Perdas e danos
Mia ainda permaneceu mais um tempo debaixo do temporal até se dar conta de onde estava. Apesar de ser verão, o frio da tempestade gelava até os ossos. Quando conseguiu controlar as emoções, a ruiva correu para se proteger, parando no corredor iluminado pelas luzes automáticas para chamar o elevador. Este demorou para descer e, ao entrar, Mia precisou controlar o ímpeto de apertar o botão do sétimo andar e descobrir de uma vez por todas quem era aquele homem e por quê Daniel descera para resgatá-lo. Dominou a si mesma e subiu para o décimo quinto andar, pensativa. Entrou no apartamento pingando, os cabelos ruivos grudados nas costas e tremendo levemente. Sentia-se cansada, como se tivesse acabado de correr por horas a fio, e um nó apertava a boca de seu estômago. A vontade latente era de alcançar sua cama e voltar a dormir. Só parou quando, já no meio da sala, tropeçou em alguma coisa que gemeu de uma maneira esquisita e agourenta.
”Mas o quê... Oh, não!”
Mia olhou para o chão escuro da sala de estar e reconheceu o corpo de vovó Molly. A blusa do pijama estava rasgada na manga e exibia um corte lateral, provocado talvez por uma luta corpo a corpo. Os olhos da avó estavam esbugalhados e a boca aberta parecia ter sido interrompida no momento exato em que pretendera soltar um grito, o qual nunca saiu. Mia correu até o interruptor e acendeu a luz, revelando um cômodo totalmente revirado. Papéis foram retirados dos armários, os bibelôs derrubados da mesinha de centro e quebrados, as portas dos armários abertas. O medo começou a tomar conta do coração da menina. Mia agarrou as mãos da avó e sentiu o quanto estavam geladas, mais até do que o corpo da própria menina que havia acabado de sair do meio de uma tempestade.
- Vovó Molly, o que aconteceu? Onde estão mamãe e papai?
Os olhos da senhora reviraram nas órbitas e ela murmurava palavras desconexas. Mia levantou-se de um salto e começou a chamar pelos pais. O apartamento tão pequeno parecia gigantesco nos momentos seguintes. O coração de Mia sufocava no peito, um gosto amargo tomava conta da boca da menina e o desespero fazia com que ela quisesse derrubar o restante dos móveis que ainda não estava no chão. A casa toda estava revirada, mas Mia não conseguiu perceber nada que tivesse sido roubado. Os aparelhos eletrônicos, jóias e até mesmo o dinheiro que o senhor Weasley guardava embaixo do colchão permaneciam na casa, embora bagunçados e fora de lugar.
A busca pelos pais fora em vão. Depois de vistoriar todos os cômodos da casa, Mia teve certeza de que o senhor e a senhora Weasley haviam desaparecido. Voltou para a sala com o nó na garganta cada vez mais apertado. Deteve-se no corpo de vovó Molly jogado ao chão, e foi como se o visse pela primeira vez. Deu-se conta de que precisava ajudá-la o mais rápido possível, antes que algo acontecesse a ela e Mia ficasse completamente só. Vovó Molly murmurava palavras desconexas num tom de voz muito baixo. Mia agachou o corpo e segurou a mão gelada da avó pela segunda vez na noite. Tentou tomar-lhe o pulso, como vira tantas vezes na TV, mas não sabia exatamente como fazer isso. Para quem pedir ajuda? Para quem gritar por socorro? Ela estava completamente abandonada e nunca se dera ao trabalho de saber onde moravam ou qual era o telefone dos outros filhos de Molly. Afinal, sempre os encontrava na casa da avó. Pensando nisso, correu para a mesinha ao lado do sofá, à procura da caderneta de telefones guardada na gaveta. Quando estava prestes a abri-la, vovó Molly tossiu e Mia voltou atrás, jogando-se de qualquer jeito no chão para agarrar de novo a mão da avó.
- O que aconteceu, vovó? Fale comigo! Onde estão meus pais?
- Potter... procure... Harry... procure os Potter...- o rosto de vovó Molly mostrou o mais profundo assombro antes que ela fechasse completamente os olhos e desmaiasse.
Um raio arrebentou do lado de fora da janela, seguido por um trovão ensurdecedor, e a energia do prédio caiu, deixando Mia na mais completa escuridão. Bichento miou em algum canto da sala, o que trouxe um alívio momentâneo para a menina. Revigorada, voltou-se novamente para o telefone, retirou-o do gancho e, por alguns segundos, esperou o barulho da linha. Nada. O telefone estava mudo por conta da falta de energia. A falta de esperanças crescia enquanto Mia observava o corpo inerte da avó jogado no chão, as pernas e braços posicionados num ângulo estranho e a boca entreaberta. A menina girava de um lado para o outro, andando em círculos pela pequena sala escura.
”Pense, Mia, pense! O que eu faço? O que eu faço?”
A possibilidade surgiu como num lampejo diante dos olhos de Mia. Era a única opção, a única saída, mesmo que precisasse enfrentar a rejeição depois. Ele não negaria ajuda. Não naquela situação. Afinal, era uma emergência! Encorajada por este pensamento, Mia desceu a escada por detrás da porta corta-fogo do prédio até o sétimo andar. Parou ofegante diante de quatro portas perfeitamente iguais, de madeira e pintadas de cinza. A única exceção eram os números marcados com tinta preta no topo de cada uma: 71, 73, 77 e 79.
”Qual é? Qual é a casa dele? Por favor, qual é a porta correta? Mostre-me, por favor, mostre-me!”
De olhos fechados, Mia concentrava o pensamento para tentar adivinhar qual era a porta que encerrava a única chance de tentar salvar sua avó e descobrir o que acontecera com seus pais. E, principalmente, saber quem fizera tudo aquilo. Imagens difusas começaram a surgir diante dos olhos fechados de Mia, como se estivessem gravadas por dentro das pálpebras. Um movimento, uma respiração conhecida chamou a atenção da menina. Ela virou na direção do barulho com o mínimo de movimentos possíveis, para não dispersá-lo. Então viu nos olhos fechados a porta marcada a fogo, brilhando amarelada diante de si. Abriu os olhos assustada, mas constatou que não havia fogo algum.
”É essa! - pensou, e sem perder mais tempo, apertou a campainha estridente do número 77. Mia ouvia o som de passos abafados arrastando-se no apartamento, cada vez mais próximos.
- Quem está aí? – questionou a voz, um tanto embargada pelo sono.
- Daniel... – Mia começou, sem saber direito como explicar. – Sou eu, Mia. Por favor, abre a porta, eu preciso de ajuda!
O tom de desespero na voz da menina pareceu convincente, afinal, a porta abriu logo em seguida, revelando um Daniel de rosto apreensivo e olhar duro. Ela sabia que tinha cometido um erro ao tentar se aproximar do homem no jardim, mas fora um erro inconsciente. Ele observou a ruiva dos pés a cabeça, e ela se deu conta do quanto deveria estar despenteada e molhada naquele momento. Mas continuava ali, parada, de pés descalços e vestindo pijamas diante da casa de um quase desconhecido. O olhar dela era de puro desespero, e os olhos verdes de Daniel pareceram ceder diante da figura indefesa parada a sua frente.
- O que aconteceu, Mia? – ele perguntou, tentando manter a porta aberta o mínimo possível e escondendo com o corpo o interior da casa. No entanto, Mia não estava preocupada com isso agora. Apenas precisa de ajuda para salvar o que restava de sua família.
- É a minha avó! Vovó Molly! Eu cheguei em casa e ela estava desmaiada, o apartamento estava todo revirado, papéis espalhados, coisas quebradas pela casa inteira! E meus pais desapareceram!
- Como assim? – Daniel franziu as sobrancelhas de um modo intrigado.
- É isso mesmo, eu não sei onde eles estão! Nada foi roubado, só levaram – e nesse momento Mia engoliu em seco – os meus pais!
Daniel entrou brevemente no apartamento sem responder mais nada. Não levou mais que um minuto e voltou com a chave na mão, vestindo um blusão vermelho e uma calça de moletom azul marinho. Os cabelos negros estavam totalmente rebeldes, espetados no topo da cabeça.
O prédio continuava sem luz. Ambos rumaram silenciosos para a porta corta-fogo, subindo as escadas de dois em dois degraus. Daniel ia à frente, parecia conhecer o caminho, e ao chegar ao décimo quinto andar, entrou na porta correta sem nem ao menos hesitar. Mia percebeu que ele torceu o nariz ao observar a cena, mas logo dispersou essa imagem, tentando passar confiança para a ruiva. Olhou rapidamente o estrago na sala de estar do apartamento. Abaixou ao lado do corpo de vovó Molly e segurou o pulso da senhora, que continuava desacordada. Fixou então as órbitas verdes no rosto de Mia.
- Precisamos tirar sua avó daqui. Vou interfonar para o porteiro da noite e pedir para que ele arranje uma ambulância. Eles têm geradores que mantém os interfones funcionando no caso de emergências. Quanto a você, vista uma roupa qualquer e enxugue um pouco os cabelos, antes que apanhe uma gripe por causa da chuva.
Enquanto ia para o quarto, ainda ouvindo a voz de Daniel que falava com o porteiro pelo interfone, Mia pensou no quanto ele aparentava ser mais maduro que ela. Tinham quase a mesma idade, mas as ações dele eram de um adulto. Mia deixara o pânico tomar conta de si mesma e não viu a atitude óbvia que deveria ter tomado: o telefone podia não funcionar, mas o interfone estava ali. Simples. Mas agora não era hora para pensar nisso. Vestiu a jeans surrada e uma blusa branca de malha. Enxugou os cabelos vermelhos com uma toalha que estava jogada no chão do quarto e correu para a sala, onde Daniel a esperava.
- Pegue os documentos de sua avó. Vamos precisar deles no hospital.
Mia voltou para o quarto e pegou a bolsa da avó, que repousava sobre a escrivaninha de madeira. Qual não foi a surpresa da menina quando avistou, ao lado da bolsa, algo que não pertencia àquela casa. No meio de toda a bagunça, havia um estranho tipo de papel, parecido com um pergaminho antigo, enrolado e selado por uma camada de cera vermelha. Mia observou o carimbo e pôde Polícia Negra antes de jogar o pergaminho na bolsa da avó, levando tudo consigo para a sala.
- Pronto, Daniel!
- Ótimo! O porteiro ligou para dizer que os paramédicos estão subindo. Vai ficar tudo bem, ok?
Mesmo que Daniel dissesse isso, o coração de Mia ainda ribombava no peito quando viu a avó descer as escadas na maca e ser levada para a ambulância. Um paramédico deteve Daniel quando este entrava no veículo para acompanhar Mia.
- Só os parentes, mocinho!
- Mia, fique com isso e mantenha-me informado – o menino atirou o celular no colo da ruiva antes que a porta da ambulância fechasse e a sirene saísse cortando a noite chuvosa, numa briga para ver se era capaz de fazer mais barulho que os trovões.
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