Panis et circencis



Capítulo 2
Panis et circencis

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.
Eu te amo,
Chico Buarque


Uma dose de whiski de fogo a mais não faria diferença. Gina já encontraria Draco bêbado quando chegasse, de qualquer jeito. Ela não devia se atrasar. Ela ficava brava quando ele bebia, mas sabia que ele beberia se ela atrasasse. Desta vez ela tinha exagerado. Se fosse quarta haveria motivo, mas já era quinta e o dia de trabalho dela não podia ser assim tão longo. Ela se atrasou. Mas já tinha tido tempo pra compensar. Mil coisas na cabeça. Mais umas duas ou três doses e o sono veio ali mesmo, sentado no sofá com salmão pronto no forno. Draco raramente se metia a cozinhar. Quando se metia, os pratos eram dos mais requintados. Salmão ao molho de alcaparras, dessa vez. E Gina não chegava. Ele jurou em sonhos que nunca mais faria salmão.
Ela deu graças por ele não a ter visto chegar. Estava sem o casaco e não podia dizer onde tinha deixado. Mudou o pijama, se perfumou e foi acordar o marido. Viu que ele estava embriagado, notava-se de longe. Mas naquela noite ela queria agradá-lo ao máximo. Arrancou-lhe peça por peça da roupa. Ele já nem sentia direito as carícias que ela fazia. Falava do salmão e do atraso, oferecia mais uma dose, pedia mais uma dose.
Ela o arrastou para o quarto. Deitou-o seminu na cama e pôs se aos pés dele. Massageava o dedão do pé esquerdo, passava para o indicador, com delicadeza, e para o dedo médio, o anelar e o mínimo. Massageava todos, depois passava para o peito do pé e ia dedilhando até o calcanhar. Pressionava o calcanhar com a palma das mãos e depois passava o dedão por todo pé. Draco adorava quando ela fazia essa massagem, e, antes mesmo dela chegar ao dedo médio do pé direito, ele já havia adormecido profundamente.
Ela viu o salmão no forno quando foi à cozinha. É pena que ele já tivesse esfriado. Esquentou parte dele com um feitiço e comeu. Escovou os dentes e voltou para a cama. Deitou usando o peito de Draco como travesseiro. Lembrava de Hogwarts, quando os dois começaram a namorar escondido. Ele era completamente arrogante e prepotente. Ela era tão pequena e frágil. Tão apaixonada pelo Potter que não via um palmo à frente dos olhos. Draco surgiu a um milímetro e ela pôde enxergar. Não sabia por que, nem desde quando. Mas ele a queria. Ele a beijou antes que ela soubesse que ele existia. No último ano dele, numa cabine vazia do expresso de Hogwarts. Ela estava dormindo, e quando viu, ele estava ali. Ninguém podia saber. Nem ela sabia direito. Não sabia se tinha sonhado, meses depois soube o que tinha acontecido e o que ela queria que acontecesse, e aconteceu. Os dois se casaram assim que ela terminou Hogwarts. Ela admitia que tinha sido meio cedo, mas o fervor da paixão adolescente dos dois e o tradicionalismo da família dela não permitiam que aquilo se adiasse. Ele era o único homem que ela já tinha tido. Casou virgem. Era o modelo perfeito de esposa, então.
O fato é que ela não se sentia completa. Faltava aventura, era tudo muito certo, muito calmo e muito bonito. Nunca deixou de sentir-se atraída pelo Potter e sempre teve uma ponta de inveja de Hermione. Ela sabia de tudo, participava das melhores histórias. Jogava snap explosivo mal e ninguém reclamava. Nunca precisou de quadribol pra se afirmar. Tinha namorado Victor Krum - só Gina sabia, mas era fato.
Era fato, também, que ultimamente ela tinha vontade de concretizar a atração que sentia por Harry Potter. Passou a agir diferente, soltar o cabelo, diminuir as saias, aumentar os decotes, sorrir mais que o normal e conversar olhando nos olhos. Sabia das armas que tinha e como conseguir o que queria. O problema era a cara que Harry tinha. Tinha cara de sujeito fiel. Parecia ser quadradamente fiel à esposa redondamente infiel. Esposa que era amiga de Gina, e a quem Gina jamais trairia, dizendo tê-la visto sair de casa indo para algum lugar que não o profeta. Se Harry perguntasse, diria que a viu com a mãe.
Adormeceu entre Hermione e o desejo pelo marido dela. Pensava no plantão do sábado, pensava na lingerie que usaria. Pensava, novamente, em como não prestava nem um pouquinho.
Acordou antes de Draco e ainda no peito dele, que dormia feito pedra. Acordaria com uma dor de cabeça insuportável. Desceu e - talvez em resposta ao salmão, talvez por culpa pelo que ainda não tinha feito, mas faria - preparou o café da manhã. Acordou Draco quando já estava vestida para ir trabalhar, desta vez com um vestido azul claro, de alça fina e decote quadrado, não muito provocante.
- Você podia falar mais baixo.
- Eu estou falando baixo, Draco. Vamos, eu fiz o café para você.
- Não está brava? Eu bebi ontem.
- Eu vi que você bebeu, criança - ela dizia em tom maternal e ele franziu a testa. Odiava quando ela o tratava nesse tom, especialmente se o chamava de bebê ou criança. Ele não tinha casado-se com ela? Ele não era um bebê. Era o homem que transava com ela, que cuidava dela, a fazia sentir tesão. Que espécie de perversão era essa? Um Édipo invertido, talvez. Quando ela falava assim, ele não sabia se ela queria ser mãe ou mulher. Esperava que ele quisesse ser mulher. Afinal, ele já tinha se resolvido com Jocasta há tempos.
Ele desceu, emburrado, com Gina à frente. Comeram juntos os waffles que ela tinha feito. Escovaram os dentes e aparataram, ele na entrada do Beco Diagonal, ela, na entrada do ministério.
***
Hermione chegou em casa antes de Harry. Edwiges estava com um bilhete preso ao pé esquerdo. Era de Harry e dizia que ele estava na casa de Rony, visitando o bebê, e que Hermione deveria aparecer por lá. Ela devolveu a coruja dizendo que não iria por estar cansada. Deitou na cama e dormiu sem saber se havia comida para o marido ao chegar em casa.
Harry não se demorou. Ao receber o bilhete de Hermione, aceitou o chá que Pansy ofereceu, conversou um pouco, despediu-se devidamente e aparatou no seu quarto, onde Hermione já dormia. Desceu e viu que não tinha nada pronto para comer. Devia ter aceitado do macarrão que Pansy estava fazendo. Tinha esquecido que a mulher era completamente relapsa. Sentiu-se bravo. Não fez disso algo inerente, relaxou, pegou biscoitos na cozinha e ligou a tv. Ainda não entendia por que Hermione não permitia que os dois tivessem elfos domésticos. Preferia contar com uma faxineira trouxa três vezes por semana. Hermione dizia que o FALE perderia o sentido se ela tivesse um elfo. Harry pensava que não gostava de não ter jantar pronto ao chegar em casa.
Na manhã seguinte, ela acordou antes dele. Vestiu um daqueles terninhos e não esperou que Harry acordasse para ir trabalhar. Sabia que ele não a esperaria se a situação fosse oposta. Estava em dúvida se visitaria ou não seu médico de estimação, mas ela gostava de aparecer de surpresa. Se não tivesse estado com ele no dia anterior, talvez se empolgasse. Naquele dia ela realmente precisava ir ao Profeta.
Harry acordou em cima da hora. Arrumou-se correndo e foi trabalhar sem nem passar pela cozinha. Não se deu ao trabalho de arrumar a cama ou procurar saber se Hermione estava viva.
Aparatou na frente do ministério e viu Gina entrando no prédio. Tentou correr para alcançá-la, mas não conseguiu. Ela estava com uma pressa inexplicável, aquela manhã. Foi direto para a sua sala. Sentou-se, leu o Profeta Diário, Hermione tinha escrito uma matéria muito interessante. Algo sobre a semelhança entre algumas guerras trouxas e as guerras bruxas. Sobre o estrago que um trouxa podia fazer sem magia, citou a bomba de Hiroshima e alertou sobre o perigo de magia em mãos erradas. A matéria era instigante, apesar de gigantesca. Harry sentiu-se orgulhoso da mulher. Ele ainda achava que ela tinha nascido para medibruxa, mas, de fato, era uma excelente repórter.
O mundo bruxo andava tranqüilo. Desde o fim da guerra, Harry não tinha muito o que fazer. É claro, a vigilância devia ser constante. Ainda havia bruxos foragidos, mas eram pouco perigosos. O trabalho dos aurores, então, consistia em fiscalizar Azkaban e receber notícias sobre possíveis locais onde os antigos comensais se encontravam. Havia ainda os que vigiavam os antigos comensais dados como inocentes e os parentes deles. Draco foi vigiado por cinco anos, depois de ter se formado em Hogwarts, mas foi considerado inofensivo. Volta e meia apareciam lobisomens fora de controle, ou neocomensais fazendo manifestações infantis, mas era raro. Naquele final de semana, Harry e Gina não poderiam dormir. Estariam na Ordem da Fênix, qualquer coisa que acontecesse de imprevisto seria responsabilidade deles, se fosse algo grave, lhes cabia alertar aos outros aurores.
Harry checava a lista de fugitivos e prováveis paradeiros, quando, ao olhar para a janela, viu que o casaco de Gina ainda estava no seu porta-ternos. Levantou-se, deixando Gregory Goyle na Sibéria para depois, e foi à sala da colega, no ímpeto de entregá-la o casaco e na ânsia de vê-la.
A secretária estranhou a pressa de Harry, e Gina se surpreendeu ao ver que ele entrou sem nem bater. A primeira coisa que ele notou foi que as flores do dia anterior estavam num vaso, em cima da estante de Gina. Depois ele foi notar que, novamente, parecia um babaca egocêntrico. Será que ele não podia ter batido à porta ou pedido à secretária que o anunciasse? Teve vontade de bater na própria cabeça, mas não o fez.
- O que foi? - Gina perguntou, sem poder esconder o sorriso que tinha no rosto, Harry estava em suas mãos.
- Vim te devolver o casaco. Você o esqueceu ontem, na minha sala.
- Bom ele estar com você. Eu achei que tinha perdido no almoço. Se tivesse ficado no restaurante creio que nunca mais o veria.
- Corria o risco.
-Hermione, como está?
- Está bem - Harry respondeu automaticamente, na verdade não fazia idéia de como ela estava. Os dois só dialogavam, realmente, às quartas, depois do jantar.
- Diz pra ela que eu mandei um abraço, e que se ela precisar eu ajudo, na quarta.
- Não precisa. Quarta passada ela não fez nada por você.
- Quem disse? Se não fosse ela, a gente tinha ficado sem sobremesa, a mousse que eu tinha feito deu errado. Mandei uma coruja desesperada para Hermione, que comprou aquela torta maravilhosa numa padaria trouxa e levou.
- Não sabia.
- A Mione não é muito de se vangloriar pelo bem que faz - Gina disse, sorrindo, e saiu de trás da mesa para sentar-se numa das poltronas que ficavam no canto da sala. - Harry, sente-se. Dá tempo de a gente conversar - Harry obedeceu e se sentou numa poltrona em frente à de Gina.
- A gente almoça junto hoje?
- Podemos. Quer almoçar onde?
- Prefere um restaurante trouxa ou bruxo?
-Não estou vestindo roupas trouxas.
- Ninguém vai notar.
- Então pode ser num restaurante trouxa. Fica perto daqui?
- Dá pra ir a pé, são duas quadras. Acho que você vai gostar. Você prefere ir que horas?
- Daqui a uma meia hora está bom pra mim._ Ela disse, enquanto cruzava as pernas.
- O que?_ Ele não tinha conseguido ouvir. Ela riu baixinho antes de responder.
- Meia hora.
- Ok. Eu volto daqui a pouco.
- Pode ficar aqui. A gente faz junto o que tem pra fazer. Termina mais rápido.
- Só tenho que atualizar aquela lista dos antigos comensais fugidos.
- Adiou isso por quanto tempo?
- Nem sei. A gente realmente não anda tendo muito o que fazer.
- A culpa é sua. Dês de que você derrotou você-sabe-quem, parece que os bruxos das trevas têm medo de fazer alguma coisa. No começo apareciam alguns, mas depois que a ficha caiu a gente anda em paz.
- Tenho medo dessa paz. Acho que ainda não acabou.
- Nunca acaba, mas, por enquanto, há medo.
- Acho que mais em nós do que neles. A gente anda com um pé atrás. E se Voldemort não tiver morrido?
- Morreu, Harry, dessa vez foi pra valer. Se tivesse sobrevivido já o teríamos encontrado.
- Então é nada. Sem grande vilão, sem grandes heróis e sem nada pra fazer no trabalho.
- Lista de antigos comensais.
- Tenho saudade do tempo em que havia batalhas.
- Estamos bem sem guerra - Gina disse, num tom sério. Ficou um silêncio na sala e ambos sentiram-se constrangidos.
Gina, então tentava puxar qualquer assunto. Perguntava sobre o dia anterior e sobre conhecimentos trouxas sobre meteorologia. Harry sabia que aqueles assuntos não tinham a menor importância para nenhum dos dois, mas respondia prontamente. Tagarelava até que o assunto se esgotasse e ficava impressionado com o grau de atenção de Gina, por vezes o assunto murchava, mas ela estava sempre pronta a retomá-lo, perguntava, instigava. Harry não sabia direito o que falava. Só acordou do transe em que se encontrava ao falar com ela quando ela disse que era hora dos dois almoçarem. Foram andando e falando até o restaurante. Seria a primeira vez em que Gina comeria uma lasanha. Ambos riam alto e quando Gina caia em si dizia entre uma e outra garfada:
- Mais baixo, há gente à volta.
Eles não se tocavam enquanto falavam, apenas olhavam um nos olhos do outro. Era impressionante como ela não desviava e piscava pouco, era tão segura, tão feroz, tão doce e tão interessante. A alça esquerda do vestido dela caiu, ele não pode deixar de reparar nos ombros dela, que não enrubesceu ao perceber o olhar. Continuavam conversando sobre todo e qualquer assunto, ele falava e ela comia, era impressionante como ela mastigava de um jeito bonito. Ele tentava disfarçar, mas não despregava os olhos da boca dela. Por um instante o assunto se desfez, como pedra feita de lama seca que vira pó. Nem ele nem ela falavam, ele comia sem olhar o próprio prato. Ela se dividia entre o prato e os olhos de Harry, que estavam desconcertantes. Sentiu as orelhas queimarem. Estava comendo, estava tímida e ele não desviava o olhar. Chegou uma hora em que ela não pode segurar.
- Harry.
- Sim.
- Tá acontecendo alguma coisa?
- Não, eu acho.
- Você comeu pouco.
- É, comi.
- Tem certeza que está tudo bem?
- Tenho sim.
- E por que você não come?
- Desculpe, é que não consigo parar de te olhar.


N/A: É, a lambança de shippers começou. A Mione ficou meio apagada nesse capítulo, mas no próximo ela volta à toda.
Vale ressaltar que parte desse capítulo foi inspirada no conto Missa do galo, de Machado de Assis, que eu também indico a quem quiser ler.

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