Centelha do destino
Os dias passaram rápido e Bichento não fez mais nenhuma excursão pelo prédio. Parecia satisfeito com o resultado do último passeio, e agora se concentrava apenas no sofá da sala, onde estava sempre enrolado nas almofadas.
Mia não se esquecera das estranhas palavras que ouvira na conversa do casal Weasley. Pensou em muitas possibilidades, mas realmente não conseguia entender o que significavam. Guardou-as mentalmente por alguns dias e esperava a melhor oportunidade para confrontar os pais e perguntar o que elas significavam de verdade. A curiosidade de Mia jamais conseguira ser maior que a paciência que ela tinha com determinadas coisas, e os pais eram um grande exemplo disso.
Certa noite o senhor Weasley chegou em casa com a novidade: havia conseguido um emprego como vigia numa loja de departamentos próxima ao trabalho da senhora Weasley. Mia achava que o pai estava velho para esse tipo de serviço. Já na primeira semana, o senhor Weasley exibia no rosto e no andar curvado um cansaço tão grande que não permitia que ele ficasse acordado com a família por muito tempo. Recolhia-se cedo para a cama e os roncos ecoavam pela casa muito antes de Mia sentir o sono chegar.
Numa das noites em que o senhor Weasley já se levantara do sofá e rumava para a cama, Mia surpreendeu-o no corredor. A senhora Weasley vinha logo atrás, e a menina parou ambos com um olhar travesso.
- Papai, mamãe, vocês me amam?
- Claro, minha filha! – o senhor Weasley a envolveu num abraço, afagando os cabelos ruivos. A senhora Weasley apenas sorriu. – Por que essa pergunta agora?
- Então... – Mia começou, desvencilhando-se delicadamente do abraço do pai e encarando também a mãe – eu-quero-saber-o-que-são-Renegados-e-trouxas-e-de-que-armas-vocês-estavam-falando.
Mia falou rapidamente e o casal ainda permaneceu por um tempo processando a informação. Os olhos da senhora Weasley saltaram quando o ar de compreensão tomou conta de seu rosto.
- Andou ouvindo atrás das portas, mocinha? – perguntou o pai, com um olhar entre preocupado e orgulhoso para a filha.
- Ronald! Não! – era Hermione, o tom de desespero claro na voz rouca que saiu de sua garganta.
- O que é isso? Uma reunião no corredor e ninguém me convidou? – vovó Molly veio arrastando as gigantescas pantufas de lã azul, o robe comprido da mesma cor farfalhando pelo chão e uma risada zombeteira no rosto.
- Vovó! Eu só perguntei o que são Renegados e trouxas!
O rosto de vovó Molly empalideceu e ela deixou o sorriso escorregar ao trocar olhares de cumplicidade com o filho e a nora. Mia sustentava o olhar diante dos três e percebia que o assunto era bastante delicado.
- Filha... – a senhora Weasley olhou de maneira terna para Mia, tocando seu rosto delicadamente e afastando uma mecha de cabelo ruivo que escorregava pela testa da menina. – Um dia eu prometo que vamos poder te explicar tudo. Aliás, vamos mostrar para você o significado destes e de muitos outros termos. Mas por enquanto, você tem que me prometer que não irá mais escutar atrás das portas, tocar neste assunto, nem comentar o que você ouviu com absolutamente mais ninguém.
- Mia, sua mãe tem razão – o senhor Weasley continuou. – É um tema delicado, mas chegará a hora em que as coisas se acertarão. Ao menos é o que estamos buscando fazer. Por favor, seja paciente, Miazinha.
Sem argumentos, Mia resolveu não insistir. Confiava nos pais e sabia que, quando pudessem, explicariam o que ela queria saber. No entanto, assustava-a o fato de ver a reação de vovó Molly depois de sua pergunta. Ela permaneceu quieta até o momento em que se recolheu para a cama. Esqueceu-se do habitual beijo de “boa noite” e Mia deixou seu pensamento vagar pelas possibilidades do que poderia afinal assustar tanto uma pessoa feliz e divertida como vovó Molly.
O jardim do prédio era o lugar de refúgio de Mia agora que ela o havia descoberto. Descia algumas vezes com um bom livro na mão para descansar embaixo da sombra da única árvore. Chamava-a Lonely Lady. Encostava-se ao tronco da planta para ler, mas o coração permanecia sempre inquieto. Olhava a todo o momento para a porta de entrada do prédio, que dava no corredor dos elevadores. Sabia o que esperava, mas quando dava por si, balançava a cabeça e tentava concentrar o pensamento na leitura. Era impossível. Tudo o que conseguia ver era um mar verde diante de seus olhos, um convite para navegar e esquecer o resto do mundo.
”Para que eu quero terra firme se posso ter um oceano inteiro?”, pensava.
Mas Daniel não apareceu naqueles dias. E nem até o fim do mês. Mia sabia que quando as aulas começassem, teria bem menos tempo para desfrutar do jardim, dos livros e da companhia dele. Mas sua coragem não era suficiente para tocar a campainha do apartamento do menino. Mesmo porque ela não sabia qual era o número. Sabia apenas que ficava no sétimo andar.
”Sétimo andar... um número tão misterioso e místico quanto o próprio Daniel.”
O tempo veio e se foi no mesmo marasmo. Até que Mia acordou sobressaltada na noite que antecedia seu décimo sexto aniversário. Lá fora o céu rugia numa imensa tempestade. “Pelo jeito terei um belo aniversário chuvoso, como sempre”. Ao ser acordada pela torrente que ribombava na janela de alumínio do quarto, Mia notou a respiração pesada de vovó Molly ao lado da cama e sorriu. Virando-se para o lado oposto, viu as horas no relógio. Faltavam ainda quinze minutos para a meia noite de 31 de julho. O último dia do sétimo mês. Um aperto repentino oprimiu o peito de Mia, fazendo-a se sentir inquieta. Apesar de saber que a noite estava sem luar, foi até a janela da sala para dar uma espiada no céu. O deleite da noite deu lugar a um profundo espanto quando um trovão iluminou o céu e Mia viu um vulto que se arrastava pelo jardim lá embaixo. O que estaria acontecendo?
Movida por uma curiosidade natural, Mia abriu devagar a porta da casa e saiu para o hall do elevador. Um lado da ruiva sabia que estava cometendo uma loucura, sair de casa assim, no meio da noite e da tempestade. O outro lado ela não podia controlar. Era aquele que a impulsionava para baixo, apertando o botão do térreo inúmeras vezes como se isso pudesse acelerar a descida do elevador. Quando a voz metálica e desgastada anunciou Piso térreo, Mia escancarou a porta com ambos os braços e correu para os fundos do prédio, onde ficava o seu tão conhecido refúgio.
Um homem se arrastava próximo à Lonely Lady. Quando avistou Mia, o medo da garota parece que foi transferido para ele. O olhar amedrontado do homem se manteve fixo na menina enquanto ela avançava e já sentia a chuva gelada colar o pijama de malha ao corpo. O medo deu lugar a uma aura de reconhecimento. Quando Mia se aproximou, ele olhou-a no fundo dos olhos como se estivesse a desvendar-lhe a alma.
- É VOCÊ! VOCÊ! – ele gritava, tentando ultrapassar o barulho da tempestade.
- QUEM É O SENHOR? – Mia encarava os olhos verdes e os cabelos já brancos e ralos que cobriam a cabeça do estranho homem.
- EU SOU O DESTINO! AHAHAHHHHAHA – o homem explodiu em gargalhadas, assustando Mia. – E VOCÊ TAMBÉM O É!
Ele caiu na lama e parecia imóvel. Mia aproximou-se mais ainda do homem para tentar acordá-lo, mas parou no meio do caminho ao ouvir um grito.
- NÃOOOOOOO!!!
Virou-se abruptamente e se deparou com a figura de Daniel, iluminada por um raio que riscou o céu negro. Seu rosto parecia feroz e os passos decididos alcançaram o homem que jazia desacordado no chão. Daniel arrumou o corpo inerte e pesado em seu ombro e olhou de uma maneira séria para Mia, aproximando sua boca do ouvido da garota para dizer:
- Nunca mais pense em tocar nele! Nunca, entendeu? Esqueça o que viu hoje, Mia, ESQUEÇA!
Assustada, Mia permaneceu no meio da chuva, cada vez mais molhada e com o corpo tremendo. Observou Daniel se afastar por trás da porta de vidro que separava o jardim do corredor. A menina levantou os olhos para o céu e, sem saber o porquê, murmurou em meio a tempestade ensurdecedora:
- Eu sou o destino...
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