinha coragem para dizer algumas delas, mas outras simplesmente morriam em meus lábios a cada vez que eu observava o negro dos seus olhos, semnpre tão misteriosos.
Ajoelhei-me e umedeci uma parte do pano com a água, para tentar barrar o sangue que escorria. Fiz pressão no ferimento e vi você morder o lábio inferior, fechando os olhos e se controlando para não produzir nenhum ruído. Aproveitei a deixa, encharquei o pano com álcool e rapidamente o coloquei sobre o machucado.
Involuntariamente, você agarrou meu pulso e aproximou seu rosto do meu, o lábio ainda contorcido de dor. Pude sentir sua respiração próxima da minha, e o hálito fresco de hortelã que você exalava. Olhei em seus olhos, tão próximos, molhados, mas sem deixar que uma lágrima sequer rolasse. Eu jamais veria você chorar. Nossas respirações se aproximavam, meu coração bombeava no peito como se fosse explodir. Minhas mãos continuavam trabalhando em seu ferimento, enrolando o pano apertado em volta do seu pé. Mas eu já não sabia mais o que elas faziam, não tinha mais consciência de mim mesma e do meu próprio corpo. Tudo o que eu sentia era a proximidade do seu, e uma sensação quente e aconchegante que invadia meu coração enquanto ele gritava por você dentro do meu peito.
E tudo o que pude fazer foi seguir suas ordens e beijar você de um jeito terno, doce e raro como um lírio negro.
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