Shangri-La



AVISO: Pessoal, antes de iniciar o capítulo, deixa eu dizer uma coisa.

Atendendo a pedidos e visando manter a minha integridade física, eu resolvi juntar os dois capítulos seguintes em um só. Portanto, o capítulo a seguir está maior do que os anteriores. Apesar de condensar um pouco, não dava para tirar muita coisa. O que não era essencial para o desenvolvimento do capítulo e ainda for relevante eu vou inserir no decorrer da estória.

Agora, vamos ao cap. Depois eu comento mais.


Capítulo 04 – Shangri-La




Você sabe onde fica o topo do mundo? O lugar mais próximo de Deus, mais próximo do infinito cosmos? Este lugar fica no Himalaia. A grande cadeia montanhosa, localizada no planalto tibetano, possui as maiores montanhas do planeta. O monte Everest, com 8.844 metros, o K2 (Também chamada de montanha da morte) com 8.611 metros e o Kanchenjunga, com 8.598 metros, entre outras. Estas montanhas são procuradas por alpinistas de todo o mundo, que desafiam os perigos e as adversidades do clima das montanhas para estarem onde é quase impossível sobreviver, no topo do mundo.



O que a maioria dos trouxas não desconfia é que, incrustada num pequeno vale entre duas montanhas, existe uma civilização antiga de bruxos, devidamente protegida por feitiços que evitam a curiosidade dos que se aventuram pelas montanhas. Sempre que algum alpinista tenta escalar as montanhas que protegem a cidade, uma tempestade de neve assola a região, acontece uma avalanche ou o alpinista simplesmente sente-se doente no dia da escalada. A cidade, milenar, não possui uma população muito numerosa. É formada por um palácio no estilo dos antigos palácios do Japão e China feudais, que também serve de escola, localizada num pequeno aclive no centro do vale. Trata-se de um prédio baixo, em formato quadrangular, com um pátio no centro. O prédio é dividido em uma sala do conselho de anciões, o local destinado para reuniões e as decisões importantes da comunidade. Depois, as salas de aula, os dormitórios, o refeitório e a sala de armas. Não é um prédio luxuoso ou ostensivo, pois uma das premissas da cultura de Shangri-La é a humildade, a busca pela paz interior, da convivência pacífica entre as pessoas, do equilíbrio entre corpo e espírito, a busca pela utopia enfim.


Porém, engana-se quem julgar que esta comunidade é apenas de aldeões simplistas. Nos corredores do castelo, estátuas de ouro, representando divindades pagãs, homenageando a deusa terra ou animais considerados sagrados em culturas ancestrais estão dispostas. Bustos de bronze, utensílios de prata, são normalmente vistos em todas as casas do vilarejo. Suas espadas possuem rubis e esmeraldas incrustadas nos cabos, bem como em suas bainhas, feitas a mão por ourives e artesãos caprichosos. Em uma sala, escondida atrás da sala do conselho, um tesouro em ouro e prata existe para eventuais necessidades, porém a muito não existem guardas em sua porta.


Em volta do castelo, estende-se a vila. Também em estilo feudal, formada por pequenas casas e vielas, um pequeno mercado e uma pequena escola para as crianças, onde estas recebem os conceitos básicos antes de ingressar na escola preparatória dos Dragões Brancos, homens treinados para encontrar o equilíbrio entre as artes marciais, a magia e a mente humana. São responsáveis não apenas pela segurança dos moradores como pela segurança nas montanhas também, pois outro “mito” difundido para os trouxas durante séculos é a mais pura verdade.




Nas montanhas que circundam Shangri-La, vivem os Yetis. Também chamados de Abomináveis Homens das Neves, de homens estas criaturas nada possuem. São seres com mais de três metros de altura, pelos brancos como a neve, que os ajudam a se camuflar no ambiente onde vivem. Presas salientes, olhos vermelhos e injetados, garras de aproximadamente quinze centímetros, capazes de destroçar o troco de uma árvore com um só golpe. Um elo perdido, mistura de Símeo e Gigante, possuem pouca inteligência e vivem em pequenos bandos mais por puro instinto, apesar de saberem se comunicar rudemente. E são carnívoros. Seu prato preferido são os alpinistas, que alheios a mais este perigo das montanhas se aventuram em perigosas escaladas. A missão dos Dragões é proteger os alpinistas. Nem sempre funciona, sendo comum alpinistas desaparecerem sem deixar rastros. Para evitar um número ainda maior de mortos, um feitiço lançado há muito tempo criou nos trouxas o costume de “deixar para a montanha” aqueles que ali perecessem. Nem todos os mortos no decorrer dos últimos séculos foram vítimas dos Yetis, obviamente. Mas uma grande maioria, sem dúvida. Outra função dos Dragões é a defesa da própria Shangri-La, pois em épocas de escassez de alimento nas montanhas, a aldeia é atacada por estes seres e lutar pela sobrevivência se torna necessário.



Outro detalhe pitoresco sobre esta comunidade é o fato dela ser “O santuário Das Aves Fênix”. A centenas de anos, a cidade é moradia constante dos últimos exemplares desta raça, que vivem tranqüilamente na região. As aves escolhem uma família ou uma pessoa pela qual sentem empatia e se juntam a ela, até sua morte. Depois, podem ficar com seus descendentes ou escolher outro parceiro. Não pertencem a ninguém, são livres para ir e vir. Poucas pessoas no mundo bruxo sabem da existência desta cidade e muito menos sobre as Fênix que ali vivem. Entre eles, Merlin e Alvo Dumbledore, que em sua visita fez amizade com uma das aves, Fawkes, que seguiu com ele para a Inglaterra. Dos poucos que procuraram, poucos conseguiram chegar e praticamente nenhum quis deixar aquele lugar maravilhoso depois.




Há oitenta anos o homem responsável pela administração da cidade chama-se Kwai Chang Caine. Mestre Caine é o líder do conselho, o bruxo mais velho, hoje, com mais de duzentos anos. Um homem sábio e generoso, cuja maior ambição é levar Shangri-La à paz e harmonia.






Era madrugada, uma noite fria estava chegando ao fim, sob uma leve nevasca. Mestre Caine acabara de receber uma mensagem trazida por Xanthia, a Fênix de Ziang, o jovem bruxo que estava a mando dele junto dos traidores. A notícia deixou-o profundamente consternado. No fundo de seu coração ele ainda tinha esperanças de que seus antigos pupilos se arrependessem do que estavam fazendo e voltassem para casa. Sentado sob uma árvore, no lado ocidental do pátio, mais uma vez retornou ao passado, relembrando os fatos que haviam levado sua bela comunidade à cisão e guerra civil.




Vinte anos atrás, um jovem bruxo fora encontrado nas proximidades da cidade. Foi recolhido pelos vigias e tratado. Depois de alguns dias, o jovem conseguiu se levantar e contou sua história. Chamava-se Wang Chú. Era nascido na Mongólia, ficou órfão muito cedo e passou a viver nas ruas de Ulaanbaatar, capital do país. Aos doze anos, descobriu que era bruxo. Também nas ruas ele ouviu falar da lenda sobre Shangri-La e decidiu procurá-la. Por dez anos ele buscou informações no submundo de várias cidades, como Pequim e Kuala Lumpur, até que conseguiu pistas sobre a localização da cidade e partiu a sua procura. Enfrentou sozinho as adversidades das montanhas e, quando seu corpo não resistiu mais, entregou-se à morte ali, o mais próximo possível de seu objetivo. Foi então que os vigias o encontraram, a três milhas de seu objetivo.



A história de Wang Chú comoveu os membros do conselho, com exceção de mestre Caine. Ele não gostou do brilho nos olhos do jovem, sentiu que este não demonstrava a verdadeira intenção que o levara até ali, mas foi voto vencido na decisão de acolhê-lo. E assim Wang Chú ingressou nos Dragões Brancos. Durante os dez anos que se seguiram, mestre Caine não pode se queixar da dedicação e do empenho do jovem discípulo perante os estudos. Chú era o mais aplicado e o melhor aluno em todas as disciplinas, destacando-se em combate corpo-a-corpo e esgrima. No final destes dez anos, Chú já atingira o mais alto nível dentre os Dragões, divididos da seguinte forma:



- Faixa Azul – Para os principiantes;
- Faixa Verde – Intermediário;
- Faixa Vermelha – Avançado;

Depois destes três estágios, os alunos se tornavam mestres em armas e magia, que também eram divididas em três, sendo:


- Faixa Preta;
- Faixa Prata;
- Faixa Dourada.


Quando o aluno atingia o nível prata, este podia se tornar instrutor e orientador. Foi quando Chú atingiu este patamar que mestre Caine voltou a se preocupar com o rapaz. Percebeu que este começou a usar seu poder para influenciar os mais jovens. Era uma pessoa carismática e ao mesmo tempo cativante, de modo que não tinha dificuldades em dominar alguns dos jovens. Começaram a chegar em seus ouvidos que Chú, pelo fato de ser um dos Dragões mais graduados tinha a pretensão de ingressar no conselho administrativo da cidade. Sempre que um membro do conselho sentia-se muito velho, inapto para continuar suas funções, pedia afastamento e indicava um novo membro para substituí-lo. O membro mais velho e provavelmente o próximo a se afastar seria mestre Caine, que por lógica seria substituído por um de seus discípulos, que também assumiria a direção da escola e teria grande influência política na comunidade. Foi neste período que ele chamou Ziang e lhe pediu ajuda. A partir daí o jovem que estava no mesmo nível de Chú se aproximou e fingiu compartilhar as idéias deste, conseguindo no decorrer do tempo adquirir sua confiança.



Não demorou muito para Chú atingir o nível máximo, o dourado. Também começou a ficar claro para mestre Caine, o verdadeiro perfil do rapaz, toda sua ganância e arrogância. Porém sua máscara só veio a cair a quatro anos.


O velho ancião suspirou, ali sentado com suas lembranças e voltou ao passado, ao dia mais importante de sua vida antes daquela madrugada:


Já era noite e mestre Caine se preparava para dormir quando ouviu o Canto da Fênix. Não era normal ouvir as aves cantando em Shangri-lá, quanto mais um coro de aves cantando. Saiu de seu dormitório e seguiu o canto das aves. Mesmo com seus duzentos anos, Kwai Chang Caine nunca tinha visto uma cena como aquela. Uma revoada de Fênixes. Dezenas de aves voavam em círculo nas imediações da cidade, sobre um ponto específico. Lá chegando, mestre Caine, seguido de vários de seus pupilos encontraram um rapaz caído na neve. Na verdade, a neve sob o estranho havia derretido e ele estava agora dentro de uma poça d’água. De seu corpo ainda espiralava em direção ao céu pequenas colunas de fumaça e vapor, em decorrência à alta temperatura que enfrentara e ao choque térmico causado pela imersão na neve. Estava muito ferido, com queimaduras por todo seu corpo. Sobre ele, outro grande número de aves chorava, derrubando sobre as profundas feridas suas lágrimas. Comandando o ritual, uma velha amiga que olhou para ele e piscou, como se estivesse pedindo ajuda. Também estava muito ferida, devido às queimaduras que sofrera. Em seguida, prorrompeu em chamas e caiu, em forma de um monte de cinzas sobre a neve.



Assim que as aves pararam de derrubar suas lágrimas sobre o rapaz, este foi transportado para uma cabana. Nada encontraram junto com o jovem, além de seus óculos, quebrados, e um pedaço de sua capa, rasgada e queimada. Suas roupas também estavam deploráveis e foram destruídas. O rapaz foi tratado pelos mestres curandeiros da cidade. Disseram que, se ele não tivesse sido tratado urgentemente com as lágrimas de Fênix e depois com as poções e a magia milenar deles, provavelmente não teria sobrevivido. Seu corpo fora tratado, mas o jovem não acordava. Estava em coma profundo. Quando mestre Caine perguntou aos mestres curandeiros qual a enfermidade que assolava o rapaz, eles responderam:



- Não há mais nenhum problema físico com ele. Pelo que pudemos apurar e levando em consideração o estado em que chegou, ele deve ter feito um feitiço muito poderoso ou muito errado, que consumiu quase toda a magia de seu corpo. Ele precisa recarregar seus poderes, readquirir sua magia, por isso não acorda. Seu corpo está se recuperando do grande desgaste, só acordará quando estiver plenamente recuperado.
- E quanto tempo deve levar? – Perguntou mestre Caine.
- Não podemos dizer. Vai depender única e exclusivamente dele.




E assim os dias e os meses se passaram. O jovem continuava dormindo serenamente. Mestre Caine e os curandeiros cuidavam dele pacientemente, esperando que acordasse a qualquer momento. Quando o coma já durava aproximadamente quatro meses, um dos discípulos de mestre Caine pediu-lhe autorização para cortar os cabelos do paciente. Era costume em Shangri-lá os cabelos raspados e os do rapaz estavam já passando dos ombros. E assim foi feito no final da tarde, quando cuidaram de sua higiene.



Na manhã seguinte mestre Caine foi chamado com urgência à ala hospitalar. Quando chegou, levou um grande susto. O cabelo do rapaz havia crescido novamente durante a noite. Não estava do mesmo cumprimento que o dia anterior, mas havia crescido consideravelmente. Passado o susto, não conseguiu reprimir um sorriso e disse:


- Bom, parece que nosso jovem amigo não aprovou o novo visual. Deixem-no com seus cabelos negros e espetados, quando ele acordar veremos o que fazer. E parece que não vai demorar muito, é óbvio que seu poder mágico está voltando. Só um bruxo poderoso poderia fazer o que ele fez mesmo estando inconsciente...




Finalmente numa manhã de dezembro, pouco depois de fazer seis meses que o jovem havia aparecido, ele finalmente acordou. O mestre ancião estava ao seu lado, e sorriu ao ver os brilhantes olhos verdes do rapaz fitando-o. Entregou-lhe os óculos gentilmente e disse:



- Fico feliz que tenha resolvido se juntar a nós no mundo dos vivos meu rapaz. Posso saber com quem estou falando?
- Como? – Disse o jovem com a voz rouca, devido o longo tempo sem utilizá-la – Quem é você?
- Meu nome é Kwai Chang Caine. Você foi encontrado nos arredores de nossa cidade, extremamente ferido há seis meses atrás. Permaneceu em coma por seis meses Senhor...
- Desculpe... – Começou o rapaz, franzindo a testa e segurando-a em seguida, como se esta pesasse uma tonelada – Não consigo me lembrar. Não sei quem eu sou!
- Calma. Não precisa ficar nervoso. Deve ter sido em decorrência do trauma que você sofreu. Sua memória retornará com o tempo, tenho certeza.
- Minha cabeça está vazia, não lembro de nada. Quem eu sou, de onde venho... O que me aconteceu, nada. Absolutamente nada!
- Eu sei que deve estar sendo difícil este momento para você, meu jovem. Mas tenha fé, nós iremos ajudá-lo no que pudermos. Primeiro você precisa de um nome. Posso chamá-lo de Arthur? – Após a concordância do rapaz, ele continuou – Ótimo Arthur. Gosto deste nome, pertence a um grande rei do passado em seu país. Um discípulo de Merlin, o maior dos magos. Pelo que estou vendo é inglês. Muito bem Arthur descanse. Assim que estiver recuperado, veremos o que podemos fazer para ajudá-lo.





A recuperação do jovem Arthur foi bem rápida. No início ele tinha problemas de locomoção devido ao longo tempo que permanecera deitado. Seus músculos e nervos haviam começado a se atrofiar e ele sentia muita dor para andar. Aos poucos seus movimentos foram retornando. Um mês após ter acordado, Mestre Caine determinou que ele deveria começar a praticar exercícios e a fazer parte dos treinamentos ministrados aos alunos novos, para incentivar seu corpo ainda mais. O jovem mostrou-se dedicado e ávido por aprender. Logo estava fazendo todas as aulas que ali eram ministradas, incluindo o idioma. Numa tarde, enquanto este descansava sob uma árvore no pátio, a mesma sob a qual ele estava meditando agora, mestre Caine se aproximou dele e perguntou:



- Como vão as coisas para nosso jovem Gafanhoto?
- Gafanhoto? - Perguntou Arthur, sorrindo para seu mestre – Por que me chama de Gafanhoto mestre?
- Você me lembra um, meu caro. Seus olhos são verdes como nosso pequeno amigo e você é tão voraz, devora tudo que tentamos ensinar com tanto desespero que sua fome de aprender também me lembra um gafanhoto. Espero não ter lhe ofendido com minha comparação...
- Absolutamente mestre.


Assim a partir daquela tarde, o novo discípulo de mestre Caine passou a ser conhecido como o jovem Gafanhoto. Durante os meses e anos que se seguiram o treinamento continuou. O rapaz demonstrou grande habilidade mágica. Os Dragões Brancos realizavam feitiços apenas com as mãos ou canalizando sua magia através de suas espadas. Também demonstrava aptidão para a esgrima e combate. Mas o desempenho do rapaz não passou despercebido por Chú. Este estava terrivelmente incomodado com o desempenho de Gafanhoto. Ele atingira o nível prata em menos da metade do tempo que ele. Após três anos, Chú era seu instrutor de esgrima e era nítida a aversão que sentia pelo “garoto inglês”, como ele se referia ao jovem discípulo. Logo, mestre Caine descobriu outra faceta do bruxo Mongol, o preconceito. Ele ensinava o rapaz por pura obrigação, sem se dedicar ao que estava fazendo. Depois de um tempo, mestre Caine resolveu interferir e tomou para si a tarefa de treinar o jovem discípulo. Isto só serviu para alimentar ainda mais o rancor e a inveja de Chú, que começou a disseminar boatos entre os outros discípulos de que o velho mestre estava senil e estava preparando um estrangeiro para assumir seu lugar no conselho, o que seria uma afronta aos costumes.




Aos poucos, Chú conseguiu adeptos para seu ponto de vista e, seis meses atrás, tentou tomar o poder à força, levando a pacífica Shangri-lá à luta. Aquele havia sido o dia mais negro na história da cidade. Irmão lutando contra irmão, pai lutando contra filho, mulheres e crianças sendo assassinadas e um rio de sangue se espalhando pelas ruas. Os discípulos fiéis a mestre Caine enfrentaram os dissidentes, inclusive o jovem Gafanhoto, que foi seriamente ferido enquanto lutava com o Wang Chú. Se não fosse pela própria intervenção do velho mestre, o rapaz teria morrido durante aquela luta. Foi preciso que ele utilizasse uma grande quantidade do que restava de sua magia para rechaçar o ataque. Chú resolver fugir, levando com ele uma grande quantidade de obras de arte e parte do tesouro da cidade, ameaçando retornar quando tivesse homens suficientes para conquistá-la. Felizmente, Ziang havia partido com ele, mas mantivera-se em silêncio até aquele dia.




O velho ancião pensava sobre tudo isto no decorrer da madrugada e assim surgiu a aurora, lançando sua luz sobre os altos picos das montanhas a leste. Felizmente Ziang ainda lhe era fiel. A notícia que lhe enviara era muito grave, significava muito mais do que ele poderia imaginar. A escolha daquela data e o local escolhido para o ataque não eram coincidência. Ele deu um sorriso triste, pensando “Devo estar ficando senil realmente. Como nunca pensei nesta possibilidade? Como nunca liguei os fatos?”. É claro que ele precisaria ter certeza antes de falar alguma coisa, mas até o final daquele dia as dúvidas seriam sanadas. Quando a claridade atingiu sua face cansada, ele finalmente abriu os olhos e não conteve um novo sorriso. Já devia esperar pela cena, estava se tornando comum nos últimos dias. Levantou-se, ainda descalço, e caminhou suavemente sobre a neve que ainda se acumulava no chão, sem deixar sequer uma marca de seus passos, sem emitir som algum, atravessando o pátio até o jovem discípulo que estava sentado, meditando como ele.


Ficou admirando o semblante sereno do rapaz, que começou a abrir os olhos bem devagar. Quando tomou ciência da presença do mestre à sua frente, levantou-se e fez uma reverência, em sinal de respeito.




Mestre Caine continuou fitando o rosto deste, marcado por algumas cicatrizes já antigas, demorando-se mais em uma em sua testa, em forma de raio. Pela primeira vez em quatro anos, Kwai Chang Caine olhava para seu jovem discípulo Gafanhoto e enxergava nele um dos maiores bruxos dos últimos tempos, alguém que até aquela madrugada ele, assim como o resto do mundo, acreditava estar morto. Naquele momento, ele olhou para seu jovem discípulo e uma nova chama de esperança se acendeu em seu coração, pois ele tinha consciência de que olhava para ninguém mais ninguém menos do que Harry Potter.





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Um jovem meditava sentado num pátio frio, sob a neve que caía. Ele aproveitava estes momentos para fazer um balanço de sua vida. Não era muito tempo, mas não fora nada monótona até ali. Sua mente viajou até o primeiro dia de sua vida:

Dor! Calor! Frio! Trevas! E mais dor. Estas eram as primeiras lembranças, as primeiras sensações na vida daquele rapaz. O dia em que ele acordou, deitado em uma cama, numa pequena cabana que servia de hospital naquela pequena comunidade, era o primeiro de sua vida para ele. Não se lembrava de nada do que havia acontecido até então. Sua vida era como um livro com as páginas em branco. Pôs as mãos na cabeça em desespero, afinal o que seria da sua vida? Quem ele procuraria? Estava sozinho no mundo, sem ninguém a quem recorrer.


Havia um homem a sua frente, falando com ele. De início não prestou muita atenção no que ele dizia, de tão apavorado que estava. Mas aos poucos, o tom de voz calmo e os gestos apaziguadores do ancião foram acalmando-o. Aos poucos, ele começou a se controlar e prestar atenção no que acontecia à sua volta. O homem que conversava com ele, pode notar, era extremamente velho. Porém seu olhar denotava que ainda era ativo e perspicaz. Ele exalava sabedoria e bondade, o que lhe inspirava uma confiança tremenda. Depois de ouvir os conselhos do homem, resolveu descansar e se recuperar. Depois pensaria no que fazer. Afinal, tinha todo o tempo do mundo a sua disposição.



Nos dias que se seguiram a dor foi sua maior companheira. E como doía, para tudo que quisesse fazer ela estava lá, presente, e lembrando-lhe de suas atuais limitações. Seus músculos pareciam também ter perdido a memória. Não se lembravam como era trabalhar, movimentar as articulações, os tendões. Até dormir era doloroso...



Mas ele não ia desistir, tinha certeza que não era uma pessoa de se entregar às adversidades facilmente. Com muito esforço e paciência, aos poucos foi melhorando. Quando fazia mais ou menos um mês que havia acordado, recebeu autorização para se exercitar com outros alunos daquela escola. As pessoas diziam que era uma escola especial, para bruxos. E que ele também era um. Não podia acreditar no que diziam, mas no primeiro dia de aula, ficou estupefato. Um dos outros alunos fez surgir uma espécie de escudo no ar, apenas com um gesto de sua mão. O escudo não era visível, mas estava lá. Nada podia ultrapassá-lo. O professor chamou-o e disse que ele também tinha o poder necessário para fazer aquela magia:



- Mestre, eu não sei como fazer. Não vai dar certo. – Disse ele.
- Não importa se der certo ou não, meu rapaz. Apenas tente. – Respondeu o professor – Concentre-se. Deixe a magia que está dentro de você fluir através de seus poros, direcione-a para sua mão direita, concentre-se no que você deseja com toda a força de seu ser.Quando estiver pronto, diga: “Protego!”.




Ele tentou se concentrar. Fixou seu pensamento no escudo que vira o companheiro conjurando e se esforçou para conseguir. No início não sentiu nada. Sentia-se ridículo, estava prestes a desistir, quando sentiu algo parecido com um formigamento pelo corpo. Seu cabelo se arrepiou, ele sentiu que era o momento e disse, em alto e bom som: “Protego!”. Quando abriu os olhos, pode sentir que havia conseguido. Para comprovar, seu mestre sacou uma espada das costas e lançou-se sobre ele. Um som agudo, causado pelo choque do metal contra o escudo se propagou pelo ar. Ele ficou olhando, ainda mais assombrado para onde deveria estar seu escudo e sentiu que ele se desvanecia. Então era verdade. Ele era um bruxo.



A partir daí não perdeu mais a confiança. E tudo melhorou. Dedicou-se mais às aulas, sua mente estava vazia e absorvia tudo com muita facilidade. Parecia uma esponja sugando água.Seus dias começavam com aulas de idioma, ministradas por Ziang. No começo, mostrou-se muito atencioso e até parecia ser seu amigo, mas depois de um tempo isto começou a mudar. Mas mesmo assim, continuou a ensiná-lo o idioma que falavam, um precursor do Sânscrito falado na região. Depois tinha aulas de combate corpo-a-corpo. No começo ele sentiu certa dificuldade, principalmente na utilização do bastão bô, mas aos poucos foi adquirindo equilíbrio, agilidade e força física, à base de muitos exercícios. Depois do almoço, tinha aulas de feitiços, onde aprendia a dominar a técnica de feitiços não verbais e como conjurá-los sem uma varinha ou espada:



- Estou impressionado com seu desempenho, Gafanhoto. – Disse mestre Pô, professor da técnica certo dia – Normalmente meus alunos demoram anos até conseguir dominar esta técnica. É evidente que você já a dominava antes de chegar até aqui.
- Não sei dizer mestre. – Respondeu ele – Como não lembro de meu passado, não posso afirmar. Mas sinto como se fazer estes feitiços desta maneira, não me fosse estranho.
- Os bruxos ingleses, como você, têm o costume de usar varinhas. – Continuou o mestre – Quando o encontramos, não havia nenhuma em seu poder. Mas isto não significa que não usasse, só que não estava com ela. Mesmo assim, não é comum para o seu povo praticar magia sem este artefato. Ele serve para canalizar o poder mágico inerente em cada um de nós para executar o que desejamos. A utilização de artefatos mágicos na confecção das varinhas potencializa a capacidade do bruxo.
- Então o senhor está dizendo que, mesmo que eu tivesse uma varinha, já podia fazer magia sem ela antes?
- Sem dúvida. Acredito que você não tenha desenvolvido a fundo esta sua capacidade. Mas agora, terá todas as condições, pois esta é uma das principais técnicas ensinadas aqui.
- Mestre Caine me disse que vocês usam espadas para lançar feitiços também. Posso saber como é isso?
- Você saberá em seu devido tempo, meu jovem. Seu instrutor de esgrima lhe mostrará os princípios, depois entraremos mais fundo nisso.





Sem dúvida nenhuma, as aulas de que ele mais gostava eram as de esgrima. Durante os dois primeiros anos, seu professor foi mestre Xun. Nas primeiras aulas, ele utilizou uma espada de madeira. Ficou um tanto decepcionado quando a recebeu, mas o mestre lhe explicou que era por uma questão de segurança. Depois de aprender os conceitos e os golpes básicos, recebeu uma espada e começou a praticar, sempre lutando com muito empenho.



- Não pensem na espada como um objeto frio e sem vida. – Dizia mestre Xun para seus alunos – Pensem nela como uma extensão de vocês. Sintam como se ela fosse a continuação de seu braço. Não pensem em qual movimento farão com o braço e que deverá ser seguido por sua arma, pensem no movimento que todo o conjunto, incluindo o resto de seu corpo fará.




Quando Gafanhoto se formou na turma de mestre Xun, no final dos dois anos de treinamento, ele já alcançara o nível Vermelho. Foi o aluno a atingir este nível mais rápido nos últimos cem anos, e como recompensa, mestre Caine resolveu que ele teria aulas com ele mesmo sobre feitiços e, de esgrima, com o melhor espadachim que havia entre os Dragões. Wang Chú. Outro presente que ele recebeu foi a sua primeira espada:



- Jovem Gafanhoto, estamos muito orgulhosos de seu desempenho. – Disse mestre Caine no dia de sua formatura, logo após entregar-lhe a faixa preta, sinal de sua ascensão no grupo – A partir de hoje, lutará suas lutas com sua própria espada e não mais com uma espada da escola. Honre-a, e lembre-se sempre que a espada é sempre a última opção, quando o diálogo não mais é possível. Ser um bom espadachim é importante, mas ser sábio o suficiente para não ter que sacar sua espada é muito mais importante. Uma vida, mesmo a de um inimigo, não tem preço.
- Sinto-me extremamente honrado, mestre. – Respondeu Gafanhoto, recebendo a espada da mão de seu mestre com uma reverência – Juro que farei o possível para honrar ao senhor e Shangri-lá.
- Não tenho dúvidas meu jovem. – Sorriu o velho ancião – procure-me amanhã, para começarmos uma nova fase de seu treinamento.




Só quando chegou em seu dormitório foi que o rapaz reparou em sua espada. E ficou sem fôlego. O que ganhara não era uma simples espada, era uma obra de arte. A lamina tinha aproximadamente cinqüenta centímetros, de aço forjado por duendes e banhada com prata, com Fênix desenhadas em alto relevo. No cabo, feito da presa de um dragão, sua mão encaixava-se perfeitamente. Para completar, era cravejado de esmeraldas e jades. A bainha, de couro de dragão, também tinha desenhos das belas aves em toda a sua extensão. Na manhã seguinte, antes do dia raiar, ele já estava no pátio, aguardando pelo mestre. Quando este chegou, deu um sorriso, sacudindo a cabeça, divertido:



- Não está um tanto cedo demais, Gafanhoto? – Perguntou ele, apoiando-se em seu cajado, que servia não só para suportar o peso de seu velho corpo após mais de duzentos anos, como era também com ele que fazia seus feitiços.
- Desculpe, mestre. – Respondeu ele, envergonhado, fazendo uma reverência – Eu realmente estou muito ansioso por aprender o que o mestre tem para me ensinar.
- Muito bem então. Para começar, vou lhe ensinar um feitiço simples para guardar sua espada. A palavra é “Evanesco”. Guarde a bainha nas suas costas e depois pronuncie o feitiço.
- “Evanesco!” – Pronunciou ele, depois de obedecer ao mestre e pendurar a bainha da espada em suas costas. Imediatamente esta desapareceu e ele não a sentiu mais – Ela desapareceu mestre. Para onde foi?
- Isto não é importante. Desta maneira, ela não o atrapalhará a se locomover nem chamará a atenção. E quando quiser convocá-la basta pronunciar “Gladius!”, que ela ressurgirá.
- “Gladius!” – Apressou-se o rapaz a dizer, com medo de ter perdido sua preciosa espada. Mas instantaneamente ela surgiu em suas costas, como se lá estivesse o tempo todo – Perfeito mestre.
- Muito bem. Agora, não precisa dizer as palavras. Faça com que desapareça e depois reapareça com feitiços não-verbais.




E assim começaram as aulas de Gafanhoto com mestre Caine. Infelizmente, as aulas de esgrima com Wang Chú não foram tão bem. Desde que ali chegara, ele percebeu a animosidade do outro bruxo para com ele. No início não deu importância, mas com o passar do tempo percebeu que a aversão do homem só crescia. Ficou claro que se dependesse da vontade do novo mestre, ele não seria seu discípulo. Mestre Chú ensinava seus outros alunos, mas quando chegava a vez de Gafanhoto, não se empenhava. Arrumava uma desculpa e se esquivava de ensiná-lo. Logo o rapaz percebeu que se ficasse esperando pela boa vontade do mestre não aprenderia nada, então mudou de tática. Resignou-se a não receber instrução, e depois assistia às aulas dos outros alunos. Aprendia os gestos e passos com o olhar e depois treinava sozinho, à noite. Durante meses assim procedeu. Neste tempo, nada reclamara para ninguém. Mestre Caine percebera o descaso de Chú para com ele, mas como não podia estar em todas as aulas, nunca chegou a ver como o pupilo era ignorado. Assim chegou o dia da apresentação da turma, visando a graduação e receber a faixa Prata.




Gafanhoto se apresentou ao conselho, com uma reverência e virou para enfrentar seu oponente. Este era Chow-You Li, e era o aluno preferido de Chú, o melhor da turma. Ele cumprimentou o conselho e se virou para o jovem Gafanhoto, com um sorriso maldoso no rosto. Li era mais velho que ele, tinha mais de trinta anos de idade. Cumprimentaram-se com uma reverência, como era o costume. No canto da arena, Chú não escondia o sorriso, antevendo uma vitória certa de seu melhor discípulo:




- Você acha que tem alguma chance de me vencer, inglês? – Perguntou Li, num tom que apenas seu oponente podia ouvir.
- Não tenho medo de perder, Li. E você, tem medo de decepcionar seu mestre? – Respondeu Gafanhoto, olhando firme nos olhos do oponente.
- O mestre confia em mim. Não existe a menor chance de você me vencer, seu bebedor de chá. – Retorquiu Li, enquanto começavam a circundar pela arena, estudando os movimentos um do outro, mão direita segurando firmemente suas espadas.
- É o que vamos descobrir em instantes, não é? – Disse gafanhoto, um sorriso confiante no rosto, o que causou um arrepio no adversário.




Num rompante de Li, a luta começou. Com um salto, ele fez a distancia que havia entre eles desaparecer, sacando sua bela espada enquanto estava no ar. Gafanhoto esperou o momento certo e quando Li caia sobre ele, sacou a sua e aparou o golpe do adversário, ainda em pleno ar. O clangor das espadas ressoou pela arena. Num giro sobre o próprio corpo, Li se afastou e já voltou à carga, agora de frente para seu oponente. Novamente as espadas se chocaram, numa série de golpes dados pelos dois, que se esforçavam para atingir seu adversário sem desviar a atenção de sua defesa.



Na mesa dos anciões, mestre Caine se preocupou. A luta não assumira ares de treino, nenhum dos combatentes havia conjurado um feitiço protetor sobre as espadas para evitar que se ferissem. Aquela luta era real, a vida dos dois estava em perigo. Olhou para Wang Chú e notou que este se divertia com o que assistia, não conseguia disfarçar para quem estava torcendo. Não poderia parar a luta, seria uma desonra para os jovens. Não teve opção a não ser deixar a luta continuar e torcer para que o jovem Gafanhoto saísse vivo daquele duelo.




Apesar de ter assistido às aulas escondido, Gafanhoto não tinha experiência em combate, sempre treinara sozinho e ainda por cima à noite. A vantagem de Li era gritante, com movimentos rápidos e precisos visando seus flancos e pernas. Num momento de leve distração dele, Li desferiu um golpe na altura de seu peito, que passou raspando. Não fosse por sua agilidade, teria aberto um rombo em seu peito. Deu um pulo para trás, Li veio novamente para cima dele. Girou o corpo para a direita, visando a perna do adversário e atingiu-a de raspão. Este golpe surpreendeu Li, que parou por um instante, olhando para o sangue que escorria da ferida. Isto lhe deu tempo para respirar e clarear a mente. Precisava encontrar uma maneira de vencer, ou seria morto.Lí estava possesso, seu rosto transformou-se em uma máscara de ódio, avançou como um touro bravio sobre ele. Um novo giro, um desejo de estar do outro lado da arena e, de repente, ele estava lá. Sem saber como, pois não era um costume em Shangri-lá, ele havia aparatado em outro lugar, ainda na arena. Virou-se, Li ainda estava parado no mesmo lugar, sem entender o que havia acontecido:



- Está me procurando? – Perguntou o rapaz.
- Como você foi parar aí? – Perguntou Li, assim que se virou.
- E isso importa? E aí, desistiu? – Caçoou ele.
- Nunca! – Respondeu Li, voltando à carga.




As espadas voltaram a se chocar. Mas agora, o pequeno Gafanhoto sentia que podia realmente vencer aquela luta. Tinha alguma coisa dentro dele que dizia que ele era capaz, que já fizera coisas muito mais difíceis. Bastava confiar em seus instintos... E assim o fez. Recebeu o golpe de Li e o desviou, com uma facilidade que até então não tivera. Começaram a girar novamente, os golpes cada vez mais rápidos e perigosos. Nenhum dos dois combatentes dava sinais de cansaço ou de que iria desistir. Golpes em cima, em baixo, à direita... Eram infindáveis. Então ele viu uma brecha. Depois de tentar um golpe com mais força que o necessário, Lí se desequilibrou um pouco. Aquela era sua oportunidade. Com um movimento rápido de sua espada, de baixo para cima, desarmou seu oponente, derrubando-o no chão. Em seguida, pulou sobre ele, encostando a lamina de sua espada em seu pescoço. A tensão se espalhou entre os que assistiam, sem fôlego, a apresentação.



- E agora, você desiste? – Perguntou ele, respirando com dificuldade, meio sem ar.
- Tenho escolha? – Perguntou Li, o ódio aparente em sua voz.
- Nós sempre temos escolha, Chow-You Li. O problema é o que fazemos com elas. - Respondeu Gafanhoto, levantando-se e estendendo a mão para o outro também se levantar, mão que foi recusada.
- Basta! Já vi demais! – Disse mestre Caine, levantando-se de seu lugar na mesa dos anciões - Chow-You Li, você desonrou seus ensinamentos duas vezes nesta noite. A primeira, quando procurou, propositalmente, ferir seu companheiro durante uma prova. A segunda, quando ao perder numa luta honrada, não reconheceu a superioridade de seu adversário.
- Se me permite perguntar mestre. – Adiantou-se Wang Chú – Que superioridade? O senhor não deve estar falando deste ocidental imundo, está?
- Que absurdo é este que estamos ouvindo? – Perguntou o ancião que estava sentado do lado direito de Mestre Caine – O jovem Gafanhoto é tão merecedor de respeito e dos nossos ensinamentos quanto qualquer outro aqui, Wang Chú.
- Pois eu discordo, mestre Lun-Gê. – Recomeçou Chú – Já não basta os ocidentais terem invadido o mundo dos trouxas em todo o oriente, acabando com nossa cultura? Agora teremos que aceitá-los aqui em Shangri-lá também? Eles vão transformar nosso modo de vida, inserir seus métodos e conceitos entre nós e acabar com todos os nossos esforços.
- Isso não faz o menor sentido Chú. – Disse calmamente mestre Caine – Nós nunca nos negamos a ensinar a ninguém que nos procurasse. Você mesmo não é natural daqui e lhe ensinamos tudo o que sabíamos. Será que eu posso dizer o mesmo de você?
- Como assim mestre? – Perguntou Chú.
- Você ensinou tudo o que sabe a todos os seus alunos, como era sua obrigação?
- Se o senhor quer saber se ensinei para este estrangeiro, a resposta é não. Não vou ensinar para alguém que depois pode nos apunhalar pelas costas.
- E mesmo assim ele venceu seu melhor aluno? Ou o rapaz tem muito mais potencial do que imaginamos ou você não é um instrutor tão bom assim, não é mesmo? – Respondeu mestre Caine calmamente - Portanto, de hoje em diante eu mesmo serei responsável por instruir o jovem. E quanto a você Li, não é digno de receber a faixa Prata. Até que repense sobre suas atitudes, permanecerá na mesma categoria.
- O senhor está me desonrando mestre. – Disse Chú, friamente – Não pode me tomar o aluno assim. Pensa que eu não sei o que pretende?
- E o que seria? – Perguntou o ancião.
- Você quer fazer com que este moleque atinja o nível necessário para que possa indicá-lo para o conselho no seu lugar, seu velho decrépito, ao invés de me indicar. – Acusou Chú, causando assombro aos presentes.
- Não tinha pensado nisto, Wang Chú. Mas sabe que não é uma má idéia? – Mestre Caine parecia considerar as palavras do outro – Mas de uma coisa você realmente pode ter certeza. Nunca indicaria você para o meu lugar. E depois das demonstrações que assistimos aqui hoje, creio que selou definitivamente seu destino neste conselho.Retire-se imediatamente, até que tenhamos discutido e tomado uma decisão a respeito de sua conduta.
- Eu irei, velho. Mas não pense que as coisas ficarão assim. Vocês não perdem por esperar. – Ameaçou ele enquanto se retirava, seguido de vários de seus seguidores. Ziang, que ficara propositalmente para trás só o seguiu depois de trocar um olhar rápido com mestre Caine e trocarem um ligeiro gesto com a cabeça.
- Jovem Arthur, receba sua merecida faixa Prata. – Disse mestre Caine, virando-se para o jovem Gafanhoto, que ficara quieto em seu lugar durante o decorrer da discussão.
- Agradeço, mestre, a confiança em mim depositada. – Respondeu ele recebendo a faixa com uma reverência, seu coração ainda palpitando em descompasso devido às emoções da luta – Mestre, posso fazer uma pergunta?
- Sem dúvida, meu rapaz. O que lhe aflige? – Retorquiu Caine.
- O que foi que aconteceu durante a luta? Como foi que eu consegui sair de onde estava e ir parar do outro lado da arena? – Perguntou o rapaz, confuso.
- Ah! Isso! – Sorriu o mestre – Se não me engano meu jovem, é costume dos bruxos ingleses esta história de aparatar e desaparatar. É como chamam a habilidade de se deslocar de um ponto a outro com a força do pensamento. Nós não temos este costume, pois temos nossas amigas aladas que nos ajudam. É bem menos estressante, entende?
- Mas como eu consegui fazer isso? Eu nunca aparatei, mestre.- Insistiu Gafanhoto.
- É evidente que você sabia como fazê-lo antes de perder a memória, meu jovem. E no momento crítico, seu instinto falou mais alto. Mais uma vez você nos surpreende, rapaz. Logo após aparatar, você mudou. Assumiu uma outra postura, não parecia o aprendiz que conhecemos. Seus olhos brilharam de um verde intenso, era como se estivessem sobrecarregados de poder, prontos para fuzilarem Li. Tenho certeza de que se você não tivesse se controlado e tivesse lançado algum feitiço em seu oponente, provavelmente teria sido fatal.
- Eu senti um grande poder dentro de mim naquele momento, mestre. Mas não seria justo lançar nada contra Li, afinal estávamos lutando com espadas. Não seria honrado.
- Não, não seria, não é? Mesmo com sua cabeça correndo sério risco de ser separada de seu corpo você não apelaria para outro modo de vencer a batalha. – Mestre Caine mostrava-se satisfeito com o que ouvia – Talvez a idéia de Chú sobre você fazer parte do conselho quando eu me afastar não seja realmente uma má idéia.
- Não me acho digno mestre. Tenho muito ainda para aprender. – Respondeu ele, humildemente.
- Sim, tem. E vamos começar amanha. Agora vá descansar, Gafanhoto. – Encerrou a conversa mestre Caine.





Mas eles quase não tiveram tempo para iniciar o treinamento. Três noites após a cerimônia de entrega das faixas, o jovem Gafanhoto estava em seu dormitório quando ouviu o badalar do velho sino que existia no centro da pequena vila. Este sino só era tocado em último caso, quando uma catástrofe estava ocorrendo. Ele se levantou às pressas, vestiu-se e correu, assim como os outros internos, em direção ao local. Quando chegou ficou atônito com o que via. Pessoas correndo desesperadas, casas em chamas, morte, destruição. Chú reunira um grupo de asseclas e atacara a cidade. Seus homens não se importavam em quem estava pela frente. Havia mulheres e crianças sendo brutalmente assassinadas. Os homens vinham em direção ao centro da cidade, onde viviam os mestres anciões. Gafanhoto percebeu qual era a intenção deles. Liquidar os mestres e assumir o controle de Shangri-lá. Ele ordenou que seus companheiros formassem uma coluna, para impedir o avanço dos traidores, enquanto outros ajudavam a resgatar a população. Colocou-se à frente do grupo e aguardou a chegada dos inimigos.




Logo eles surgiram. À frente, como era esperado, Wang Chú caminhava despreocupado. Na verdade, parecia estar se divertindo com a anarquia que estava causando. Quando avistou a linha de defesa e quem estava no comando, deu um sorriso ainda maior:




- O que é isso garoto? Pensa que pode me enfrentar?
- Não sei se posso vencê-lo, mestre. – Respondeu seu ex-pupilo – Mas vou fazer tudo que estiver ao meu alcance para proteger esta cidade e seu povo. Juramento que o senhor também fez um dia, e que pelo visto resolveu quebrar.
- Muito bem então. Cada homem tem o direito de escolher como deseja morrer nesta vida. Se você já fez a sua escolha, quem sou eu para questioná-la? Matem-nos – Ordenou ele para os que o acompanhava.





O campo de batalha se formou, bem perto do centro da pequena vila. Enquanto via seus colegas escolherem seus inimigos e avançarem rumo a uma luta que poderia ser fatal, o jovem Gafanhoto esperou. Sabia que o destino dele seria enfrentar seu antigo professor e sabia que não estava à sua altura. Mas Chú só passaria daquele lugar sobre o seu cadáver. Ele veio em sua direção, balançando a espada displicentemente na mão, um sorriso maroto no rosto, que deixava claro que ele já estava se vangloriando antecipadamente pelo que ia fazer. Quando chegou a menos de dois metros de distância, o rapaz, que já estava em guarda com sua espada não agüentou mais a angústia e avançou sobre ele. As espadas se chocaram, expelindo uma labareda de fogo devido ao choque. Os golpes começaram entre eles, uma sucessão de malabarismos com o corpo e as espadas, numa velocidade indescritível, um balé mortal, mas lindo. Gafanhoto tentou uma estocada na altura do ombro de Chú, mas este o defendeu com grande perícia, girando sua espada para cima e quase arrancando a de seu adversário de sua mão. Em seguida, tentou, num movimento circular na altura da cintura atingir o rapaz, que num pulo ágil de costas conseguiu se esquivar. Avançou novamente, lançando sua espada num movimento em diagonal, de cima para baixo, partindo da direita, que também não encontrou seu alvo.



Continuaram o embate por mais alguns minutos, a luta parecia equilibrada, mas Chú não desfazia o sorriso do rosto. Gafanhoto estava concentradíssimo na luta, não entendia como seu oponente podia estar sorrindo. Então percebeu o óbvio. Estava brincando com ele. Isso lhe causou um assomo de ódio, e ele tentou, com um giro, atingir Chú na altura do ombro. Com isso, abriu uma brecha em sua retaguarda. Chú não perdeu a oportunidade, desviou seu golpe facilmente e com um giro igual ao que o rapaz havia dado, porém em sentido contrário, atingiu-o no flanco direito. Um corte fundo, entre duas costelas, por onde de imediato jorrou sangue em abundância.




Gafanhoto sabia que ia ser atingido assim que Chú defendeu seu golpe. Sabia também que nada poderia fazer para impedir, não havia tempo para nada. Logo, sentiu a dor lancinante da espada partindo sua carne, o sangue jorrando. Tentou se afastar, mas sua visão escureceu, seus sentidos nublaram. Sabia que o próximo golpe seria fatal, não teria como sobreviver. Mas não se rendeu. Se ia morrer, seria com sua espada erguida. Levantou-a e ficou esperando o golpe fatal, mas este não veio.



Mestre Caine chegou ao campo de batalha no exato momento em que Chú atingiu seu jovem discípulo. De onde estava podia ver que era um ferimento grave, talvez mortal. Ergueu seu cajado, fez uma linha reta no chão e bradou: “Moeniassera”. Da linha que ele havia riscado, elevou-se uma muralha de terra, que levada por uma forte ventania avançou sobre Chú e seus homens, cegando-os, desequilibrando-os e lançando-os para trás, com violência. Quando o feitiço cessou, Chú levantou-se e disse:



- Nós voltaremos velho. E não voltaremos sozinhos, você verá. Shangri-lá será minha.



Ele fugiu com seus homens, roubando várias estátuas e parte do tesouro da cidade, deixando atrás de si um rastro de destruição e morte que há séculos Shangri-lá não conhecia. O jovem Gafanhoto foi socorrido e tratado, em poucas semanas estava recuperado.




O rapaz a quem chamavam de Gafanhoto lembrou-se de tudo isso com pesar. Naquela noite perdera vários colegas nas mãos dos traidores. Ele sentia que a culpa de tudo o que ocorrera era dele. Várias vezes, quando comentou sobre seu sentimento com seu mestre, este lhe tentara consolar e mostrar que não era sua a responsabilidade pelas ações de Chú e dos outros. Mas ele não via assim. Jurara a ele mesmo que defenderia aquela cidade com todo o seu empenho, com sua vida se necessário. Sentiu o raiar do dia. Mais uma noite se passara e nenhuma notícia de Wang Chú e seus homens. Então, ele sentiu uma presença. Não ouviu ninguém caminhando, mas ele sabia que não estava sozinho. Abriu os olhos lentamente, deparando-se com os pés descalços e tão velhos de seu mestre. Pegou seus óculos, que estavam depositados ao seu lado no banco, colocando-os. Levantou seus olhos verdes e viu que o ancião estava sorrindo. Levantou-se, arrumando sua roupa, ajustando sua faixa Dourada recebida a menos de uma semana, após árduo treinamento dado por aquele homem à sua frente. Saudou-o com uma reverência, e continuou olhando curioso. Seu mestre o olhava de uma maneira diferente naquele dia:



- Bom dia, mestre. – Disse ele, ao ver que o homem nada falava – Tudo bem?
- Bom dia meu discípulo. – Respondeu ele, parecendo acordar de seus devaneios – Sim está tudo bem. Na verdade, chegou o momento que esperávamos.
- O senhor descobriu onde Wang Chú está escondido? – Perguntou o rapaz, entusiasmado.
- Não, não sei onde ele está. Mas sei onde estará hoje à tarde. Ele vai até seu país meu jovem. Ele vai para a Inglaterra.
- Inglaterra? Mas o que ele vai fazer lá?
- Vai atacar uma escola de bruxaria. O nome Hogwarts lhe traz alguma recordação?
- Não mestre. Não me diz nada. Porque deveria?
- Tenho motivos para acreditar que você estudou lá, meu jovem. De qualquer maneira, vamos descobrir ainda antes deste dia acabar. Vamos impedir Chú de atacar a escola de meu velho amigo Alvo Dumbledore. E vamos aproveitar para descobrir mais sobre o seu passado também.
- Já disse que meu passado não me interessa mais, mestre. Só o futuro. E o meu futuro é Shangri-lá. Viverei aqui e ajudarei a defender a cidade.
- Não é tão simples assim. Alguma coisa me diz que você deve voltar para seu país de origem. Assim que se lembrar de quem você é, acredito que ninguém poderá vencê-lo. Vamos para Hogwarts, em busca de quem você é realmente, meu pequeno Gafanhoto.


N:A- E aí, gostaram? Aguardo os comentários, hein!!

Espero que as espectativas de vocês tenham sido correspondidas, afinal teria que haver um motivo muito forte para o afastamento dele durante 04 anos, não é?

Sei que o início do capítulo ficou um pouco massante e peço desculpas, não tinha outro jeito. Espero ter conseguido descrever bem as lutas de espada, se não o fiz me avisem para eu tentar melhorar. No próximo, teremos mais ação, podem ficar tranquilos.

Não foi possível escapar de certos clichês, como a infância e a família desestruturada do Chú, mesmo porque é comprovado através de pesquisas que as pessoas psicopatas ou com distúrbios como o Chú é ( ou vai ser, no decorrer da estória espero conseguir mostrar isso pra vocês) vem de uma infância como a dele. O Harry é uma excessão à regra.

O nome de Kwai Chang Caine e do Gafanhoto eu tirei de um seriado da década de 70, chamado o Mestre do Kung Fú, com o ator David Carradine ( o Bill de Kill Bill). Porém lá, os dois pertencem ao mesmo personagem, gafanhoto era o apelido dele enquanto discípulo.

Gladius significa arma e Moenias, significa muralha ou parede em latim, consegui um livro sobre o tema e espero conseguir melhorar na criação de feitiços, uma das minhas deficiências até aqui.


Então é isso, até o próximo capítulo.


Claudio

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