Um pelo outro



“Pensei morrer, senti de perto o frio,
e de quanto vivi só a ti deixava:
tua boca eram meu dia e minha noite terrestres
e tua pele a república fundada por meus beijos.

Nesse instante terminaram os livros,
a amizade, os tesouros sem trégua acumulados,
a casa transparente que tu e eu construímos:
tudo deixou de ser, menos teus olhos.

Porque o amor, enquanto a vida nos acossa,
é simplesmente uma onda alta sobre as ondas,
mas quando a morte vem tocar a porta

há teu olhar apenas para tanto vazio,
só tua claridade para não seguir sendo,
só teu amor para fechar a sombra.”
(*)




Por um momento, pra mim, tudo tinha acabado.
Eu vi. Vi quando, há alguns poucos metros de mim, o corpo dele caiu sem vida no chão. Vi os olhos vermelhos dele, que me apavoraram durante toda a minha vida, se fecharem. E eles tinham se fechado por minhas mãos.
Nunca pensei ficar satisfeito com a morte de alguém. Nunca pensei desejar algo tão intensamente quanto desejei aquilo.
Finalmente, eu tinha vencido. Ele não poderia me tirar mais nada.
Apesar do sangue brotando de meus ferimentos, do ardor que a água da chuva deixava sobre a minha pele...eu sorri.

Saí correndo dali. Corria como um louco. Eu precisava avisar a vocês. Eu precisava ver você, te dizer que tinha cumprido minha promessa. Enquanto o vento frio castigava meus ferimentos e os fiapos de minha roupa se prendiam em obstáculos invisíveis naquela floresta, eu tinha noção de que duelos aconteciam ao meu redor. Não tinha acabado ainda. Não para muitos de nós.

Ao sair numa clareira próxima à entrada do esconderijo Dele, eu vi você. Vi como sua expressão estava obstinada. Vi como você estava concentrada na batalha travada diante de seus olhos. E ao pensar que aquilo nunca mais seria necessário, eu quase pude sorrir ao ver aquela cena. Quase...

Antes que pudesse te alertar, eu senti, mas do que vi, quando um raio vermelho cruzou a clareira e acertou em cheio o seu peito. Seus olhos se abriram em confusão. Não era com ele que você estava lutando. Não era por ele que você estava esperando.
Você não viu o seu assassino, querida.

Eu gritei - tenho noção disso - Mas não ouvi a mim mesmo.
Impregnada em minha mente apenas a imagem do seu corpo caindo. Em câmera lenta, como num filme.
Mas, minha adorada amiga, não era um filme. Era a sua vida. Era a minha vida.

Corri pra junto de ti. Lembro-me vagamente de ter acertado alguém. Minha varinha empunhada tão firme em minha mão, que os nós dos meus dedos, já outrora feridos, se retraíram em dor. Eu não ligava. Nada mais importava. Seus cabelos castanhos tingiam-se do vermelho de seu sangue... Você precisava de mim!

Seus olhos estavam fechados. O corte em seu peito. As feridas em suas mãos.
Como aquilo podia ter acontecido? Você era a minha pequena. Minha frágil amiga. Não era pra ser assim. Eu tinha vencido, não? Ele não podia me tirar mais nada.
E abraçado a você, eu chorei. Chorei enquanto afagava seus cabelos. Chorei enquanto chamava seu nome. Chorei pelo homem que eu tinha me tornado e pela mulher que você era. Você não podia ir embora. Você não tinha o direito de me deixar...

Abriu os olhos.
Eu sorri. Minha mente negando-se a acreditar no que meus olhos viam. Seu pequeno rosto tinha marcas. Marcas de sangue, marcas de lágrimas. Marcas da dor que minha presença em sua vida tinha te trazido. Eu nunca poderia me perdoar, querida. Eu te prometi que tudo iria acabar bem... Que grande mentiroso eu fui.

Você piscou algumas vezes. Seus longos cílios castanhos, ensopados de lágrimas. Espasmos de dor passavam por seus olhos. Você não iria suportar por muito tempo.
Eu te pedi tanto, Hermione. Você tinha que ficar comigo. Você tinha que lutar. Você me disse que estaria sempre ao meu lado... E eu... E eu acreditei. A sua presença era algo tão natural pra mim como o nascer do sol. Bonito. Necessário. Imprescindível.
Você não iria me deixar agora. Eu não permitiria que isso acontecesse.

Eu gritei. Não mais pelo seu nome. Por ajuda! Eu precisava de ajuda. Você precisava de mim. A chuva aumentou e com ela, o frio. Eu te senti tremer...
Ficamos alguns instantes ali. Você em meus braços, de um modo tão próximo como nunca tínhamos ousado antes. Só nós dois. Meus ouvidos aguçados ao menor ruído. Mas o mundo parecia em silêncio, como um grande teatro com seus espectadores a espera do grand finale... Nenhum barulho. Nada. Ninguém veio. Apesar da morte Dele, o feitiço anti-aparatação do esconderijo ainda funcionava. Eu não tinha como te tirar dali. Eu não tinha como te salvar!

Você segurou em minha mão. Sua respiração estava rasa. Fraca como um pequeno pássaro. Você estava se despedindo. Eu não pude acreditar. Eu me negava a acreditar! Ele não podia te tirar de mim. O nó em minha garganta me impediu de falar. Eu queria te dizer... eu queria te fazer entender... eu queria... que você ficasse. Pra sempre. Comigo.

“te amo”.
Você sussurrou. Admito que fiquei atordoado, querida. Confuso se aquele som tinha vindo de você ou de meus próprios pensamentos. Existem tantos sentidos na palavra amor...
Mas quando li, pela última vez, o que teus olhos me diziam, eu mais uma vez chorei. Chorei por você. Chorei por mim. Chorei por nós. Por tudo aquilo que tínhamos vivido, por tudo aquilo que não viveríamos. Ironicamente, ali, naquele lugar, naquele momento que eu percebi que não te teria mais comigo, foi que finalmente me dei conta de que eu realmente te amava. E era no sentido mais profundo e mágico da palavra.

“também de amo, Hermione”
Você deu um pequeno sorriso. O seu último.
Seus olhos cor-de-canela não brilhavam mais. Eles tinham se fechado. E doía saber que, indiretamente, por minhas mãos também.

Enquanto eu sentia as últimas batidas do seu coração contra o meu corpo, o sol se pôs no horizonte.

O teatro da minha vida, enfim tinha acabado. As cortinas tinham se fechado. Eu já não tinha aplausos. Eu já não tinha vaias. Nenhuma emoção que me fizesse sair do torpor.
Apenas o vazio...
O vazio que você tinha deixado.

De repente, querida, aquilo que era pra ser um começo transformou-se num fim. O nosso fim.


“Já és minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite sobre suas invisíveis rodas
E junto a mim és pura como o âmbar dormido.

Nenhuma mais, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo
Nenhuma viajará pela sombra comigo,
Só tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.

Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumo
teus olhos se fecharam como duas asas cinzas,

Enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti senão apenas teu sonho.”
(*)






(*) As traduções dos sonetos presentes nesse capitulo são, respectivamente, dos sonetos XC e LXXXI, ambos presentes no livro Cem Sonetos de Amor, do poeta chileno Pablo Neruda. (N/A: um gênio, na minha opnião!)

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