O vento nos cabelos, a duvida
[br]Primeiro Ato - O vento nos cabelos, a dúvida no coração![/br]
O céu estava assumindo um tom alaranjado, prevendo o sol que faria naquele dia. A sala estava vazia, abandonada. Ou pelo menos era o que deveria acontecer, a julgar pela hora. Realmente muito cedo. Ele atravessou a porta e adentrou no cômodo, pé ante pé, procurando fazer o mínimo de barulho possível, tentando não acordar ninguém. Seria muito incomodo se isso acontecesse. Inúmeras explicações seriam requisitadas, discussões seriam iniciadas juntamente com uma infinita dor de cabeça. Ele não estava querendo ouvir bronca de ninguém. Exatamente por isso que levantara de sua cama quando a lua estava alta e voltava apenas agora, quando ela ainda brilhava em um céu claro já rosado. Os pensamentos não o permitiram fechar os olhos em paz durante a noite. Ao atravessar a porta, algumas horas atrás, esperava que o vento forte arrancasse de sua cabeça aqueles pensamentos perturbadores que o preocupavam há muito tempo. Ao atingir os jardins, o vento o alcançou e despenteou seu cabelo. Foi obrigado a encolher os ombros e segurar seus próprios braços numa tentativa de conter o frio resultante da noite gelada. Caminhou sem destino, sem pensar, sem se importar.
Os pensamentos o seguiam, atormentando sua mente, que gritava para que deixassem-no em paz. Sabia que não seria atendido, pois questões que perduram por muito tempo, tornam-se permanentes no inconsciente e, quando menos esperamos, estão nos importunando novamente.
“Ótimo!”, pensou cinicamente.
Tudo o que ele tentava era tirar sua cabeça de certos pensamentos, e quanto mais tentava, mais era engolido por eles. Como agora. Estava pensando nela novamente. Mas era permitido pensar nela, não era? Não há mal algum em pensar em uma pessoa, principalmente se a conhece há mais de seis anos. Mas essa não era a questão. O fato era muito mais complicado do que parecia, à primeira vista. Ela não era uma pessoa qualquer. E seus pensamentos não eram pensamentos quaisquer. Eram incontroláveis, isso sim. E ele sentia vergonha por pensar coisas assim. Não eram coisas ruins, exatamente, apenas eram pensamentos que, sendo referidos àquela pessoa, faziam-no sentir-se mal.
“Não posso!”.
Mas não era capaz de conter-se. Já tinha passado por muitas noites parecidas com essa, em que não conseguira dormir por achar que não devia pensar nela daquele jeito. Ele simplesmente não podia evitar. E noites assim sempre eram precedidas de dias maravilhosos onde ele admirava-a profundamente, independente do motivo.
[i]‘Ela atravessara o jardim correndo em sua direção, alegre. Os cabelos castanhos e volumosos batendo-lhe as costas, os tornozelos nus, o sorriso estampado no rosto.
- Procurei você o dia inteiro! Onde se meteu? – ela perguntou, aproximando-se.
- Estava por aí – “Merlim, quando foi que ficou tão atraente?”.
- Você estava magnífico no jogo, ontem. Não tive tempo de te falar. – elogiou, corando.
- Ah, não foi nada de mais – ruborizou, também.
- Eu acho que foi brilhante! – beijou-lhe a face, furtivamente, antes de desaparecer novamente pelo gramado, deixando-o com cara de bobo, muito embaraçado.
“Que diabos eu estou pensando?”.
Não encontrava sentido naquela palpitação em seu peito que sempre sentia ao vê-la se aproximar.’
‘- Encontrei! – gritou a menina, batendo os pés, pela escada. – Não sei como pude ser tão ingênua!
Trazia consigo um muito volumosos e empoeirado livro que dissera estar lendo para passar o tempo. Os cabelos ainda mais cheios do que outrora caiam sobre seus ombros de criança.
- Eu mandei vocês procurarem na seção errada! No que eu estava pensando? Uma informação importante como esta estaria muito mais bem guardada do que pensamos. A Seção Reservada! É lá que devem procurar.
Sua expressão era um misto de frustração e alegria e fazia o peito do rapaz arfar sem saber o motivo. É claro que pensou que fosse a ansiedade perante as informações que ela estava repassando a ele e ao amigo de olhos muito verdes e cabelos muito negros e muito bagunçados.’
‘Não estava exatamente com medo, apenas apreensivo ao enorme bicho meio pássaro meio cavalo que o encarava e os colegas naquele dia claro e quente. Seu melhor amigo estava realmente muito próximo e qualquer um em sua situação suaria e se sentiria nervoso.
Mas todos sabiam que aquilo era apenas metade do motivo.
A outra parte era a garota de cabelos cacheados ao seu lado, que arfava e enrugava a testa, nervosa também. Inquieta quanto ele, ao menor mover de folhas secas no chão tocou-lhe o ombro com as pontas dos dedos. Aquele toque o fez achar que o dia ficara ainda mais quente. Engoliu seco e continuou a encarar o infinito.
Alguns passos do garoto de olhos verdes e cabelos espetados fizeram-na agarrar-lhe a mão direita, meio sem jeito. Ela estava com medo. Ele confuso. Sentiu a quentura subir-lhe pelos dedos até o rosto, que ruborizou.
Sentiu seu mundo girar bem em frente aos seus olhos. Remexeram-se, os dois, no lugar e lançaram um olhar de esguelha para acompanhar a reação do outro.
Os dois muito vermelhos. Muito suados. Muito nervosos.
Ele sentiu, então, medo.
Medo do que sentira.
Medo de sentir aquilo novamente.
Medo de não poder parar de sentir aquilo.
Medo de querer tocá-la novamente.
Medo de não poder fazê-lo.
Medo de não poder viver sem tê-la.
Medo de jamais entender tudo aquilo.’[/i]
Ele realmente não entendia. Até agora. Durante muito tempo ficou sem entender. Talvez, em seu íntimo, o fizesse, mas jamais admitira nem em pensamento. Pior. Não se permitia sentir. Se aquilo que sentia era o que pensava, ele jamais se permitiria levar aquilo adiante. Ela era sua melhor amiga e jamais retribuiria qualquer sentimento.
“Mas não há sentimento”, tentava se enganar, inutilmente, pois seu coração apertou-se ao pensar nessas palavras.
Fatos deveriam ser encarados. Quando estava na presença da garota, mal podia andar, sua respiração falhava e aquilo parecia tão certo. Quando estava longe dela, pensava no tempo em que estiveram juntos, repreendia-se por estar pensando naquilo e odiava-se pelo que negava estar sentindo. Não havia como negar que ficava completamente sem ação em sua frente, quando mirava fundo os olhos cor de chocolate e sentia o cheiro adocicado da pele suave.
Até mesmo quando discutia ela era brilhantemente perfeita. Toda cheia de si e senhorita-sabe-tudo. O modo como o sangue subia no seu rosto e ela fazia aquele barulho com a garganta, quando já não agüentava mais. Ser chamado de legume insensível por aquela voz macia até que não era tão ruim. Toda vez que ela o irritava ele tinha vontade de fazer-lhe calar a boca. Ele queria...
“Não posso! O que ela diria?”
Sempre ficava tentado a descobrir. Queria poder matar sua curiosidade. Queria saber o que ela faria se ele a abraçasse subitamente e juntasse seus lábios nos dela. Queria descobrir as sensações que sentiria ao sentir o cheiro dela tão de perto.
“Não posso! O que ela faria?”
Mais uma vez sentiu um desejo por descobrir. Será que ela o repeliria? Será que espalmaria sua mão sobre a face dele? Será que... será que iria gostar?
“Não posso! Como poderia olhá-la depois?”
Será que iria querer sumir? Será que iria rir? Será que iria querer mais?
“Não posso!”
As dúvidas eram tamanhas que o fizeram esquecer que estava caminhando e quando percebera, já estava novamente no lugar de onde partira. E estava ficando claro. Iria amanhecer a qualquer momento e ninguém poderia pegá-lo fora da cama.
Estava exausto. Precisava dormir enquanto ainda tinha tempo. O dia de domingo estava nascendo juntamente com a certeza de que aquele sentimento já era irreversível.
“Como veneno que se espalha pelo sangue. Consome por dentro, impossível de livrar-se”.
Subiu as escadas de mármore do castelo e, chegando a um quadro de uma mulher muito gorda num vestido rosa de cetim, falou a senha, quase sussurrando.
Espremeu-se pelo buraco e viu o salão que já recebia os primeiros raios alaranjados o domingo. Cuidava muito para não fazer barulho. A sala deveria estar vazia àquela hora, mas qualquer descuido poderia render-lhe uma detenção, mesmo sendo monitor-chefe. Principalmente sendo monitor-chefe.
Quando o retrato atrás de si fechou-se, rangendo as esquadrias ele imobilizou-no lugar. De um canto escuro ouviu um suspiro prolongado.
Tinha certeza que estava com problemas.
Ao ver os cabelos castanhos espalhados sobre a mesa, soube que seus problemas acabaram de ficar ainda maiores.
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