Na casa dos Dursley



Ainda estava escuro na Rua dos Alfeneiros, número 4, quando ele acordou com um sobressalto. A cicatriz palpitava na testa com força. Mais sonhos ruins, em que se misturavam o cemitério, os corredores, câmaras secretas e ofidioglotas. Mas já não lhe era mais estranho sentir tudo isso. Na verdade, esse sentimento fazia parte de seus dias, e, principalmente, de suas noites, desde que "Aquele que não deve ser nomeado" retornara.

Talvez se levantar da cama fosse o melhor, apesar de que não haveria muito o que pudesse fazer para aliviar o que sentia. Edwiges não voltara ainda do Largo Grimmald, com respostas da Ordem da Fênix para suas cartas. Aliás, ele mandou a coruja para a antiga casa dos Black por não saber direito para onde deveria encaminhá-la. De verdade, não sabia sequer se haveria alguém lá depois dos últimos acontecimentos. Ainda era difícil pensar em seu padrinho. Não havia lágrimas a derramar, porque elas estavam sufocadas por uma dor e um ódio que ultrapassavam os limites do racional e humano.

Mais uma vez ele estava encalhado na casa dos tios, sem saber o que seus companheiros estavam fazendo para deter Voldemort. A Ordem tinha cada vez mais adeptos, pelo que ele sabia. Muitos estavam dispostos a lutar para que o Lord das Trevas não retornasse. Mas ele também tinha consciência de que muitos outros também estavam se reunindo ao lado do Mal, ouviu até mesmo boatos de que os gigantes já haviam sido recrutados. Continuava tentando ouvir o noticiário embaixo da janela, escondido dos Dursley, de um jeito nada confortável. Provavelmente eles desconfiavam, mas depois dos acontecimentos com Duda e os dementadores, ali mesmo, do lado de casa, o medo de que Harry fizesse magias era muito maior do que a vontade de reprimi-lo. Fora o fato de que Tia Petúnia estava particularmente estranha desde o berrador que recebeu. Harry não fazia a menor idéia de quem poderia tê-lo mandado. Quem poderia ter dito aquela frase "Lembre-se, Petúnia"? Ele não conseguia imaginar. E, além do mais, lembrar-se do quê? Ele achava que ainda havia um mistério em volta da figura ossuda e com cara de cavalo da irmã de sua mãe. Quem era aquela estranha mulher, que detestava magia e tinha uma adoração infinita pelo gorducho filho e pelo marido sem pescoço? Que tipo de relacionamento ela tinha com sua mãe para odiar tanto o mundo mágico do qual Lílian fizera parte? Tia Petúnia mesmo já havia dito que a família de trouxas sentira orgulho de Lílian quando ela recebeu a coruja com a carta-convite para estudar na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.

Harry tinha várias suposições em relação a este relacionamento. Chegava a pensar que talvez seus avós maternos fossem bruxos, e que na verdade Petúnia era um ridículo e invejoso aborto, que precisava descontar em Harry toda a frustração por não ter poderes mágicos. Era tão pouco o que o nosso bruxo sabia sobre sua família que poderia passar meses especulando sobre possíveis parentescos bruxos.

Envolto em suas dúvidas, resolveu levantar-se da cama. Melhor do que voltar a dormir e correr o risco de ter pesadelos novamente. O que fazer para deter Voldemort? Será que Harry seria capaz de enfrentá-lo de novo e vencê-lo como havia feito, inocentemente, quando era bebê? Na verdade, não sentia forças para pensar nisso. Só não queria ter que sentir de novo a dor que a maldição Cruciatus lhe trouxera naquela noite em que venceu o Torneio Tribruxo. E que glória ganhou com isso, afinal? A glória do Torneio ficou apagada pela morte de Cedrico. E essa morte pesava em seu coração todos os dias de sua vida desde então. Pelo menos havia feito algo de bom com o prêmito ao tê-lo doado para as Gemialidades Weasley. Mas ainda se perguntava se havia feito a coisa certa. De qualquer forma, não precisava daqueles galeões, sua conta no Gringotes já estava bastante recheada, graças a seus pais, embora ele pensasse, com um aperto no coração, que daria todo o dinheiro do mundo para ter Lílian e Thiago ao seu lado agora, para estar com eles numa casa como A Toca, e não encalhado na Rua dos Alfeneiros, para... enfim... ter uma família melhor do que aquela. Ou melhor ainda, ter uma família, porque os Dursley não poderiam ser considerados sua família, apesar do parentesco de Petúnia com Lílian.

Absorto em pensamentos, desceu as escadas lentamente. Ainda estava escuro; uma escuridão fora do normal, foi obrigado a reparar, e ficou pouco a vontade com isso. Ofegou e continuou descendo os degraus com a nítida sensação de que havia algo atrás de si. A cicatriz formigava. Virou subitamente, como se pretendesse assustar alguém (ou algo), mas não havia nada lá, a não ser a escuridão do início da escada. Sentiu-se tonto, e um frio gelado tomou-lhe a nuca, como se tivesse acabado de sofrer um Feitiço da Desilusão. Lembrava-se de quando foi submetido a esse feitiço e quase congelara na vassoura rumo ao Largo Grimmald. Mas gostaria muito de, nesse momento, voar para lá. Estar perto daqueles que considerava uma família, já que havia perdido a sua para o Lord das Trevas.

Um ódio mortal acometeu-o intensamente. Por que aquilo tudo estava acontecendo de novo? Por que o desaparecimento e a falta de notícias, e o abandono com seus tios que odiavam o mundo da magia que ele tanto amava? Não fazia o menor sentido. "As corujas podem ser interceptadas, Harry". Já começava a encarar isso como desculpas para que não lhe contassem o que estava acontecendo.

Então veio o grito. Um grito desesperador. Harry tapou os ouvidos, pensando o que poderia ser aquilo. Sentia-se tonto, com vontade de se esconder. Era um grito agudo, pior do que o dos sereianos quando abriu o ovo no Torneio Tribruxo fora da água morna no banheiro dos monitores. Não fazia o menor sentido. Harry se esforçava para permanecer atento, sem cair da escada, olhando para todos os lados para descobrir de onde vinha o som. Era desesperador, um grito de agonia, de alguém que está sentindo uma dor intensa e... e... mortal.

De repente, o grito foi interrompido pela luz do sol, e Harry se viu sentado na escada, tapando os ouvidos, como se tentasse fugir. Não entendeu muito bem quando os raios solares bateram na lente de seus óculos e causaram um incômodo reflexo. Piscando um pouco mais para se acostumar à claridade, olhou ao seu redor novamente e não viu nada de anormal. Pensou nos tios. Como não haviam acordado com aquele grito ensurdecedor? Por que não estavam gritando como loucos, perguntando o que Harry havia aprontado daquela vez? Tomado de coragem, continuou a descer as escadas e abriu a porta da cozinha, onde a família Dursley calmamente tomava café da manhã. Duda discutia com a mãe o fato de ela ter servido uma única cenoura para ele. Harry estava arrependido de ter jogado os bolos de Rony e Hermione fora. Com a maldita dieta de Duda, a casa toda entrou na brincadeira. E Harry, que já não recebia os melhores pratos de comida na casa dos tios, andava comendo menos ainda.

Mas isso não fazia a menor diferença, já que fome era a última coisa que ele sentia. Pelo contrário, seu estômago estava embrulhado e ele seria capaz de afirmar que nunca mais comeria. Sentia-se mal, ainda tonto do choque do grito. O que foi aquilo? Harry não sabia. E isso o preocupava. Como escreveria aos membros da Ordem contando o estranho fato sem que tivesse sua coruja interceptada? Que outro meio poderia enviar informações sem se comprometer? "Pense, Harry, pense".

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