Ritmo



Capítulo 9- Ritmo

Um relatório atrás do outro. Draco não pensava. Lia e aprovava sem entender. Aquela relação mágica que se faz entre texto e leitor não havia nele. Ele tinha esquecido. Aquela frase ele já tinha lido ao menos quatro vezes. Respirou fundo. Na quinta ele não tinha trabalhado bem. Dessa vez ele tinha que render. Ele gostava do trabalho. Ele tinha escolhido aquilo. Acontece que a cabeça doía e as imagens fluíam sem interrupção. Eram uma coisa estranha e nebulosa que não parava. Ele explodiria a qualquer momento. As imagens não cessavam. Ele gostava delas. Elas estavam ali. Ele continuava. Seguia. As imagens ficavam. As imagens grudaram. Coisas da adolescência e da maturidade. Mulheres mil. Gina nem aparecia.
Draco tinha se acostumado a ter tudo na mão. Ele gostava da vida e do destino que lhe tinha sido escrito. Ele não duvidava que não tinha por que duvidar. No fim do quinto ano seu pai foi acusado comensal. Ele sabia que era verdade. Ele tinha se acostumado com aquela verdade. Ela era doce e era dele. No entanto aquela verdade parecia amarga pra todo o mundo bruxo. Ele tinha que ser sensação. Ele tinha que marcar e aparecer. Imitar o pai era o esperado. Imitar o pai dava solidez à posição que ele já tinha. Não pestanejou em seguir o Lord das trevas. Era mágico. Ela não precisava pensar. Pensavam por ele e ele tinha nome. Valia ser puro sangue. Ocorre que o sangue não determina o jeito de olhar. Draco Malfoy, jovem comensal de futuro brilhante, não podia tirar os olhos de uma sangue ruim. Ela fascinava. Tinha uma arrogância quase superior à dele. Ela não era o que ele chamava de bonita, mas não precisava disso. Ela o tinha na mão, mas ele não queria. Estava errado. Qualquer outra coisa era melhor. Ele precisava de algo seguro. Ela era orgulhosa demais pra oferecer segurança. Ele não abriria mão de nada. A vida que ele levava era confortável. Mas ela ficava entalada. Alguém tinha que aprovar, mas ele já tinha conseguido que ninguém a aprovasse. Ela veio até ele e o beijou. Ele não podia. Ele tremia e vibrava e sentia-se balançado com tudo aquilo. Ele se segurou o quanto pode, mas ela era dele e ele foi atrás. Ela disse não. Aquela louca disse não e ele não poderia ter recebido um não. Por que ela tinha que ser tão digna? A admiração crescia e ele não iria atrás. Outras mulheres o encantavam. Ele não estava morto, pelo contrário. Estava bem disposto.
Gunevere Weasley era simples e doce e iria com ele aonde for. Ele sentia-se curioso. Ela agredia as estruturas que ele tinha fundado. Mas ela não era agressiva. O nome dela não tinha o poder ácido do orgulho da outra. Os dois se assumiam e faziam um bom par. Grudou nela pra não soltar. Criou-se um vínculo bonito que durou até a monotonia e o alcoolismo tomarem conta da relação. O vínculo omitia tudo que no Gringottes aparecia em lugar da frase que Draco não lia.
A dor de cabeça ainda não tinha cessado. O profeta diário estava jogado na mesa. Draco viu, de relance, algo vermelho no jornal. Gina estava na capa. Ele não sabia que ela apareceria. A manchete dizia: “Coadjuvantes da guerra: Guinevere Malfoy – Um romantismo fundamental”. Gina sorria na foto e Draco começou a ler a introdução, que fluía, ao contrário do relatório.
Há alguns anos, no auge da guerra bruxa, Guinevere Weasley surpreendeu ao assumir seu romance com Draco Malfoy. Como é sabido por todos, os Weasley são fiéis e tradicionais seguidores de Alvo Dumbledore, enquanto os Malfoy sempre foram suspeitos de terem se envolvido com bruxos das trevas.
Atualmente, a ex-pequena-ruiva chama-se Guinevere Malfoy e é Auror. O marido dela trabalha no Gringottes e ela esbanja sorrisos. Não há como dizer que ela não fez a diferença na guerra bruxa. Contradisse os fervorosos e radicais maniqueístas e, como o filósofo trouxa Nietzchie, foi além do bem e do mal. Foi, antes de bruxa, uma revolucionária romântica. Foi contra todos e venceu, além de seus medos, a guerra contra o preconceito.
Mulher como poucas, Guinevere, ou Gina, como prefere ser chamada, me recebeu de braços abertos, sem papas na língua e com uma paixão típica da heroína que ela foi e é. Só posso dizer que ela é encantadora, é mais que mera coadjuvante da guerra.

A matéria era de Hermione Granger. As perguntas eram interessantes e bem feitas. Draco conhecia aquelas respostas. Draco não conhecia a introdução. Não tinha pensado em romantismo. Ele sempre fora realista. Os caminhos mais fáceis e menos sofridos encantavam. Ele queria ser imune ao mundo. Não gostava do mundo ou de gente. No entanto precisava de gente que queria comer gente por não gostar. Ele gostava. Tinha uma relação estranha consigo e com o reflexo de si no mundo. Gina era fácil. Tinha uma fúria fácil, um ardor fácil, era ganha com rimas fáceis. Não desafiava e talvez mudasse pouco. Era confortável. Isso prendia. Hermione surpreendia. Draco queria. Devia voltar aos relatórios. Eles eram úteis. Eles deviam ser fonte de vida e atenção. Hermione e Gina podiam aparecer na cabeça outra hora. A cabeça explodia. Ele não estava agüentando. Tinha que sair dali. Precisava de um gole gelado de cerveja.
O pub estava vazio. O garçom já era conhecido. O copo, o conteúdo dele e Draco dialogavam bem. Era um contrato de alucinação descompromissada. Gosto que ele gostava e fígado que ele podia recompor. O fígado não é o órgão com maior potencial de cicatrização? O fígado não importava. Alguns viam televisão. Draco bebia e cada gole era catártico. As bolhas pequenas faziam cócegas na garganta. Elas mexiam e invadiam. As gotas brincavam. O líquido brincava, fazia festa. Ele gostava daquilo. O líquido gostava dele. Ele gostava do cheiro e por vezes queria se misturar a ele. Seria bonito se dissolver em cevada e fungos. Seria bonito fermentar. Ele queria fermentar. Se entregava àquilo, a vida estava ali, que ele não agüentava o resto dela. Tudo era demais pra quem se escondia. A verdade é demais, era demais pra quem não queria. Ele nunca quis. Ela vinha à tona e ele tinha que fugir.
A morena da mesa do lado olhava pra ele fixamente. Ela não era feia. Tinha um cruzar de pernas charmoso e lábios delicados. As mãos pareciam finas. Uma dondoca. A aliança dizia do casamento. Ela estava sozinha e os olhos dela tinham fome. Perfeita pra uma aventura. Ele levantou-se, foi até ela e ofereceu uma bebida. Ela simplesmente sorriu. Ela não diria o nome. Se inclinava na mesa para que o decote aparecesse mais. O sim à pergunta que ele não faria estava escancarado nos gestos, na cara e na voz daquela vadia fútil. Ele não queria saber. O tal vínculo já não existia. Ele não pensava em nada. Ela não era ninguém. As mãos dele escorriam pelas coxas dela por baixo da mesa. Ela sorria e olhava pedindo mais e orgulhosa. Seria dele mais do que já era. Ele a tirou pra dançar. Precisava de mais do que a cama, o cheiro e o ritmo faziam parte do jogo. O ritmo combinava. Ela tinha passado no teste. As pernas já estavam mais que a disposição.
Um hotel barato, alguns bombons, cerveja pouca, e ela estava nua. Todos os defeitos à mostra. Ele não via, mas ela sabia. Tê-lo suprimia as manchas e os buracos da pele. Toda marca malfeita, todo descompasso, tudo era nulo. Ela gostava de momentos. Gostava de ser daquelas que só diziam sim. Ele precisava de uma dessas. Ele precisava dela e as pernas dela envolviam os quadris dele. Ele era violento e ela gritava. Ele gostava. Ela gritava, ela gostava. Ela arranhava e marcava e chupava e suava e ele amava. Ela não tinha rosto e ele não queria um rosto. O corpo bastava e os dois interagiam bem. A dança era mais que tango ou valsa. Um rock novo de letra fácil. Os dois eram fáceis. Os dois estavam sós.
Cada um virou para um lado. Ela pensava no marido. Ele não pensava em nada. Viraram-se de frente um para o outro. Ele a abraçou e os dois se encaixaram, perna entre perna e abraço casto. Um agradecimento mútuo por um ato nulo.
***
Luna Lovegood era uma mulher fascinante. As unhas vermelhas e o olhar perdido se contradiziam. Ela parecia certa de tudo e feliz dum jeito bizarro. Hermione não sabia bem quem era Luna e nem como abordá-la. Ela estava em sua frente então. As botas batiam inquietas no chão. Um som de batuque desritmado. Ela parecia preocupada e Hermione não sabia com o que. Hermione se perdia e não sabia bem por onde começar. As cartas estavam todas na mesa. Luna sabia pra que Hermione estava ali. Hermione ainda não sabia bem. O ritmo daqueles olhares e das respirações ainda não fazia lógica. Hermione tinha se esquecido que para entrevistar Luna Lovegood não havia lógica. Arriscou a pergunta mais óbvia que veio em sua mente.
-Quem ganhou a Guerra?- Luna manteve o silêncio. Olhava para cada canto daquela sala. Não vinha nada à mente dela. Soprou as pontas dos dedos, respirou fundo, ajeitou os cabelos atrás das orelhas, olhou fundo para Hermione e começou a ensaiar uma resposta.
-A lógica e os jornais dizem ter sido Harry Potter. Alguns loucos dizem que Voldemort ainda vai voltar. Eu sei que ainda vejo aqueles bichos que puxam as carruagens de Hogwarts. Aqueles que você não vê. A morte me toca. Não acho que o “bem” tenha ganhado. A gente brigou e correu e enfeitiçou meio mundo e perdeu escrúpulos por uma paz que não vem.
-Não vem?
-Não vejo paz. Vejo monotonia. Paz é outra coisa. A paz a gente não atinge. A gente usa da guerra pra ganhar a paz e isso não tem lógica. Você devia entender Hermione. Você se preocupa mais agora que antes. Antes a gente sabia e agora não sabe. Você tem medo e eu tenho medo. Acredito em Harry. Acredito na morte do Lord. Mas não acho que tenha sido a última vez. Virei alguém prevenida. E sei que você também. Sei que todos viramos. A gente tem medo. Especialmente a gente que estava em cada canto e participava de cada plano, cada armadilha, entrava pelo cano e se perdia.
-O que você fazia na guerra?
-Tudo. –Luna disse firme e silenciou. Olhava para o teto sem tentar sufocar as lágrimas.- Eu ajudava nos planejamentos, fazia poções, eu torcia, eu vibrava, eu chorava escondida encolhida no canto do quarto enquanto estava imunda por nada. E eu matava. Eu tinha que matar pra eu não morrer. Eu tinha que matar pra você não morrer. Pro Harry não morrer. Pra Gina e o Draco não morrerem. Eu tinha que matar pra Cho não morrer. Eu tinha que esconder a Cho. Eu já era carta marcada. Já me conheciam. Eu podia e não podia me arriscar. Todo mundo sabia que comigo tinha briga e que eu não era tão frágil assim. Mas eu era. Eu matava em último caso e chorava em bicas. Quase morria junto. Mas vocês me davam força, me olhavam bonito. Vocês criam em mim e isso me dava força. Ninguém me julgava. Talvez precisassem de mim. Eu estava ali pro que desse e viesse. Estava sempre pronta e sempre calada.
-Por que calada?- Hermione perguntava, atônita e chapada com cada frase de Luna.
-Acha mesmo que eu me orgulhava daquilo?- Luna ria uma gargalhada fria, feito um verme. Ela se contorcia e suas faces diziam do ridículo e do bonito.- eu não queria falar. Eu estava ali pra fazer. De graça.
-Fazer por todos.
-E por mim.
-Como você sabia que podia confiar em Draco Malfoy? Por que aceitou ser fiel do segredo dele e de Gina?
-Eles precisavam de mim. Ela precisava de mim. Eles precisavam de fuga e ele acreditava naquela guerra mais que eu. Os dois tinham ideais e eu só tinha amor à vida. Eu achava bonito. Eu queria aquilo, aquela dependência, aquela cumplicidade e aquele fogo. Eu não tinha aquele medo tão forte que eles tinham. Eu não tinha vínculo nenhum a ninguém e eles tinham. Eu os amava. Não negaria nada a alguém que eu amasse. Ele podia me apunhalar, eu sabia. Mas ela tinha pedido.
Hermione ficou calada. Luna se levantou da cadeira e andava de um lado para o outro. Ambas pareciam sem chão. Luna se escancarava na entrevista. Não tinha muito o que temer. Os passos desritmados dela entorpeciam. Ela dizia muito quando muda. O corte dos cabelos diziam. Hermione podia ver tudo. Via e não entendia nada. Tirou uma foto. Queria fazer um filme. Cinema mudo em cores. Tanto medo, tanta coragem, tanta vontade e tanta despreocupação e preocupação e amor. Tudo entorpecia. Luna era intensa e transmitia cada sentimento.
- O que te sustenta?- Hermione perguntou. Luna apoiava-se na janela.
- Não sei. Talvez amido. Talvez oxigênio. Talvez a magia. É bem provável que seja a fome de vida que me mantenha viva. O que me sustenta é o que me destrói. Você tem cabelos bonitos. Eu queria assistir filmes trouxas e dançar ballet. Eu não danço. Você foi uma dançarina de can-can em outra vida. Eu não devia falar de você. Era pra falar de mim e da guerra. A guerra é suja. O que me sustenta é a sujeira. Me sustenta a vontade de limpar.
- Onde você fica nisso?
- Eu não fico. Eu escorro entre manchas e muco. Eu não importo muito não. Eu só me importo. Isso é bem egoísta. Eu sou feliz. Isso é que importa. A felicidade é bonita e eu quero mastigá-la. Eu sou uma formiga e você não me pisoteia. Eu fico no meio do grito. Eu só escorro. Só limpo. Passo e ninguém vê. Não fico.
- Você tem fome de que?
- De paz. De felicidade. De paixão. Eu sempre quero comer paz, felicidade e paixão. Eu quero abocanhar a vida. Quero viver a vida e quero que você viva. Eu sou super-heroína. Você é mais ainda. Eu sou mulher invisível. Você é mulher maravilha. A gente brilha. A gente se esconde. Não nos esquecem. Lembram bisextamente. Eu quero comer o mundo todo. Quero cuidar do mundo todo. Eu tenho fome de mim. Eu sou egoísta.
- Fome de paz? O que acha da paz?
- Inexiste e por isso eu tenho fome dela.
- Como se sente agora que a guerra acabou?
- Como me sentia na guerra. Em guerra. Ainda há muito o que fazer.
- O que?
- Falta a felicidade geral. A cura dos males. Falta a paz mundial feito miss universo. Falta a carne. Falta bondade. Falta sentimento. Falta um braço a mais e um parafuso a menos. Falta coragem e eu quero coragem. Quero o mundo todo. O mundo todo. Ainda há muito o que fazer. Não se sabe por onde começar e se começa do câncer. Falta cura pro câncer. Falta a gente não precisar de magia. Reversão do avada kedavra. Voltar com tudo pra caixa de pandora e espalhar só a esperança.
- Onde você fica nisso tudo?
- Tentando fazer o mínimo, que eu também obedeço à lei do menor esforço. Tento ser ouvida, mesmo não tendo muito o que falar. Pesquiso e publico fatos novos. Tento cortar o mal pela raiz e descobrir raízes. Tento reforçar raízes boas. Fico feito cega em tiroteio. Há muito o que fazer e eu estou cansada.
N.A.: Esse capítulo é dedicado a Flora Viguini, uma loura de olhar perdido e mente revolucionária. Nem precisa dizer que essa Luna é baseada na Flora. Na Flora e numa outra pessoa especial, que me fascina, mas não sabe disso ainda.

Quando escrevi esta nota, o Bruno não sabia que era fascinante e atraente a mim. Agora, cerca de oito meses depois, ele é um amigo e nada mais. Alguém que eu descobri não tão Luna quanto a Flora.

E com vocês....
Cenas dos próximos capítulos:

“- Você me ama?
- Não sei.
- Você me trai?
- Não.”

Acho que o trecho já é significativo por si só.

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