Dormir e correr



Por mais que eu durma eu não descanso
Por mais que eu corra eu não te alcanço
Mas não tem jeito eu não sei como esperar
Desesperar também não vou
Não vou deixar você passar
Como água escorrendo nos dedos
Fluindo pra outro lugar



Não sei quanto tempo se passou, mas os últimos dias desde a chegada da Ginevra foram um martírio. As feridas infeccionaram, tive febres altíssimas e, em muitos momentos, tinha plena consciência de que iria morrer. Alternava entre períodos de completo desligamento do mundo, anestesiado pelo conforto do sono, e outros totalmente desperto, agonizando de dor.

Ginevra cuidou de mim o tempo todo. Conseguiu tirar água da torneira completamente enferrujada que temos ao lado da privada, depois de limpar os canos. Não era exatamente água pura, e estava um pouco amarelada também, mas era o melhor que tínhamos à disposição e serviu para que ela limpasse minhas feridas todos os dias. Ela ainda retalhou a própria capa inteira para que pudesse usar os pedacinhos de pano enrolados no meu corpo, como precários curativos. Era a única forma de tentar conter o sangue que jorrava a cada vez que eu me mexia e uma das feridas rompia a pele nova, que não conseguia se formar por completo.

Acho que Snape também passou por aqui e trouxe mais essência de murtisco, mas não estou certo disso. Sinto o cheiro ruim da poção curativa emanando da minha pele e isso me deixa com nojo. Não sei se me lembro de Snape aqui na cela, conversando com Ginevra, ou se ele estava me assombrando nos meus sonhos. Porque meus dias de enfermo foram povoados por pesadelos aterrorizantes.

Vi meus pais mortos, vi a mim mesmo assassinado também. Várias vezes, aliás. Mas o que mais me chocou, e nem consigo entender porque, foi ver Ginevra chorando. Não conseguia entender se ela derramava suas lágrimas por mim, se chorava de verdade ou se era só nos meus sonhos. Mas a sensação de não poder fazer nada enquanto os olhos dela ficavam marejados e ela se debatia violentamente contra um inimigo inexistente era o que me deixava mais angustiado.

O que diabos está acontecendo comigo? Eu sou um Malfoy, afinal! Ela é uma maldita Weasley traidora do sangue! E, no entanto, não consigo mais olhar para ela com desprezo. Ginevra foi incrível durante os meus dias de doente. Será que eu teria sobrevivido a isso se dependesse apenas das ajudas esporádicas de Snape? Ele só aparece quando lhe convém, e eu simplesmente não entendo se ele quer me manter vivo ou só prolongar a minha dor, como num reflexo das que ele sente. Eu não sei porque ele me tirou da sede da Ordem, mas sei que me poupou de ser assassinado a sangue frio e no imediato momento em que voltei à presença do Lorde. Snape o convenceu de que o sofrimento da tortura diária seria muito melhor do que o bálsamo da morte instantânea. Eu fiquei grato, num primeiro momento. Mas agora entendo do que ele estava falando. Snape sabe que, se eu pudesse, imploraria ao Lorde de joelhos para que me matasse, porque tenho morrido um pouco a cada dia. Não fosse por Ginevra, as feridas já teriam me consumido totalmente.

Hoje amanheci melhor. A febre baixou e os machucados parecem cicatrizar de maneira mais satisfatória. Ginevra está contente. Sorri e conversa amenidades comigo, provavelmente esquecida de quem eu realmente sou. Talvez os dementadores tenham enlouquecido a pobretona. Mas eu não! Infelizmente, estou lúcido e ainda me lembro de que sou um Malfoy. Por isso mesmo não posso me esquecer de quem ela é. Não posso deixar que as coisas entre nós atravessem o fio tênue que separa o ódio cego entre famílias da amizade insana da prisão. Ou mesmo de outros sentimentos...

Ela me salvou, mas isso não pode significar nada para mim. Não estou em dívida com uma traidora do sangue. Não vou deixar que ela me faça acreditar que estou, afinal, ela o fez porque quis, provavelmente envolvida pelo estúpido sentimento de bondade que move os patéticos grifinórios. E eles nunca esperam nada em troca por seus atos heróicos. O sorriso dela é radiante. Eu não havia reparado, em Hogwarts, que ela tem duas covinhas logo abaixo das sardas castanhas que pontuam suas bochechas. O toque das mãos finas e quentes sob a minha pele é delicado e agradável, produzindo uma sensação de segurança que há muito eu não sentia. Como sempre, a cela está fracamente iluminada pela luz dos globos do corredor. Mas é a luz do único toco de vela que ela usa para esquentar os panos antes de colocar sobre as feridas que faz com que seu rosto adquira um tom alaranjado, tornando-a mais diferente ainda aos meus olhos.

Ela colocou o pano aquecido sobre o meu pulso esquerdo. O trapo está quente, e o machucado muito sensível. Então, involuntariamente, agarro a mão dela, procurando algum alívio. Os dedos são finos e estão um pouco melecados pela essência de murtisco. A mão pequena escorrega na minha, mas não é retirada pela dona.

- Vejo que já está bem melhor, Draco. Interagir com uma traidora do sangue não é exatamente um comportamento normal para um Malfoy.

Não posso deixar de produzir uma nova careta de dor. Snape! Como sempre, a velha, negra e sebosa pedra no meu caminho. Ele está sorrindo de maneira irônica ao ver minha mão pousada sobre a de Ginevra. Provavelmente pensou que nos flagrava em alguma cena íntima. Como se eu pudesse ter algum tipo de intimidade com ela, oras!

Percebo que os olhos de Ginevra estão crispados de ódio. Ela tira a mão da minha e senta-se de forma ereta na cama, virada quase que de costas para mim, encarando o oponente. Snape matou Dumbledore. Tenho certeza que é só nisso que ela consegue pensar enquanto o mira com os olhos castanhos e grandes piscando apressadamente. Será que eles conversaram algo quando o ex-professor trouxe a essência de murtisco? Ou ele se limitou a entregá-la nas mãos de Ginevra, sem que ela pudesse questionar nada? Não tenho tempo para as minhas próprias indagações, pois Snape continua a falar:

- É bom que esteja bem, porque sua enfermeira precisará se ausentar – ele se dirigiu a ela em seguida, com a voz mais alta do que eu julgaria necessário. - O Lorde das Trevas tem planos para você, senhorita Weasley.

Antes que Ginevra pudesse dizer qualquer coisa, ele se aproximou da cela e sussurrou, com o olhar depositado sobre mim:

- Ensine-a como eu te ensinei.

E jogou alguma coisa que estava escondida debaixo da manga de suas vestes para dentro da cela. Deve ter lançado um Abafiatto em volta do objeto, porque ele não fez barulho. Parece ser um artefato pequeno e arredondado, que rolou para longe do alcance da visão de qualquer um que passasse diante do cubículo naquele momento, e inclusive para longe de mim e de Ginevra. Snape se foi tão rápido quanto apareceu, a capa comprida e encardida farfalhando na barra. Lembrava um enorme morcego prestes a atacar sua próxima refeição, espreitando, andando de forma cautelosa até dobrar a esquina do corredor e desaparecer de vista. Vi tudo isso porque estou de pé, embora ainda esteja com dor, e agora que ele se foi por completo, ouço minha enfermeira contestar ao meu lado:

- Você deveria permanecer deitado! É teimoso como um hipogrifo velho! Se não continuar descansando, vai ter uma recaída.

- Não sei se o seu cérebro incapacitado te deixou perceber, Ginevra, mas Snape jogou alguma coisa naquele canto ali, sabia?

Apontei para o lado direito, para onde achava que o objeto tinha rolado. Não pude deixar de sorrir antes de voltar a sentar em minha cama enquanto ela foi até lá apanhar o que quer que seja. Mas antes percebi que o rosto impassível se contraiu involuntariamente e um pequeno tom de vermelho manchou suas bochechas quando eu a chamei de Ginevra. É, acho que é a primeira vez que uso o nome dela de verdade. Antes, só a chamava de pobretona, ou no máximo, de Weasley.

Mas de certa forma, eu também estou surpreso. O que será que mudou na minha mente para que eu passe a enxergá-la desta forma, quase que como uma aliada? Urgh, Draco! Lembre-se de lavar a mente com sabão quando puder se levantar da cama sem que a sua enfermeira traidora do sangue lhe dê broncas. Mas ela vem voltando, e o movimento do corpo cadenciado me faz esquecer qualquer censura que eu pudesse fazer a mim mesmo.

- Draco... eu não entendo... Snape nos jogou uma... varinha?

É, se um toco de madeira comprido, com cabo trabalhado e provavelmente um cerne mágico ainda formarem varinhas de bruxos neste mundo maluco e invertido em que estou vivendo, sim, isto que ela segura nas mãos é uma varinha. E agora tudo faz sentido.

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