ALMANÇOR, O INVENCÍVEL



CAPÍTULO 9:


ALMANÇOR, O INVENCÍVEL



Os ecos dos próprios passos e os turbilhões de seus pensamentos foram as únicas companhias de Salazar Slytherin, enquanto ele vencia escadarias e atravessava salas e corredores, sempre descendo e descendo, até alcançar a mais profunda de suas recém construídas masmorras.

Aquela parte do castelo ele havia requisitado para seu restrito uso pessoal, no que tanto Godric quanto Helga haviam concordado, sem dar muita importância ao fato. – “Não pretendemos pôr ninguém a ferros por lá mesmo! Nem sei por que as fizestes...” – Dissera Helga na ocasião. Sorrindo mansamente enquanto sibilava palavras ininteligíveis para uma porta baixa e estreita, que prontamente se abriu à sua passagem, Salazar agradeceu pela condescendência ingênua dos amigos. Ele tinha grandes planos para aquelas salas, e entre estes poderia incluir o de aprisionar alguém a ferros, se necessário fosse.

O quarto baixo e largo, perfeitamente escondido sob seus próprios aposentos, encontrava-se escuro e frio, num ambiente perfeito para suas hóspedes. Com um aceno da varinha acendeu as poucas velas do lugar, cuja luz era suficiente apenas para iluminar parcamente as paredes nuas e para vislumbrar alguns poucos móveis e o cercado redondo forrado de pedras e galhos retorcidos e secos, que tomava o canto mais afastado da entrada. Tirou a capa, jogando-a sobre uma mesa, e largou-se em uma cadeira luxuosa e confortável, que contrastava fortemente com o restante da decoração monástica.

- Acho esta tua mania de criar víboras como animais de estimação especialmente divertida, Slytherin.

A voz anasalada e baixa o fez saltar novamente em pé, a varinha levantada na direção da onde as palavras sussurradas vieram. Uma figura encurvada, escondida nas voltas da capa e capuz maltratados e encardidos, afastou-se do canto onde estivera e avançou alguns passos para perto da luz. Parou à frente de Salazar, enquanto este relaxava os ombros, mas mantinha a varinha erguida.

- E eu acho que já te avisei para que não venhas aqui!

- Abaixe essa varinha, Salazar. - Ordenou calmamente o encapuzado. - Bem sabes que não faria nada contra mim.

Com um trejeito de impaciência, Salazar guardou a varinha e tornou a sentar-se.

- O que faz aqui? Pensei que estarias bastante... ocupado, a estas alturas.

Rindo baixo, o outro andou para perto do cercado.

- Teu aviso chegou a tempo, permitindo minha saída estratégica do problema. Graças a ti, fiquei sabendo quem se aproximava... Deixei até mesmo um presente para os que vinham! – Fez um ruído aquoso com a boca, estalando a língua em regozijo pela lembrança. Salazar estremeceu, sem pedir detalhes. - Não te agradeço apenas porque, afinal, foste tu que não guardastes essa língua bifurcada dentro da boca, e alardeou meus planos por aí, a qualquer um...

Salazar remexeu-se, incomodado.

- O rei me deu uma ordem direta! Como eu explicaria meu silêncio quando ele e Godric se encontrassem? Por que se deixaram avistar, enfim? Por que não mantiveram segredo? Enviar uma mensagem ao rei! Francamente...

O encapuzado esticou a mão para dentro do cercado e tirou de lá uma cobra fina e comprida, de cor amarelo pálido, que rapidamente se enrodilhou em seu braço. Acariciou a cabeça escamosa gentilmente, antes de responder contrariado, atravessando a pergunta de Salazar com sua voz desafinada.

- Rei! Chamas de teu rei aquele comum gordo e preguiçoso! Eu já não entendo tua amizade com o Valente amante da ralé, ou com a bastarda de bom coração! Mas, ver você obedecendo à hierarquia dos que deveriam ser teus escravos é bem mais que incompreensível, irmão!

Salazar endireitou-se na cadeira, olhando automaticamente para os lados, como a esperar que houvesse por ali algum improvável bisbilhoteiro.

- Não me chames assim! – Sibilou furioso – Não mencione esse... ato abominável na minha presença!

- Ato abominável? – Retrucou sombriamente o outro, conjurando para si uma cadeira em frente a Salazar. – É assim que classificas o sacrifício de nossos pais? É assim que agradeces o fato de entre os sangues puros, o teu ser o mais puro de todos? Continues a impor a ti próprio o esforço inútil de pensar em mim apenas como teu primo, se assim lhe aprouver, mas nós dois sempre saberemos a verdade!

Salazar permaneceu alguns momentos em silêncio, a expressão demonstrando intenso desagrado, enquanto o outro bruxo continuava brincando com a serpente amarela.

- Viestes aqui com algum objetivo que não o de ser indesejável? – Perguntou finalmente.

- Vim para te alertar, Slytherin. A hora de tua escolha está chegando. O entrave de hoje em Celidon não afetará meus planos para um amanhã não tão distante. Almançor é um tolo arrogante que cometeu o erro de subestimar teu amigo e seus pares, mas tem recursos suficientes para me proporcionar várias tentativas...

- Essa escolha já foi feita.

- Não, não foi. Podes agir como um bom samaritano perante teu poderoso amigo, e para aquela bruxa tola que te venera. Porém, tu não me enganas, Salazar. O orgulho e a fome de poder te corroem por dentro, como corroeram nossos antepassados e como vão consumir cada um dos nossos descendentes. Não és assim tão diferente de mim, há crueldade em ti também, ainda que em repouso... E há luxúria. Sim, - acrescentou, divertindo-se com o muxoxo indignado do outro – luxúria. Eu estava lá em cima agora a pouco, disfarçado entre aquelas pestes que vocês abrigam aqui. Eu vi o brilho em teu olhar quando observava a bruxa mais nova. Percebi que a deixastes pensar que o vencera...

Slytherin ergueu-se, pensativo. Tirou a cobra das mãos do visitante e colocou-a de novo no cercado, junto a dezenas de outras serpentes de variados tamanhos e níveis de peçonha. Depois encostou-se na parede próxima, observando os corpos esguios e escorregadios entrelaçarem-se uns aos outros lá dentro. O espasmo de um sorriso curvou-lhe o canto da boca, enquanto os olhos brilharam com refinada malícia.

- Ela é poderosa. Mesmo na forma de Phobos pude perceber o quanto é bela, altiva... E após os cuidados de Helga, há de recuperar a saúde do corpo, plenamente. Não nego ter pensado que uma bruxa como ela seria a mãe perfeita para meu herdeiro. Pensamentos, nada mais.

- Ah, sim... Seu herdeiro. – Retrucou a voz desafinada, ironicamente. - Havia me esquecido de que ter uma prole é tão importante para ti. Mas, o que te garante que, além de todos esses adjetivos que de forma tão eloqüente acabas de declamar para tal mulher, ela seja também uma bruxa pura? Não sabes quase nada sobre ela, pelo que entendi dos sussurros descuidados que ouvi.

- Como eu disse e tu viste, ela é poderosa. Sangues ruins ou mestiços jamais seriam capazes daquilo.

O outro o analisou cuidadosamente por sob a aba de tecido por algum tempo, antes de dar por encerradas a conversa e a visita.

- Se realmente pensas assim... – Levantando-se, o encapuzado andou em direção à porta e de lá se voltou novamente para Salazar, que permanecera onde estava. – Estás avisado! Logo teu conveniente jogo duplo terá de se decidir por um dos lados. – Enrolando-se melhor na capa suja, concluiu. - Não te preocupes em que eu seja visto. Sairei como entrei, através da tua passagem para a casa da leviana com quem te deitas. Quem sabe ela não tem um agrado para mim, também?- Já cruzava o umbral quando arrematou, por sobre o ombro.- Eu o vejo em breve... Irmão.

Salazar observou-o sair, ainda imóvel. Seus olhos cinzentos refulgiam de vívido ressentimento pelo visitante. Seu parente tinha o dom de ser desagradável a qualquer de seus sentidos, e a ojeriza que sentia pela criatura beirava o enjôo físico. Entretanto, por hora ele era intocável. Salazar teria de mantê-lo confiante e próximo o suficiente para ser controlado, até conseguir dele o que queria. Aí, então... Herpo, o Sujo, deixaria de ser um lembrete inoportuno de erros passados, um desgosto e um problema para Salazar Slytherin.


==*==


- Milord, temos problemas.

Godric assentiu silenciosamente à constatação crua de Ian, sem tirar os olhos castanhos do terreno à sua frente e acima.

A Floresta de Celidon divisava de um lado com o rio gelado e caudaloso que banhava Moray, e de outro por altas montanhas de solo pedregoso, da onde nasciam árvores baixas de galhos entrelaçados e vegetação rasteira e cerrada. A cordilheira formava uma muralha natural intransponível em toda a sua extensão, seguindo a orla das árvores por quilômetros.

Na linha entre o vale estreito que circundava os pés das montanhas, até o barranco que descia para o rio, o começo da floresta era protegido por uma colina alta e larga, coberta por gramíneas apenas, dando a sensação de uma gigantesca bacia verde virada de borco, que escondia as árvores centenárias. No alto desta colina, os orientais haviam estabelecido acampamento.

Godric e seus homens haviam se aproximado da colina de madrugada, embrenhando-se entre os espinheiros, bétulas e freixos que cingiam as bases da elevação, e agora formavam um meio cinturão de guerreiros ocultos, estudando com olhos sagazes as condições do inimigo.

- Pelo menos não são os dez mil cogitados... – Comentou enfim, recebendo uma risada baixa de seu soldado.

- Desculpe o atrevimento, milord, mas também não são os trezentos que desejávamos... – O sorriso sumiu, dando lugar a uma vaga preocupação. – São três para cada um de nós.

Godric voltou-se para ele e seus tenentes mais próximos que os acompanhavam.

- Anima-te rapaz! Antes de o dia terminar terás travado várias disputas formidáveis.

- Senhor, como vamos subir lá sem que os estrangeiros nos partam ao meio com suas flechas e lanças? Chegar a eles pelas montanhas é impossível, temos pouco tempo para abrir trilhas por lá... E o rio... – MacNamara fez um gesto largo, apontando para a fúria das águas que passavam cascateando, não muito longe deles, sem precisar de mais que isso para se fazer entender.

- O problema de MacNamara, senhor, é que ele está constrangido em informar-lhe que não sabe nadar. Que afunda na água como...

- Finalize essa frase Huntley, e só deixarei tuas orelhas grandes para os orientais.

Godric permitiu que a provocação entre seus homens continuasse por alguns momentos, enquanto analisava uma vez mais o círculo de barracas onde uma onda de estrangeiros em túnicas azuis sobre malhas de aço, e turbantes brancos nas cabeças morenas, andavam de lá para cá, tratando de seus cavalos, comendo à beira de fogueiras, ou simplesmente conversando, sem medo algum de serem vistos.

- Agora ouçam. – Os soldados imediatamente silenciaram. Godric abaixou-se e, conforme movimentava a varinha de lá para cá, a cópia perfeita do acampamento dos estrangeiros foi se desenhando pelo solo escuro.

- O que vemos é só o que eles nos deixam ver. Sabem que estamos aqui, e esperam nosso ataque. Há muito mais estrangeiros escondidos lá em cima, em posições estratégicas para nos tornarem alvos perfeitos. Se subirmos durante o dia, lançarão mais que flechas e lanças sobre nós. Não esqueçam que eles também possuem magia a seu serviço...

- E à noite, milord? – questionou Calvin Abbot, o chefe dos arqueiros.

- A noite será a melhor opção, embora mesmo assim nem um pouco fácil.

- Há algo mais que o preocupa, milord, além da diferença numérica entre nós e do tipo de mágica que usarão? – Quis saber MacNamara, reconhecendo as sobrancelhas franzidas de seu comandante.

Godric endireitou-se, a dureza em seu semblante e a profundidade da voz denunciando seu estado de espírito ao dizer:

- Vocês não perceberam o que faltava na cena hedionda que encontramos em Moray?

Seus soldados entreolharam-se, incertos. Godric continuou.

- Animais queimados. Construções derrubadas. Homens e mulheres pendurados até a morte, por sede, fome ou fogo. Homens e mulheres.

- Pelas barbatanas de Netuno... As crianças! Não havia crianças no vilarejo! – Resumiu MacNamara, alarmado. – Eles estão com elas!

- Sim, e se ainda estiverem vivas, as usarão contra nós. Talvez um escudo humano para lhes proporcionar uma noite tranqüila... – Rugiu Godric. Ian escarrou no chão, furioso. Os outros lançavam olhares nada pacíficos para as barracas no alto.

- Milord, se mandássemos chamar o rei e Cadogan... A vantagem deles diminuiria! – Sugeriu Abbot.

- Não temos tempo para esperar reforços. Devemos impedi-los de entrar na floresta. Se já estiverem lá, se o mal que temíamos já aconteceu, então... Fazer o que for preciso para não deixá-los sair com vida da sombra das árvores.

- Milord já tem um plano. – A afirmação partiu de Ian, que ainda observava os estrangeiros de forma assassina.

Godric sorriu ameaçadoramente na mesma direção.

- Já. Abbot, leve alguns homens e recolham todas as cordas que tivermos. Traga-as para mim. – O homem esbelto, de mira certeira, assentiu e afastou-se, esgueirando-se pelas sombras. – MacNamara, escolha dois de seus homens de confiança, bruxos de preferência, e que não afundem tão fácil. – O grandalhão resmungou algo claramente desgostoso antes de girar nos pés e sumir ainda mais rápido que Abbot pelos arbustos. Ian já se balançava nos próprios pés a estas alturas.

- E eu, milord?

- Você, meu leal Ian... – respondeu, pousando a mão no ombro do soldado. - Você será minha segunda espada em ação, lá em cima. Tu e teus homens serão colocados em grande risco, e entenderei se tiveres dúvidas...


Ian aprumou-se, lançando a Godric um olhar que era pura franqueza.

- Falo por mim e por eles, senhor. É só dizer, que será feito.

Gryffindor assentiu, sorrindo, e abaixou-se novamente perto do desenho no chão, marcando vários lugares nele enquanto falava.

- Eles são em maior número, estão acima de nós no terreno e possuem nossas crianças como reféns. Entretanto,... – Ian suspendeu a respiração em expectativa – são homens do sol e da areia, acostumados a noites tépidas e dias escaldantes. Não imaginam a possibilidade de enfrentar o gelo e a força das águas deste rio, por exemplo. Estão longe de suas casas e do que lhes é conhecido. E nós...– conforme um sorriso de compreensão desenhava-se no rosto forte de seu tenente, Godric ergueu os olhos flamejantes para os inimigos, e concluiu:

- Nós estamos em nosso lar. – Aspirou o ar profundamente. – Sentes a umidade no ar, Ian? Hoje à noite teremos neblina...


==*==


Cecille andou cuidadosamente pelo pátio, contando os passos até os primeiros degraus que a levariam à entrada externa das cozinhas. Com os braços abarrotados de taludos nabos tremeliques, ingrediente de uma das famosas sopas de Lady Hufflepuff, estava tão concentrada em não perder nenhum dos inquietos legumes, que não percebeu o perigo rondando até bater de frente com ele.

- Ah, não!- Exclamou frustrada, quando os nabos escaparam de suas mãos e caíram com estrépito no chão.

- Ora, ora, ora... Se não é a mesticinha esnobe... – Soou baixa e rudemente uma voz masculina acima de sua cabeça.

- Sabe, Noir, acho que temos a oportunidade ideal para ensinar-lhe boas maneiras. – Adicionou outro rapaz, à esquerda de Cecille, e próximo demais na opinião dela.

- É verdade. As senhoras do castelo estão de conversa em algum lugar distante daqui, os elfos trancados na cozinha e Lord Salazar... Bom, Lord Salazar não se incomodaria com tão pouco, não é, mesticinha? – O dono da terceira voz agarrou-a pelo braço com força, erguendo-a alguns centímetros. – Vais escarnecer de Cygni Noir agora, sangue sujo? Agora que sua amada Lady Helga não está aqui para ajudar-te? Ou pensas que algum aprendiz me enfrentaria para salvar-te? Não há nenhum por aqui, vês? Não, não podes ver...

- É melhor soltar-me! – Avisou, quase tranqüilamente, em meio às risadas debochadas.

- Oooooooooo, Noir! Acho que tens uma ameaça bem na tua face! – Cecille reconheceu o da esquerda, desta vez. Era Bastian Malifin, um rapaz marrento que vivia à sombra de Cygni.- O que vais fazer com a ousadia desta... aberração?

- Quando eu terminar com ela, não sobrará nada para sustentar tal coragem... – Respondeu Noir, tapando a boca pronta para gritar de Cecille com a mão livre e tentando puxá-la para algum destino desconhecido. – Quando acabarmos é só usar um feitiço simples de memória, e...

- Largue-a Noir.

Os três aprendizes voltaram-se surpresos na direção da ferraria, de onde Bram vinha caminhando com passos largos e decididos.

- Isto não é da sua conta, highlander. Volte para seus cavalos. Aliás, não deverias estar servindo Lord Gryffindor em algum lugar longe daqui?

- Eu mandei soltá-la.

Cecille sentiu as garras que a prendiam cederem a pressão, e de súbito viu-se jogada ao chão com um golpe nas costas. Ficou ali ajoelhada, zonza de dor e susto.

- Não me venhas com esta pose de censura, escudeiro. Sabemos que sua índole não é das melhores... Se a quer para ti, só precisa pedir.

O fio da espada de Bram brilhou ao sol quando se alinhou à garganta de Noir, e ali ficou, ameaçadora. Cygni piscou, aturdido, vendo a outra mão de Bram erguer a varinha para seus amigos

- Não a perturbem mais. Se quiserem encrenca, procurem comigo.

Lentamente, os três foram andando para trás, sem tirar os olhos da espada e da varinha estendidas para eles. Somente quando já estavam a uma boa distância, Cygni recuperou a fala.

- Eu vou reportar isso a Lord Slytherin, escudeiro.

- Ele sabe onde me encontrar – respondeu Bram, antes de guardar a espada e curvar-se para erguer Cecille do chão. Cygni e os amigos sumiram rapidamente da vista.

- Espere, - pediu ela – tenho de recolher os nabos para milady...

- Eu faço isso depois, se fazes questão. Agora vens comigo.

Ergueu-a devagar, sustentando seu peso até que ela firmasse os pés no chão por sua própria força.

- Consegues andar? Eles a machucaram?

- Não... Não. Apenas me assustaram um pouco. Não achei que chegariam a tal ponto... – Ergueu a cabeça e sorriu para onde deveria estar o rosto de seu salvador.- Obrigada, Bram!

- Por que eles...?

O sorriso de Cecille ficou triste.

- Eu não sou a primeira pessoa com quem eles são tão... valentes. Aprendizes menores e mestiças são suas vítimas preferidas. E eu ainda cometi o pecado mor de recusar-me a comparecer aos aposentos de Noir, recentemente.

- Contastes a Lady Helga? Ou a Lord Gryffindor?

A moça sacudiu a cabeça levemente.

- Não adianta correr para eles cada vez que algo está errado. Estamos aqui também para aprender a nos defender, não estamos?

Bram segurou seu cotovelo, guiando-a para as portas da cozinha.

- As coisas quase saíram de controle hoje. Por que não fugiu deles?

- A mágica me ajuda em minha locomoção, e eu quase sempre pressinto a aproximação das pessoas, mas, hoje eu estava distraída com os nabos, e não estava de forma alguma esperando algum tipo de perigo...
O rapaz estacou.

- A mágica te ajuda? O quer dizer?

Cecille virou-se para ele, sem ter noção do quanto a melancolia em seu semblante era capaz de cortar até mesmo as mais resistentes armaduras.

- Desculpe, pensei que soubesses. – Encheu o peito de ar e de coragem. - Eu sou cega, Bram.

Silêncio foi o único comentário que recebeu de volta. Entretanto, o toque em seu cotovelo foi um tanto mais suave, desta vez. Bram guiou-a através da cozinha, onde pediu para que os elfos fossem buscar os legumes no pátio, e depois pelos corredores frios e silenciosos, já prontos, do castelo até uma porta larga no primeiro andar. Antes de bater a aldrava, porém, ele perguntou em voz baixa.

- Como sabia que era eu, então?

Cecille maneou a cabeça, com a típica alegria quieta de volta às suas feições.

- Falas bem pouco, highlander, mas o suficiente para que eu reconheça tua voz enquanto me salvas... – Pousou a mão no braço dele, apertando-o de leve. – As coisas não saíram do controle hoje, porque estavas lá. Obrigada, novamente.

Bram bateu a aldrava três vezes. Logo ouviram vozes do outro lado da porta, e enquanto ela se abria ele retirou a pequena mão de seu braço, apertando-lhe os dedos por um rápido momento.

- Da próxima vez, grite, corra ou morda! Eu não estou sempre por aqui... – Aconselhou ele, antes de entregá-la às mãos atenciosas de Lady Helga Hufflepuff. Com algumas palavras breves anunciou que estava de partida e, sem mais delongas, foi-se. Cecille sorriu, lembrando o levíssimo traço de riso naquele apressado conselho. Enquanto explicava à Helga e Rowena o que acontecera, confortavelmente instalada no quarto que servia de enfermaria, viu-se imaginando aonde Bram fora, e o quanto demoraria...

Enquanto isso, vários níveis abaixo, Cygni Noir e seus companheiros eram castigados por terem sido humilhados por uma mestiça e um escudeiro de origem obscura.


==*==


A noite caíra, e com ela a parede argêntea de neblina predita por Godric mais cedo.

Em pé, no meio do círculo formado por seus homens, ele erguia a voz para as últimas palavras antes da batalha.

- Irmãos! Logo estarão lutando com homens que nunca viram em suas vidas. Vocês não os conhecem, mas hoje eles são seus inimigos! – O eco de metal contra metal alardeou-se pela noite quando os soldados bateram as espadas contra os escudos. – Não há nada mais assustador que um guerreiro sem medo. Então, enfrentem qualquer adversário com valentia, e isso é tudo que eu espero de vocês! – Um urro de consentimento soou por toda volta. – E se a dúvida e o temor alcançarem seus corações, lembrem-se de Moray! Pensem no martírio dos inocentes que enterramos hoje! Imaginem o mesmo acontecendo em suas vilas, em suas casas! É contra isso que lutaremos!

Desta vez o urro foi mais forte e longo e, com certeza, atingiu os ouvidos dos orientais na colina.

- Bruxos, procurem por magia e eliminem sua fonte! Soldados, aos que se renderem, sejam complacentes, aos que os atacarem e a seus companheiros, sejam impiedosos! É chegada a hora das armas! Que sejam bravos nossos inimigos!

- E QUE SEJAM BELAS SUAS VIÚVAS! – A tropa respondeu em uníssono, já cerrando fileiras.

Antes de tomar a frente, liderando o ataque, Godric voltou-se na direção onde o rio corria, agora escondido pela densa neblina, e pensou nos homens que haviam sumido por ali, já há algum tempo. Pedindo ao destino para que os mantivesse bem, vestiu seu elmo, segurou o escudo ao lado do corpo e caminhou até o meio das fileiras, entre o recém chegado Bram e Abbot, parando alguns passos à frente dos soldados.

- Lembrem-se, - gritou por sobre o ombro - Herpo é meu!– E ergueu a espada.



Enquanto isso, na confortável tenda central do acampamento dos estrangeiros, seu líder ceava fartamente, tranqüilo pelo que julgava ser uma vitória eminente e fácil.

Abu Amir Muhammad Ibn Abdullah Al-Mansur, ou Almançor, o Invencível, como era conhecido nas terras que conquistara, possuía a testa alta, o nariz adunco e os olhos negros freqüentes em sua gente. Sempre fora a mente que o distinguira dos demais. Tinha um raciocínio rápido e muitas vezes cruel, que várias vezes fora comparado ao das perigosas aves de rapina de sua terra natal. Outro traço marcante era sua sede desmedida por poder.

Almançor era o Hajib, prefeito do palácio do jovem Emir de Córdova, Hisham II. Embora o emir detivesse o poder de direito, sempre fora eclipsado por Almançor, que retinha em suas mãos cobiçosas todo o poder de fato. Sua maior ambição era, desde que se lembrava, erguer um exército forte o suficiente para tornar-se o emir. Então, atravessaria a Europa e chegaria a Bagdá, tomando para si o trono do Califado dos Abássidas, o maior e mais poderoso de todos os reinos na terra. Ter o jovem emir e o atual califa de Bagdá como seus escravos particulares era um pensamento que o assaltava com freqüência.

O feiticeiro inglês que batera em sua porta, prometendo absoluta invencibilidade, encaixara-se divinamente em seus grandiosos planos. Almançor cravou os dentes em um suculento damasco, suspirando confiante enquanto observava o vai e vem das sombras de seus guerreiros nas paredes da tenda. Era uma pena que antes de conseguir o que viera buscar, tivesse que aturar o incômodo e presunçoso ataque dos nativos da região. Tolos! Seriam esmagados. Nem mesmo o tal “leão”, sobre o qual o feiticeiro tantas vezes o alertara, seria páreo para seu grupo.

Se fosse mais jovem, com certeza teria ficado ansioso pela luta. Porém, anos de vitórias sem desafios, riquezas monumentais, mesa farta e palácios luxuosos haviam adicionado muitas polegadas à sua cintura, e o orgulho de portar malhas de metal brilhante e cimitarras afiadas fora substituído pelo prazer de se cercar de jóias e sedas. Sua maior diversão era traçar as estratégias e metas, e deitar-se confortavelmente, cercado das melhores comidas e bebidas, para esperar que seus subordinados lhe trouxessem os louros da vitória.

Almançor soergueu-se em seu leito ao avistar seu melhor guerreiro adentrar a tenda e parar a uma distância respeitosa, batendo com o punho fechado no próprio peito antes de uma curta reverência.

- Hajib! A noite já caminha para a madrugada, e nossos inimigos se preparam para atacar.

- Nada inesperado, não é? – Engrolou enfadado, esticando-se para alcançar sua taça. – Os pequenos infiéis estão bem guardados?

- Acorrentados próximos a esta tenda, Hajib. Sua guarda pessoal se encarregará deles, se os pálidos ultrapassarem a linha das tendas.

- Muito bem, traga-me o feiticeiro, então.

O silêncio do subalterno, e sua cabeça baixa, irritaram Almançor.

- Anda! Traga-me o feiticeiro!

- Ele... desapareceu, Hajib!

Almançor estreitou os olhos.

- O quê?

- Não conseguimos encontrá-lo, senhor. E lá fora não se vê...

Nisso as vozes das sentinelas explodiram pelo acampamento, gritando alertas, e o guerreiro apressou-se para fora. Tão rápido quanto seu abdômen permitia, Almançor ergueu-se, jogou seu manto sobre os ombros, ajeitou o enorme turbante na cabeça morena e seguiu-o. Deu dois passos dentro da noite e estacou, pasmo.

- Inferno de lugar! O que é isto agora? O bafo de demônios???

Uma cortina prateada e gélida baixara sobre seus homens, tão espessa que parecia poder ser cortada a facadas. As enormes fogueiras, acesas para espantar o frio, agora expeliam aspirais de fumaça negra e acre, que dificultava ainda mais a visão. Algo estava incomodando os cavalos, que relinchavam e pateavam o ar, descontrolados. Os guerreiros, não enxergando nada mais distante que meio metro, corriam confusos, trombando uns nos outros.

Almançor grunhiu raivoso, e arrancando o chicote de alguém próximo, estalou-o no ar enquanto caminhava para o tumulto, gritando ordens.

- Idiotas! Alguém apague essas fogueiras! E larguem esses cavalos, imbecis! Não servirão de nada assim! Peguem suas armas! Arqueiros, usem as lanças! Nesta noite cinza só vão atingir seus próprios pés! Para as encostas! Avancem!

Chegando à borda da colina, subiu na pequena plataforma da sentinela e espiou para baixo. Tudo que se via eram relances metálicos de espadas, elmos e armaduras se chocando, a meio caminho entre o pé da elevação e ele mesmo. Por muito tempo ficou ali, gritando ordens, enquanto a luta, que ele imaginara fácil, arrastava-se para o pé de igualdade entre as duas forças. Se entre os pálidos muitos tombaram, levavam antes disto alguns dos seus, também.

Conforme o tempo passava os gritos, canglores e lamentos da batalha aproximavam-se mais e mais, e quando a parede gelada dissipou-se um pouco, Almançor pôs os olhos naquele conhecido como Leão pela primeira vez.

- O que o louco está fazendo? – Questionou para si mesmo. – Quantos pensa poder vencer de uma vez?

Separado do grupo maior de combatentes, o cavaleiro alto enfrentava três ou quatro de vez, e o endiabrado ainda conseguia gritar palavras de incentivo para seus pares, logo atrás. Alternava golpes da espada e do pesado escudo, onde um leão dourado erguia-se em duas patas sobre o fundo vermelho.

- Ah, então esse é o homem...

Fascinado, assistiu a dois de seus guerreiros acertarem um golpe simultâneo na espada do grandalhão, partindo-a em duas. Sem abalar-se, o cavaleiro enfiou a parte que restara em sua mão na perna do primeiro guerreiro e desacordou o segundo com um golpe do cotovelo direto no nariz, tomou-lhe a cimitarra e continuou a luta.

- Hajib! – O capitão de sua guarda materializou-se a seu lado, arfante. Fora ferido na região entre as costelas, e sangrava copiosamente. – Eles atacam pelos dois lados, senhor! Um grupo subiu pelo rio e ganhou a encosta pelo lado da floresta!

- As crianças! Coloquem-nas na frente...

- É tarde para isso, Hajib. A guarda ainda defende aquele flanco, mas eles conseguiram soltar as crianças, antes que os percebêssemos! Tenho que tirar o senhor daqui, colocá-lo em segurança!

- Não! Não vou me esconder... – titubeou.

- Senhor, deves voltar a Al Andalus intacto! Meu dever é levá-lo!

O tal leão estava se aproximando, e logo estariam face a face se insistisse em ficar.

- Vamos!

O capitão levou-o para a mais simples das tendas, onde eram guardados os mantimentos, e escondeu-o entre alguns caixotes. Apesar de mal conseguir andar, saiu novamente para a luta, voltando para onde a guarda de Almançor se defendia.

Abaixado em meio a carnes defumadas e sacos de cereais, Almançor, O Invencível, acompanhou o avanço de seus inimigos pelos sons que chegavam até ele. Dentre todas as vozes e ruídos, uma se destacava. Profunda e autoritária, ela rugia por sobre todas as demais, como trovões abafando a tempestade. A voz aproximou-se mais e mais, comandando e incentivando, até que soou muito próxima de seu esconderijo. Encolhendo-se como podia, Almançor desejou quase com desespero que alguém viesse resgatá-lo. Os pálidos eram selvagens, nada entendiam de diplomacia e, com certeza, não respeitariam a sua posição no emirado, matando-o ali mesmo. Maldito feiticeiro! Por que o escutara? Porque não trouxera todo o enorme exército do emir?

O tecido que fechava a tenda foi subitamente arrancado de suas costuras e o homem com o escudo de leão entrou, espreitando o local atentamente. Impotente, Almançor assistiu a reação tensa quando ele o avistou, e a voz que escutara trovejando antes pronunciou algumas palavras em tom de censura e desprezo. Ligeiro como um felino, o cavaleiro chegou até ele, ergueu-o pela frente das roupas e encostou o fio largo da cimitarra, tirada de um de seus homens, logo abaixo de seu queixo, forçando-lhe a cabeça para cima. Olhos flamejantes, da cor do âmbar, reluziram furiosos para ele, e ele rugiu uma pergunta simples, no mais puro idioma andaluz.

- Onde está Herpo?

A raiva contida naquela voz fez Abu Amir Muhammad Ibn Abdullah Al-Mansur, até então o Invencível, estremecer.







N/B (Morg): mas hein? Covardia postar um capítulo tão... tão... perfeito assim! A Beta aqui não tem nada a comentar, só a fã histérica do Godric. Morraaaaaa Almançor!! Tá pensando que é fácil meter medo no leão das charnecas? E no Bram, o highlander? Super atencioso e fofo com a Cecille... enfim, tem mais o que dizer? Tudo tão bem orquestrado e escrito. Mestra, meus parabéns!


N/B Sally: Sim, caros amigos da Floreios e Borrões, ela demora, nos faz sofrer, nos faz ter crises dolorosas de abstinência, nos faz ter vontade de esquecer nossos juramentos de usar a magia para o bem, MAS... Quando ela aparece... Oh boy!! Vamos, admitam: ela arrasa, não arrasa? Não vale à pena esperar? Esperar sempre! Anam, se vc escrever livro de receita de bolo, ou manual de celular, juro que estarei lá emocionada e torcendo pelo seu herói (seja um bolo de chocolate ou um Nokia, hihih). Betar? Mamãe! E isso lá é possível? Texto impecável, ritmo perfeito, personagens densos, tridimensionais!! Quando muito eu fico de boca aberta e faço um ou dois comentários críticos como: Magnífico! Explendido! Fantástico!!!Maaaaiisssss!!!!!!!Parabéns, minha Anam, vc é fantástica e é um privilégio, ler em primeira mão as maravilhas que você escreve. Um beijo cheio de admiração.



N/A: Ok, eu sou demorada! Eu desapareço por semanas! Mea culpa! Mas, eu tento compensar! Este capítulo ficou quilométrico!!!! ;D – Espero que vocês gostem de lê-lo como eu curti escrever,=D, e que me perdoem a demora. – Sobre nossos personagens: Existiu realmente um Almançor, governador de Al Andalus. Entretanto, a coincidência com a realidade termina aí. O personagem, fora isso, é completamente fictício, ok? – Clube do GG! Podem suspender os movimentos revolucionários! (Amei aquilo!) Eis Godric em toda a sua força, especialmente para vocês! ;D – A todos os que leram, comentando ou não, um grande beijo cheio de gratidão e carinho! – E a vocês, minhas irmãs betas Sally e Morgana... Obrigada! Sempre! Pela atenção, pela paciência, pelo carinho, pelo incentivo! MUITO OBRIGADA! AMO VOCÊS!

Beijos muitos! Até o próximo capítulo! Bom final de semana a todos! =D

Fotos e músicas da fic, cliquem abaixo...





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