As diferenças
Eu e Tuney sempre fomos muito amigas, o que não nos impedia de brigarmos feito cão e gato e levarmos meus pais à loucura. Eu era muito travessa, e Tuney freqüentemente se irritava comigo. Não havia muitas crianças da nossa idade no bairro, por isso passávamos grande parte do nosso tempo livre juntas. A inocência dos meus onze anos e meu amor incondicional pela minha grande companheira de infância não me deixaram perceber que Tuney estava com inveja.
Estávamos na plataforma Nove e Três Quartos, papai, mamãe, Tuney e eu, e tudo aquilo era fantasticamente novo e excitante para mim. O enorme trem vermelho trazia, em letras garrafais, os dizeres: “Expresso de Hogwarts”. A fumaça expelida e o apito que se misturava aos sons de conversas e risadas dos outros estudantes tornavam aquilo absolutamente real para mim. Os dias tinham passado depressa e eu sequer tive muito tempo de me acostumar com a idéia, quando finalmente o momento chegou. Sim, eu estava indo para Hogwarts, exatamente como você havia me prometido.
Eu observava os outros alunos, alguns carregando nas mãos as capas bordadas com os emblemas das quatro casas: verde e prata na serpente da Sonserina, dourado e vermelho no leão da Grifinória, amarelo no texugo da Lufa-Lufa e azul na águia da Corvinal. Outros, assim como eu, usavam vestes normais e carregavam apenas uma capa negra, na qual seria posteriormente bordado o símbolo da casa para a qual o Chapéu Seletor nos enviasse. Você também tinha falado sobre a seleção, e eu permanecia com um friozinho na barriga diante do fato de não saber em qual casa eu passaria o resto dos meus sete anos de vida, e qual delas eu levaria para sempre no coração.
No entanto, Tuney não demonstrava estar nem um pouco preocupada com tudo isso. Pelo contrário, minha ansiedade parecia apenas aumentar o grau de irritação de minha irmã. O trem soou o primeiro apito mais alto, que anunciava a partida dentro de mais dois avisos sonoros. Despedi-me de meus pais e me virei para minha irmã, que tinha um olhar mordaz no rosto.
- Por favor, Tuney, eu já falei! Eu sinto muito, me desculpe! Escute só – coloquei as mãos de minha irmã entre as minhas – quando eu estiver lá... - senti que ela tentou puxá-las de volta, mas talvez não tenha se esforçado muito. Ou talvez minha ânsia em ser compreendida tivesse produzido uma força extra para que eu a segurasse um pouco mais. - Não, Tuney, me escute! Talvez quando eu já estiver lá, eu poderei conversar com o Professor Dumbledore e convencê-lo a mudar de idéia.
- Eu não quero ir! – ela gritou, fora de controle, enquanto puxava violentamente as mãos que eu tentava segurar. – Se você pensa que quero morar num castelo estúpido e aprender a ser uma... uma...
Nesse momento, meus olhos começaram a se encher de lágrimas. Não que eu fosse muito emotiva. Geralmente, dava conta dos problemas, enfrentava-os, e depois chorava as mágoas no travesseiro sem ninguém ver. Eu também tinha os meus segredos, assim como você. Procurei por seu rosto conhecido em meio aos outros alunos, e avistei seus olhos negros me observando de longe. Certas coisas nunca mudariam. Você estaria sempre por perto, cuidando de mim, mas talvez não tão perto quanto eu precisava. Não tão perto quanto eu gostaria que tivesse sido.
- Você acha que eu quero ser uma... uma... aberração!?
A força da palavra e o tom de desprezo na voz me pegaram de surpresa, e fui incapaz de impedir que uma lágrima fujona escorresse pela minha bochecha. Irritada com o comportamento de minha irmã e com minha própria fraqueza, passei as costas da mão pelo rosto e respondi, de forma impetuosa, os cabelos vermelhos balançando nas costas:
- Eu não sou uma aberração! Isso é algo horrível de se dizer!
- Mas vai aprender a ser nesse lugar para onde você vai. Uma escola especial para aberrações – a voz de Tuney estava trêmula e ela não me encarava enquanto despejava seus impropérios. – Você e aquele garoto Snape... dois estranhos, isso é o que vocês são! É bom que vocês sejam mesmo separados das pessoas normais. É para a sua própria segurança, minha irmã.
Busquei com o olhar o apoio dos meus pais, talvez uma palavra amiga ou uma bronca para repreender a forma como Tuney falava comigo. Mas eles pareciam ainda mais encantados com a movimentação da plataforma do que eu mesma. Mamãe apontava enfaticamente para uma família tipicamente bruxa, na qual o pai fazia os malões flutuarem com acenos de varinha. Olhei para o garoto, que caminhava um pouco distante dos familiares, o olhar claramente emburrado. Mais tarde eu viria a saber que aquele era Sirius Black. Mas, por hora, eu estava sozinha e precisava me defender. Voltei os olhos para encarar minha irmã, e firmei a voz, embora falasse baixo, como se estivesse contando a ela um segredo, algo que não podia ser entreouvido por mais ninguém:
- Você não parecia achar que Hogwarts era uma escola para aberrações quando escreveu aquela carta para o diretor e implorou que ele a convidasse para estudar lá também.
As minhas palavras produziram nela exatamente o efeito que eu esperava. Sabia que tinha sido cruel tocando naquele assunto. Tuney ficou vermelha e abriu a boca para falar, mas a voz morreu. Deu uma ligeira engasgada, tempo suficiente para que eu olhasse novamente na direção onde você estava, e visse seus olhos ainda pregados em mim. Era como se toda aquela movimentação que chamava tanto a atenção dos meus pais não significasse nada para você, mediante a oportunidade de me observar; como se não fôssemos ter tempo o bastante para nos olharmos pelo resto de nossas vidas; como se fôssemos tomar caminhos opostos em nosso destino.
- Implorar? Eu não implorei coisa nenhuma!
- Eu vi a resposta dele à sua carta. Ele usou palavras bem carinhosas, eu diria.
- Você não deveria ter lido! Aquilo era pessoal e... Como você conseguiu?... Onde você...?
Foi impossível não olhar para você de novo. Mas eu soube, no momento em que o fiz, que denunciaria a nós dois. Tuney podia ser arrogante e estar cega de ciúmes, mas ela não era burra.
- Aquele garoto achou a carta! Você e aquele esquisito estavam espionando no meu quarto, Lily!
- Não! Eu não estava espionando – a culpa começava a tomar conta do meu tom de voz, e assumi uma atitude defensiva. Eu sabia que não deveria ter mexido nos pertences da minha irmã, sabia que aquilo era falta de respeito. Mas minha curiosidade, ao ver que ela havia recebido uma carta pelo correio-coruja, tomou conta de meus atos. Eu precisava saber se havia alguma possibilidade de Tuney ir conosco para Hogwarts, apesar de você já ter me garantido que ela era definitivamente trouxa. Continuei, tentando me justificar – Severo viu o envelope, e ele não pôde acreditar que um trouxa tinha feito contato com Hogwarts tão facilmente. Isso é tudo, não estávamos espionando! Ele disse que há muitos bruxos que trabalham no serviço de correios e sempre ficam atentos a esse tipo de coisa, geralmente não passam cartas com esse conteúdo e...
- Aparentemente, bruxos colocam seus narizes em todo o lugar – ela me olhou novamente com desprezo, e começou a se afastar em direção a nossos pais enquanto dizia para quem quisesse ouvir – Aberrações...
E minha irmã sequer me disse “até logo”. Entrei no trem às lágrimas, procurando um compartimento onde pudesse me esconder do mundo. Aquilo não era exatamente o que eu tinha imaginado para o dia que idealizei como um dos mais felizes de meus onze anos de existência. No entanto, a felicidade parecia perdida em algum lugar onde eu não podia alcançá-la.
A discussão fez como que eu adentrasse o Expresso de Hogwarts apenas no terceiro apito, o que significava que não havia mais cabines desocupadas. Meu malão já estava com as bagagens dos outros alunos, portanto, eu só carregava um livro de poesias trouxas na mão. Achei que talvez pudesse me distrair com ele. No entanto, as lágrimas que borravam meus olhos verdes me impediam de focalizar as letrinhas quando, finalmente, encontrei uma cabine vazia no fundo do trem. Então, apenas encostei minha cabeça na janela e me deixei observar o verde que passava veloz pelo lado de fora do vidro.
Minha privacidade para chorar não durou muito. Dois garotos entraram conversando animadamente. Sequer dirigiram a palavra a mim. Um deles, o de cabelos mais escuros e óculos, parecia empolgado com um assunto que não entendi muito bem de início:
- Então, eu treinei a vida inteira para ser apanhador! Desde pequeno, meu pai me deu uma vassoura e me incentivou a voar pela casa. Ele soltava um antigo e gasto pomo de ouro que havia furtado de Hogwarts e me instigava a perseguir a bolinha. Mamãe odiava aquilo, porque eu sempre acabava quebrando alguma coisa.
Ambos riram, como se fosse engraçado destruir a casa à procura de um podo, pogo, pomo, ou o que quer que eles estivessem falando. Eu os observava com o canto dos olhos, e notei que o de cabelos um pouco mais compridos era o mesmo que eu havia visto caminhando pela plataforma Nove e Três Quartos com a família. Mas não havia restado nele nada do olhar emburrado que carregava enquanto estava ao lado dos pais. Agora, na companhia do outro, parecia muito mais alegre e vivo. O garoto de óculos passou a mão pelos cabelos negros displicentemente, espetando-os ainda mais do que já eram. Sem entender direito, meu estômago deu um solavanco, e imediatamente senti uma aversão gratuita por ele e por sua maneira extremamente confiante e bem humorada de falar, enquanto tudo o que eu queria era ficar mergulhada na minha própria tristeza. E, de preferência, em silêncio, sem risadas alheias para atrapalhar.
O trem chacoalhou e a porta do vagão se abriu. Meu coração protestou no peito, acelerando instantaneamente quando vi seus olhos negros me espreitando. No entanto, eu não queria falar com você. Não naquele momento. Você se aproximou, e notei que lançou um olhar de desprezo aos dois rapazes, que continuavam conversando em alto e bom som, ignorando nossa presença como se fôssemos dois fantasmas. Senti quando você se sentou ao meu lado e colocou sua mão muito próxima da minha. Minha pele arrepiou, mas eu desviei o olhar e voltei a encarar o mundo lá fora. Pareceu-me ter visto um relance de preocupação estampado em seu rosto, mas não queria voltar a te olhar para confirmar.
Sempre tive a estúpida mania de não conseguir controlar minhas palavras. Por isso, sem que eu ao menos pudesse me dar conta do que dizia, coloquei para fora o que pensava, em voz baixa, pois era dirigido apenas a você:
- Eu não quero conversar.
- Por que não? – você perguntou, e eu imaginei se realmente não saberia a resposta.
- Tuney. Ela... me odeia. E tudo porque nós vimos aquela carta do Dumbledore.
- E daí? – você disse, e foi então que virei meu rosto completamente e te encarei. Você não deixava transparecer qualquer sentimento, enquanto eu tinha certeza que as linhas do meu rosto se contorciam em curvas de pura irritação.
- E daí que ela é minha irmã!
Você disse alguma coisa, mas eu não escutei direito. Também, não fazia a menor diferença. Voltei a olhar novamente para a janela, assim poderia esconder o meu rosto e enxugar uma lágrima que tinha escorrido novamente pela minha bochecha. Odiava o fato de chorar na sua frente. Fazia com que eu parecesse tão fraca, tão indefesa. Eu não queria dar a impressão de ser um bibelô, uma bonequinha que precisava ser cuidada.
- Mas olhe, Lily, nós estamos indo, não? – você falou, e seu tom era definitivamente alegre, deixando transparecer o quanto você ansiava por, finalmente, estar longe da Rua da Fiação, do rio mal-cheiroso e da sua família não exatamente feliz. – Isso é um fato! Nós estamos indo para Hogwarts!
Eu concordei, voltando a encarar novamente o seu rosto. Você sorria, e reparei que sua aparência estava bem melhor sem as estranhas roupas de trouxa. Não que um dia eu realmente tivesse ligado para elas, mas o preto da capa caiu bem sob a sua pele tão branca. Seus cabelos caíam, lisos, como uma cortina sobre a superfície do seu rosto, escondendo ligeiramente um pedaço dele, da mesma forma como você escondia um pouco da sua alma de mim. Não resisti a deixar que meus lábios fossem tomados por um meio sorriso, embora sentisse que meus olhos ainda estavam bastante molhados.
- É melhor que você vá para a Sonserina – você disse, e tocou minha mão pousada sobre o banco do trem. Quando nossas peles se encontraram, imediatamente retirei a mão e senti meu rosto enrubescer, enquanto eu perguntava:
- Sonserina?
- Quem quer ser mandado para a Sonserina? – uma voz diferente irrompeu pelo vagão, e me fez relembrar dos dois garotos que estavam sentados ali também. Era incrível como, quando estávamos juntos, eu tinha a impressão de que o mundo inteiro éramos eu e você, os únicos bruxos de todo o universo. Mas ali estavam mais dois, e um deles parecia não gostar da idéia de ser enviado para a Sonserina. – Eu acho que eu abandonaria a escola se isso acontecesse, e você? – ele questionou, dirigindo-se para o colega ao seu lado. No entanto, o outro rapaz não sorriu.
- Minha família inteira fez parte da Sonserina – você o observava, talvez tentando descobrir de qual família ele seria. Eu não estava muito interessada e teria preferido continuar minha conversa apenas com você, mas era impossível não prestar atenção, agora que eles tinham começado a falar conosco. O garoto dos óculos e cabelos arrepiados soltou um assobio e disse:
- Puxa! E eu pensando que você era um cara legal!
O menino torceu o nariz antes de dizer, com o olhar firme no colega:
- Talvez eu quebre a tradição. Mas, e você? Se pudesse escolher, em qual casa gostaria de ficar?
O garoto de óculos desembainhou uma espada invisível e fez um movimento de ataque, como se houvesse um inimigo ali, pronto para ser abatido. Meninos conseguiam ser muito idiotas quando queriam, e eu rolei os olhos, ao mesmo tempo em que cruzava os braços e procurava um apoio nos seus olhos, algo como “eu jamais faria isso”. No entanto, você mantinha seus olhos pregados nos movimentos dele, como se procurasse digerir a informação que veio em seguida:
- Grifinória, claro! Os bravos de coração! – você não pôde conter um muxoxo, com a clara intenção de desdenhar do que o menino de óculos havia dito. Ele se virou para você e o encarou, imprimindo à voz um tom de desafio. – Algum problema para você?
Fiquei esperando que você se levantasse e dissesse que toda aquela discussão era uma verdadeira perda de tempo, que você não iria comprar briga com eles, que a casa para a qual fôssemos enviados não faria diferença, assim como ter nascido trouxa também não fazia, que iríamos sair dali e procurar um outro vagão e...
- Não, não faz diferença. Isso é, se você prefere ter coragem a ter cérebro... – você tinha aceitado a provocação.
- E onde você espera chegar se você não tem nenhum dos dois?
Os dois garotos começaram a gargalhar. Imediatamente, levantei, peguei meu livro de poesias e puxei sua mão, enquanto dizia:
- Venha, Severo. Vamos encontrar outro compartimento.
O menino de óculos repetiu o que eu havia dito, e eu fiquei ali, sem saber como agir. Sentia as minhas orelhas arderem e sabia que, muito provavelmente, estava vermelha de raiva. Aquele garoto me irritava, e eu não queria ficar mais nenhum momento na companhia deles. Queria conversar em paz com você, com quem eu me sentia muito mais à vontade. A vida pode dar tantas voltas, muitas das quais nós sequer esperamos.
Quando fechei a porta, ainda pude escutar:
- Nos vemos por aí, Ranhoso! – e mais risadas ultrapassaram o compartimento já fechado, enquanto eu puxava você pela mão e te arrastava para longe deles.
Tudo o que eu queria era te proteger. Mas você não queria minha proteção, e soltou a minha mão depressa, assim que acabou de assimilar o apelido maldoso que o garoto de óculos dirigiu a você.
(Nossas lembranças podem ser convidativas, mas algumas são completa e absolutamente amedrontadoras)
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