O Oráculo





Mia coçou o nariz e espirrou. A poeira do interior do armário provocara uma alergia. Quando o mundo parou de girar, ela piscou os olhos, mas a escuridão não cessava. Podia sentir Bichento roçando sua perna direita. Sentia-se apreensiva, mas por mais incrível que fosse, não havia medo em seu coração. Só uma curiosidade excessiva diante de tantos fatos que pareciam não ter uma explicação plausível retirada do mundo que ela conhecia.

Tateou na escuridão em direção à porta do armário. Quando a encontrou, instintivamente empurrou para que a luz do lado de fora adentrasse na pequena mobília. A claridade intensa que invadiu o interior do móvel não deixava dúvidas de que Mia não mais se encontrava na estranha biblioteca dos tios gêmeos. Empurrou mais a porta e Bichento pulou para fora do armário, miando de um jeito matreiro. A ruiva seguiu o gato, os pés se movendo com cuidado e os olhos piscando apressados, para se acostumar à luminosidade. Quando conseguiu focar a visão, deparou-se com uma estranha sala. As paredes brancas eram forradas por pequenas inscrições, algo que parecia ser latim, todas pintadas em preto. Alguns lugares estavam tão cobertos de palavras que chegavam a formar um borrão, outros tinham grandes espaços que mostravam mais a pintura alva da sala. Archotes ardiam em alguns pontos, o fogo brilhando intensamente. Tudo tinha um aspecto antigo, porém conservado. Um divã marrom estava encostado a um canto, próximo de uma janela, e no centro do aposento uma bacia de pedra clara brilhava, emitindo uma luminosidade azulada. Mia se aproximou do estranho objeto, analisando seu conteúdo. Dentro da bacia algo rodopiava, alternando a direção de tempos em tempos. A menina não conseguia definir se o conteúdo era líquido ou sólido.

”Parece uma massa feita de sonhos e pensamentos, se é que isso é possível. Onde estou afinal?”

Um instinto se apoderou de Mia e ela se aproximou mais da bacia, as mãos apoiadas na borda e os pés ligeiramente levantados do chão. Começou a enxergar pequenas formas dentro da massa rodopiante, colorações difusas e imagens desfocadas. Na tentativa de enxergar melhor, aproximou ainda mais o rosto do conteúdo, os pés levantados o máximo que podia. As imagens formavam uma estranha cena, num local bastante escuro. Era como se ela estivesse assistindo tudo por uma janelinha instalada no teto. Não conseguia escutar o que as pessoas diziam. No segundo seguinte o nariz de Mia tocou o conteúdo da bacia e ela foi sugada para dentro, caindo com um baque surdo em frente a duas pessoas que conversavam. Ambas vestiam longas capas negras que ocultavam seus rostos. Olhou na direção delas e, levantando-se de modo rápido, apressou-se em dizer:

- Desculpe! É... eu não sei como isso aconteceu.

Mas logo percebeu que eles não podiam ouvi-la. Tentou chamar a atenção balançando as mãos diante deles, mas notou que também não podiam vê-la. E seu coração quase saiu pela boca quando eles começaram a andar e simplesmente passaram por ela, por dentro de seu corpo, como se ela não fosse sólida.

”Será que eu morri? Não é possível! Se morrer é isso, estou achando tudo muito estranho.”

Apressou o passo para seguir os dois, que agora não mais conversavam. Ao se aproximarem do muro de uma enorme construção, baixaram o capuz das capas e Mia levou um susto: aqueles dois se pareciam incrivelmente com...

- Rony, eu estou com medo! – a mulher de cabelos cheios e castanhos falava, um olhar amedrontando expresso no rosto magro e profundamente marcado por olheiras confirmando o que dizia. – Como vamos conseguir falar com ele? Acho que perdemos Harry para sempre, não deveríamos estar aqui.

- Você enlouqueceu, Hermione? Nós somos tudo o que Harry tem! Nós precisamos tentar salvá-lo antes que eles o executem. Não basta A Arma que já usaram contra ele – o rapaz ruivo ao lado dela falava, o rosto tão ou mais descarnado quanto o dela, mas com um traço de coragem que só poderia pertencer a alguém que não tem quase mais nada a perder.

Sem sombra de dúvidas, Mia sabia que aqueles dois eram seus pais, pelo menos 20 anos mais jovens e muitos quilos mais magros.

- Como você sabe disso, Rony? Como pode ter tanta certeza que eles já utilizaram? Eu disse que A Arma era apenas uma suposição minha, estudei o comportamento de Neville depois que ele foi banido. Procurei em vários livros e sei que apenas isso poderia fazer com que Neville ficasse do jeito que ficou. Mas até aí, será que eles estão mesmo usando nos Renegados?

- Logo vamos saber, Hermione. Não vamos conseguir fugir por muito mais tempo. Por isso, precisamos ajudar o Harry agora, antes que nossas únicas esperanças de acabar com tudo sejam destruídas. Anda, ponha esse capuz e vem comigo!

A cabeça de Mia entrava em parafuso enquanto corria atrás dos pais, que deveriam ser pouco mais velhos que ela naquele momento. Como ela podia ter voltado no passado? Como podia reviver aquelas cenas de uma vida que não era sua? E que lugar esquisito era aquele? Enquanto acompanhava o senhor e a senhora Weasley jovens, observou que nenhuma planta crescia ali e não havia nenhum ser vivo por perto. Era impossível dizer se era dia ou noite e o frio era de gelar os ossos, o que complicava a situação de Mia, pois ela estava apenas com uma malha leve de verão. Com os braços cruzados no peito para tentar espantar o frio, via sua respiração se condensar e subir enquanto cruzava o descampado, ladeando a construção. As paredes negras e altas não deixavam ver a fortaleza que se encerrava depois delas.

- Luna disse que eles deveriam estar por aqui. Venha... – o senhor Weasley jovem puxava a mão da senhora Weasley.

Logo encontraram o que procuravam, como Mia supôs. Mas ela não era capaz de enxergar do que se tratava realmente. O senhor Weasley sacou do bolso uma ripa comprida de madeira e, em silêncio, tocou a ponta de sua própria cabeça, fazendo o mesmo com a senhora Weasley em seguida. Mia ficou assombrada: ambos se tornaram algo parecido com um camaleão, pois não era mais possível distingui-los do resto da paisagem, a não ser quando se moviam. A ruiva já estava de olhos arregalados diante de tal feito dos pais. Mas sua boca se escancarou quando eles começaram a se mover como se estivessem montando em alguma coisa que Mia não conseguia enxergar. Em questão de segundos, seus pais estavam levitando pelos céus negros e ela os perdeu de vista.

”E agora, o que faço?”

A ruiva andou de um lado para o outro do muro, pensando em como poderia sair dali e continuar a seguir os pais. Lembrou-se de súbito que não conseguira tocá-los, o que significava que talvez, como um fantasma, pudesse ultrapassar as paredes. Fechando os olhos apertados, seguiu em direção ao enorme muro de pedra maciça e tocou-o com a mão, de leve. No entanto, não conseguia senti-lo, como se ele fizesse parte apenas do pensamento de alguém. Forçou um pouco o braço, receosa, e este atravessou facilmente a parede, fazendo com que a menina concluísse que só poderia ter virado um fantasma.

Forçou o corpo todo pelo muro e ultrapassou-o, com uma sensação estranha de rompimento de barreiras. Vira o material do qual o muro era feito, uma pedra negra e rústica, antes de sair do outro lado. Os olhos subiram até o topo de uma enorme construção feita do mesmo material que o muro. Ao redor dela, vários encapuzados pareciam levitar, como se patrulhassem o local. Mia começou a se sentir desconfortável, pensamentos tristes afluindo sem controle em sua mente. Podia ver as mãos cobertas de feridas daqueles seres que não pareciam ser humanos, além de suas respirações condensadas que saiam por debaixo do capuz negro e envelhecido. Antes que a tristeza tomasse conta, no entanto, lembrou-se de que precisava encontrar seus pais e correu o olho pelo terreno. Avistou-os ainda como camaleões, esgueirando-se por uma parede lateral. Eles estavam prestes a entrar na construção.

”Se meus pais não puderam me ver, estas criaturas também não podem.” - pensou Mia, correndo no encalço deles.

Ao alcançá-los, ambos iniciavam a descida de uma longa escada, fracamente iluminada por archotes acesos. O cheiro de morte era insuportável e infectava as narinas de Mia, provocando espasmos estomacais involuntários. A menina levou a mão ao estômago, sem deixar de seguir os passos dos pais. O senhor Weasley ia à frente, com a ripa de madeira empunhada como se fosse uma espada. Quando alcançaram o fim da escada, o que Mia viu e ouviu congelou cada músculo da ruiva, e ela não soube como continuou a caminhar. Em toda a extensão do corredor, várias celas sujas exalavam um cheiro insuportável. Em algumas era possível ouvir gritos desesperados de agonia, em outras apenas pequenos murmúrios, e naquelas onde o fedor era mais acentuado, o silêncio predominava. Estava numa prisão.

Olhou para seu pai, que pareceu vacilar por um momento. Sua mãe assumiu então a dianteira e tomou a ripa de madeira das mãos do senhor Weasley, que em seguida levara a mão à boca controlando uma tosse. Ao chegar à última cela do corredor, completamente silenciosa, a senhora Weasley apontou para o enorme cadeado enferrujado e murmurou algo que Mia não compreendeu. Com um estalo, a porta da cela se abriu. Dentro, a imagem da desgraça humana: um homem estava pendurado à parede por correntes grossas e apertadas que lhe cortavam o pulso. Estava tão magro que mal conseguia se mexer, mas por esse motivo era mais fácil perceber que estava vivo, graças à subida e descida inconstante do peito nu. Mia não conseguia despregar os olhos do homem, como se houvesse nele algo de familiar. Só percebeu que os pais haviam voltado ao estado normal quando eles entraram novamente em seu campo de visão, logo à frente do prisioneiro dependurado na cela. Lágrimas grossas escorriam pelo rosto de sua mãe, e seu pai tinha a expressão vazia.

- Harry... – a senhora Weasley murmurou entre dentes.

O homem abriu os olhos diretamente na direção de Mia. Não houve tempo para que ela processasse a idéia do susto. No instante seguinte, Mia sentiu um puxão e ouviu nitidamente:

- Acho que já viste o suficiente por enquanto, Wyrdfell.

A ruiva fechou os olhos com a claridade dos archotes que brilhavam na sala onde havia estado antes. Seus pés estavam novamente no chão, e as mãos apoiadas na borda da bacia. Girou a cabeça e avistou Bichento, que estava deitado no divã marrom e lambia as patas, completamente acomodado. Empoleirada no encosto do divã havia uma águia grande e marrom que batia o bico, ameaçadoramente, como se estivesse prestes a piar. Mia não conseguia desviar os olhos da criatura, que a encarava. Mas ao invés de piar, a ave fechou o bico e levantou vôo no exato momento em que se transformava, diante da visão apavorada de Mia, em um homem.

Incapaz de dizer qualquer coisa, Mia observava o estranho. Sua pele era alva e ele parecia não ter um único pêlo em todo o corpo, inclusive na cabeça, que brilhava com a luz dos archotes. Usava uma espécie de túnica verde esmeralda, com detalhes em marrom e dourado, as longas mangas cobrindo-lhe as mãos. Os olhos do humano eram exatamente iguais aos da águia, escuros e atentos. A orelha era ligeiramente pontuda no topo. E quando falou, a voz parecia ter acumulada em si toda a força e autoridade do destino.

- Mia Wyrdfell, eu sou Togira Ikonoka Obede Wyrda. Mais conhecido entre os Renegados como O Oráculo.

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