O Livro sem sentido, o amor co

O Livro sem sentido, o amor co



Segundo Ato - O Livro sem sentido, o amor compreendido.

As letras impressas naquelas páginas velhas, amareladas e empoeiradas já não faziam sentido algum. Mas ela tinha paixão por coisas sem sentido. Era algo que não podia controlar, mas coisas sem razão sempre a atraíram. Justo ela, a garota que adorava lógica e situações onde precisava racionalizar os fatos. Talvez fosse algo meio selvagem no ilógico que chamavam tanto sua atenção. Coisas que não fechavam com o padrão. Coisas que por motivo nenhum (ou talvez por todos os imagináveis) roubavam seu olhar.

Sentiu o cansaço arder em seus olhos, que ela forçava a entenderem aquelas frases que pareciam ter sido escritas ao acaso. Olhou ao redor e logo entendeu o porquê de tanta dor no corpo e na mente. Estava quase amanhecendo. Caminhou até a janela e viu os primeiros raios de sol daquele domingo colorirem o céu azul. Seu cérebro acusou uma pequena sombra no jardim, mas seus devaneios encobriram qualquer suspeita. E também se fosse um aluno fora da cama não seria ela quem iria castigá-lo. Pelo menos não hoje. Estava cansada demais.

Cansada de tudo.

Lembrou-se dos amigos e de suas palavras de apoio.

“Falta pouco”.

Apesar de saber que sentiria muita falta daquela escola e de todos que conviveram com ela durante quase sete anos, sabia que somente quando fosse embora poderia livrar-se de um fantasma que a perseguia noite e dia.

“Que belo fantasma eu fui arranjar”, brincou com sua própria dor.

Um fantasma de cabelos vermelhos e olhos azuis profundos que insistia em assombrar seus pensamentos quando ela menos precisava. Um fantasma que a alegrava e destruía apenas com um olhar. Com palavras banais conseguia leva-la ao céu e traze-la de volta. Aquele que já a deixara orgulhosa e que também já a decepcionara. Aquele que magoara seu coração de forma tão profunda que chegou a pensar que jamais iria se recuperar.

Mas ela sempre dava a volta por cima, pois, quando menos esperava, o sorriso do rapaz alagava seu coração e preenchia sua alma de tal modo que a fazia pensar “por que não?”.

Sentou-se novamente na cadeira de outrora e apoiando o queixo nas mãos e os cotovelos na mesa, retomou a leitura.

“Por que ele tem que ser tão idiota algumas vezes e tão perfeito em outras?”.

Descobriu-se então, novamente, apaixonada pelo seu melhor amigo. Tentara de todos os modos apagar a paixão e ocultar os sentimentos, mas pequenos acontecimentos rotineiros muitas vezes sem importância aparente faziam-na perder o controle da situação e sempre, mais uma vez, descobria-se apaixonada por ele.

“Ele simplesmente me fascina!”.



‘Ele estava em pé no fim do gramado. Parado. Encostado na parede como se pensasse em tudo e em nada ao mesmo tempo. Os cabelos vermelhos desarrumados por causa do vento davam um ar gracioso àquele rosto de quase-homem. Ela correu para encontrá-lo, transformando a alegria em vê-lo em um sorriso. Estivera a sua procura.

- Procurei você o dia inteiro! Onde se meteu? –perguntou, aproximando-se.

- Estava por aí – ele respondeu, com um sorriso nos cantos dos lábios.

- Você estava magnífico no jogo, ontem. Não tive tempo de te falar. – “Deus, quando ele ficou tão atraente?”.

- Ah, não foi nada de mais – ruborizou, modesto.

- Eu acho que foi brilhante! – sem conseguir conter o impulso, subiu na ponta dos pés e beijou-lhe a face. Em seguida correu pelo gramado novamente, corando.

“No que eu estava pensando?”, pensou enquanto se afastava.

A palpitação que sentia no peito quando via o ruivo já fazia sentido, mas ela sempre reprimia os pensamentos quando pensava no motivo.’



‘Ela tinha feito uma descoberta muito importante. Precisava informar aos seus dois melhores amigos o mais rápido possível. Agarrou o livro muito volumoso e empoeirado que sempre lia para passar o tempo e desceu em disparada para o Salão Comunal. Parada no meio da escada viu os dois meninos muito concentrados em um tabuleiro de xadrez que se mexia sozinho. O garoto de olhos muito verdes e cabelos muito negros e muito bagunçados tinha uma ruga no meio da testa e apertava os dedos das mãos, nervoso. Já o menino de cabelos vermelhos, sardas e olhos muito azuis e profundos tinha os lábios contraídos em um sorriso vencedor e um olhar superior, sem ser esnobe.

Sentiu um arrepio correr-lhe a espinha e eriçar os pelinhos de seu braço de menina. Hipnotizada por aqueles olhos cor de céu e mar, ficou sem fala. Sacudiu a cabeça, e repreensão pelos pensamentos e desceu as escadas batendo os pés.

- Encontrei! – o garoto olhou fundo em seus olhos. – Não sei como pude ser tão ingênua!’


‘Ela estava com medo. Temia por seu amigo que estava frente a frente com um enorme bicho metade pássaro metade cavalo que a qualquer momento poderia ataca-lo e feri-lo gravemente.

Mas todos sabiam que aquilo era apenas metade do motivo.

A outra parte era o garoto de cabelos vermelhos ao seu lado, que estava pálido e suava frio, nervoso também. Estavam lado a lado e um pequeno movimento de folhas secas no chão fizeram-na erguer o braço e tocar-lhe o ombro com a ponta dos dedos. Sentiu que o sol esquentara ainda mais seu corpo naquele momento. Manteve os olhos no animal, ainda mais nervosa.

Alguns passos do garoto de olhos verdes e cabelos espetados fizeram-na agarrar a mão direita do ruivo que estava ao seu lado, meio sem jeito. Por um segundo o medo passou. Sentiu-se segura. Em seguida o embaraço da situação atingiu-lhe a face, corando. Sentiu a pele macia do rapaz sob sua mão e o calor dos dedos misturando-se. Remexeram-se, os dois, no lugar e lançaram um olhar de esguelha para acompanhar a reação do outro.

Os dois muito vermelhos. Muito suados. Muito nervosos.

Ela sentiu, então, medo.

Medo de seus sentimentos.

Medo de ser repelida.

Medo de estragar toda a amizade.

Medo de não conseguir esquecer o calor da pele dele.

Medo de querer tocá-lo novamente.

Medo de não poder viver sem tê-lo.

Medo de jamais viver aquilo.’



Aquele rapaz sempre a tirava do sério. Não importava o que dissesse. Sempre fora assim. Quando brigavam ou não. Até mesmo quando ficavam dias sem olhar um na cara do outro, ainda assim ele mexia com ela. Apenas seu perfume fazia sua cabeça revirar-se e um sorriso se formar no canto dos lábios. Queria estar sempre perto dele. Ele a fazia sentir-se segura, como se nada no mundo pudesse atingi-la. Seus braços fortes eram como uma fortaleza para ela. Era corajoso e engraçado. Um humor inteligente que sempre lhe arrancavam risos até em horas inapropriadas. E ela deliciava-se de suas palavras. Quando conversavam muito próximos no Salão Comunal e ela sorvia seu perfume suave que amortecia seu corpo, ficava completamente sem ação. E quando olhava fundo nos seus olhos azuis, sentia-se atraída por eles, como se fosse sugada para dentro, para nunca mais voltar. Como se ele entendesse seus pensamentos apenas com um olhar.

Até mesmo quando ele era um ‘legume insensível’ conseguia ser belo e charmoso. Ela poderia xinga-lo e negar-se a falar com ele, mas lembrava que era apenas por alguns minutos, que logo ele voltaria a ser atencioso, desastrado, engraçado, corajoso e simplesmente perfeito.

Quando ela o via jogando xadrez, segurava-se para não se precipitar e cometer uma burrada. Ele parecia maravilhosamente adulto e dono da situação. E era. Como ele sempre ganhava, adorava esperar pelo fim da partida para vê-lo com sua pose de vencedor imbatível que o era. Estufava o peito e ela deliciava-se com seus traços e sua energia. Tentara ignorar o sentimento que crescia dentro de seu peito, mas toda vez que o via, que sentia seu perfume tinha vontade de...

“Ele me odiaria!”

Sempre que sentia seu perfume tinha vontade de abraça-lo, mas tinha medo da reação do amigo. Medo de que, ao selarem os lábios, ele a odiasse para sempre, destruindo até mesmo os laços de amizade que duraram todos esses anos e superaram todas as dificuldades.

“Ele me repeliria!”

Muitas vezes sonhara com o dia em que teria coragem e roubaria um beijo do ruivo, mas os sonhos viravam pesadelos e após separarem os corpos ele a empurrava para longe e questionava sua sanidade, pedindo que nunca mais fizesse aquilo.

“Ele me ignoraria pra sempre!”

Seria o fim para aquela garota que estava quase virando uma mulher. Ela prezava demais a amizade dos dois para arriscar tudo por um beijo, mesmo sabendo que iria enlouquecer se jamais descobrisse o gosto daqueles lábios vermelhos.

“Ele...”


O sono atingira-lhe ainda mais forte e seus braços não agüentaram a fadiga mental e física e sua cabeça desabou sobre o livro de Poções que já estava esquecido faz um bom tempo sobre a mesa. Adormeceu ainda pensado no que aconteceria se finalmente confessasse ao seu amigo o amor que nutria e mantinha em segredo dentro de si há muito tempo. Um amor que tentara impedir de aflorar, mas toda vez que o rapaz tocava-lhe ou sorria-lhe era como se regasse a semente já alojada no fundo da alma.

“Como uma praga que ao menor sinal de água e adubo se espalha até que fique impossível de controlar”.

Deixou-se levar pelo sono leve, os cabelos agora espalhados sobre a mesa. Sentiu uma lágrima solitária trilhar um caminho dos olhos até o canto da boca, sentindo o gosto salgado de sua dor.

Achou que fosse apenas sua imaginação quando ouviu o retrato da Mulher Gorda ranger na outra extremidade da sala, apenas suspirou. Ouviu então passos furtivos entrarem pelo buraco e parar atrás de si.

Se fosse um aluno teria que dar uma advertência e uma detenção, afinal ela era a monitora-chefe. Aquele que estivesse fora da cama numa hora daquelas estava com problemas.

Ao sentir aquele perfume tão familiar e desejado soube que quem estava com problemas era ela.



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