Aquele Beijo



"rumo aos ultimos cap
Capítulo 10: Aquele Beijo


Emily ficou ainda um bom tempo parada naquela calçada, enquanto o carro se afastava. Só entrou em casa quando o automóvel já há muito havia ultrapassado a linha do horizonte e saído de seu raio de visão. Parte sua ainda acreditava que ele fosse dar meia volta e vir buscá-la. Quando finalmente se convenceu de que isso não aconteceria, ela se sentiu... sozinha.

Por um momento, quase acreditara que aquele beijo iria fazê-la magicamente se lembrar de tudo. Isso não aconteceu, mas, de alguma forma, ele a ajudara a compreender melhor. Agora, ela sabia que não podia ficar ali em Harmony Springs. Sabia que seu lugar estava a quilômetros de distância ao sul, na Londres que ela não lembrava conhecer, ao lado de um homem que tampouco lhe era familiar, mas que, ao mesmo tempo, era a única pessoa no mundo capaz de fazê-la se sentir daquela forma.

Fora o beijo, ela tinha certeza. Aquele beijo tão longo, tão sofrido, tão esperado e tão desejado, que a fizera admitir por fim o que seu coração já sabia há muito tempo: que ela não amava John. Não daquele jeito, não com aquela intensidade, não com aquela necessidade. A cidade que até então fora seu lar passou a parecer um local estranho, vazio e sem sentido. Ela precisava dele. Precisava estar onde ele estava. Precisava descobrir quem ele era. Nunca em toda a sua vida, Emily sentira tamanha paixão por algo. Era como se ela tivesse passado os últimos dez anos meio entorpecida, sentindo as coisas pela metade, vendo o mundo com olhos que não eram os seus. Mas tudo mudara no momento daquele beijo. Como uma Bela Adormecida moderna, ela encontrara o seu príncipe. Agora, só precisava trazê-lo de volta.

Quando finalmente se convenceu de que ele não voltaria, pegou suas malas e entrou em casa. Seu corpo estava cansado e sua mente ansiava por algum descanso após todas as revelações do dia. Queria passar umas quarenta e oito horas inteiras dormindo, mas sabia que tinha coisas mais importantes a fazer. Mal ou bem, vivera ali por dez anos. Não poderia sair sem arrumar suas coisas e se despedir de inúmeras pessoas. Queria fazer a coisa do jeito certo e, para isso, deveria começar pela tarefa mais difícil: a conversa com John. A conversa que ela evitara o máximo possível, que ela tentara de todas as formas não precisar ter. Agora, era tarde demais para fugir. Pela primeira vez, Emily tinha certeza absoluta do que queria fazer e, de um jeito ou de outro, ela o faria.





O trajeto de volta para Edimburgo foi solitário e silencioso. A estrada estendia-se cada vez mais escura na sua frente, mas Draco parecia não perceber. Ele se recusava a pensar, se recusava a acreditar que havia cometido tamanha atrocidade. Como ele pôde afinal de contas deixá-la para trás? Ele nunca poderia deixá-la para trás! Ela estava sempre com ele, onde quer que ele fosse. Ela era a sua vida inteira. Como ele pôde abandoná-la daquela forma? O arrependimento demorou menos do que ele esperava para começar a abatê-lo e ele já estava se achando louco. Estava quase parando o carro no acostamento apenas para bater com a cabeça no volante por alguns minutos. Ele era o homem mais estúpido do mundo. Havia acabado de largar a única mulher que amara e deixá-la para ficar nos braços de quem? De um médico trouxa de interior que provavelmente mal sabia a diferença entre sarampo e rubéola! E, para completar a história, havia aquele beijo! Meu Deus, como é que ele poderia esquecer um beijo daqueles? Nunca, enquanto vivesse. Ela estava mais viva do que antes na memória dos seus sentidos e aquele beijo provavelmente o manteria acordado por noites e noites. Como ele pudera ser tão estúpido?

“É nisso que dá”, boa parte do seu cérebro parecia gritar, “querer ser nobre e generoso. Querer posar de Harry Potter!”. A generosidade e o altruísmo não eram para ele. Draco era um Malfoy e, como tal, deveria ter se comportado, arrastando-a de lá até Londres nem que fosse pelos cabelos! Naquele momento, sentia-se capaz de qualquer coisa, mas também sabia no fundo que, se a generosidade e o altruísmo não eram para ele, a bravura tampouco lhe caía bem. Como aparecer novamente no batente da casa dela após todo aquele teatro e dizer que ele havia se enganado? Que ela ainda era a sua Gina e que ele, por favor, a queria de volta? O que ela faria? Bateria a porta na sua cara, no mínimo. Draco não tinha o direito de brincar com a vida dela daquela maneira. De entrar e sair da casa dela como se eles fossem antigos vizinhos. De confundi-la com as suas próprias dúvidas, com os seus próprios medos.

Por mais que tivesse vontade de dar meia volta e ir buscá-la, ele não o fez. Temia a possibilidade de ser rejeitado. Será que conseguiria sobreviver se ouvisse da boca de Gina que ela não o amava mais? Que ela não o queria mais? Não teria sido esse o verdadeiro motivo por trás da sua decisão tão altruísta? Afinal de contas, se ele a deixasse primeiro, como ela poderia deixá-lo depois? Provavelmente, aquilo fizera parte das suas razões sim, mas não fora a única coisa. Boa parte de Draco estava realmente considerando o bem-estar de Gina, considerando sua felicidade. Ele queria vê-la sorrindo como antes. O erro estava em acreditar sequer por um instante que outro homem seria capaz de fazê-la sorrir do mesmo jeito.

De certa forma, esse pensamento acalmou Malfoy. Ele nunca fora mesmo conhecido por sua humildade, então não se incomodou com o tom extremamente presunçoso de sua conclusão. Ao menos, isso lhe deu alguma convicção — melhor dizendo, alguma esperança — de que, se ele voltasse naquele instante, Gina não o colocaria para fora da casa da mesma forma que ela não deixara de corresponder seu beijo.

Ele não voltou, contudo. Tampouco foi para Londres, entretanto. Chegou em Edimburgo já com a noite alta e alugou um quarto em um hotel bruxo, é claro. Após uma noite de sono — ou de rolar de um lado para o outro na cama, o que viesse primeiro — talvez ele tivesse uma idéia mais clara do que fazer.





O dia seguinte amanheceu calmo, quente e ensolarado. Emily pensara que não fosse conseguir dormir nada, mas, no momento em que sua cabeça encostou no travesseiro, o cansaço dos últimos dias finalmente cobrou seu preço. Ela dormiu como uma pedra. Um sono realmente revigorante.

Acordou por volta das oito, com a luz do dia já invadindo o seu quarto, e não perdeu tempo. Agora, por volta das nove e meia, estava parada diante da porta da casa de John esperando ele vir atendê-la. Não sabia exatamente o que iria falar, o que deveria fazer. Decidira, então, ser honesta consigo mesma e com ele. No final das contas, John era importante para ela, mesmo que não fosse o amor da sua vida.

Ele demorou um pouco para vir. Com certeza não teria que estar no hospital tão cedo, do contrário, já estaria pronto ou pelo menos, se preparando. Abriu a porta, entretanto, usando ainda seus pijamas e com uma cara inconfundível de sono.

— Eu te acordei? — Emily perguntou suavemente, dando-se conta somente naquele momento que ainda não era assim tão tarde.

— Eu tive plantão durante a noite... — ele respondeu, com os olhos ainda semicerrados.

— Ah, me desculpe... Eu posso voltar outra hora... — ela falou imediatamente, começando a se retirar. Parte sua estava aliviada com o adiamento.

— Não, tudo bem — John a segurou levemente pelo braço — Não tem problema — e se moveu para dar espaço para que ela passasse pela porta. Sem saída, ela entrou na casa ainda escura e, sem cerimônias, foi para a sala, onde, sem uma idéia melhor sobre como deveria agir, sentou-se em uma poltrona e esperou que ele se juntasse a ela.

— Só um minuto — John falou — Eu já volto... — e subiu as escadas para o quarto, provavelmente para trocar de roupa ou escovar os dentes. Quando ficou sozinha, Emily deixou escapar uma longa respiração nervosa. Ela sabia o que queria fazer, o que devia fazer, mas agora estava hesitante. Tudo era muito bonito na teoria, mas como pôr em prática? Como dizer para o homem com quem ela fizera planos de passar o resto da vida que simplesmente não era mais possível? Que tudo teria que ser mudado, repensado, replanejado por causa de apenas um beijo na soleira da sua porta? Aquilo não ia ser nada bonito e a consciência de que ela estava prestes a ferir profundamente alguém que apenas fizera amá-la era quase insuportável.

Fechando os olhos por um breve instante, Emily procurou lembrar-se de por que aquilo era importante. Procurou lembrar-se de como aquele beijo a fizera se sentir. No final das contas, não havia nada difícil. Ela não amava John e as coisas eram simples assim.





Draco virou-se na cama pela enésima vez. Ele havia conseguido dormir por boa parte da noite até que foi acordado, pouco depois do nascer do sol, por uma coruja insistente que continuava batendo com a pata na janela do hotel. Ele não queria ler aquela carta. Não queria ter que ser chamado urgentemente de volta a Londres por causa de algum maldito caso de pessoa desaparecida quando ainda havia tanto a ser resolvido ali na Escócia. A coruja, contudo, não parecia disposta a desistir e, depois de uns bons quarenta minutos tentando ignorar aquela interrupção insistente, Draco finalmente levantou-se irado da cama e abriu o vidro.

O animal voou para dentro do quarto na hora e sentou-se solenemente sobre a cama, com um olhar de censura. Fazendo cara feia, Malfoy sentou-se ao lado dele e retirou o pedaço de pergaminho que vinha preso em uma das suas patas. Ele queria que a coruja fosse voando pela janela de volta para o lugar daonde ela tinha vindo no ato, mas, ao invés disso, ela continuou parada, esperando por uma resposta.

Com uma cara ainda mais feia, ele rasgou o selo do pergaminho e quase devorou as palavras na sua frente:

“Draco,

onde diabos está você??? Te procurei em todos os lugares menos no inferno e não te encontrei. É bom você não ter se envolvido em nenhuma confusão, seu cabeça de vento. E, onde quer que você tenha se metido, volte imediatamente. É hoje que nós vamos conseguir aqueles arquivos. Estou cansado de ser enrolado. Está na hora de tomarmos medidas drásticas.

Te encontro no seu apartamento às 10h. Não se atrase.

Matt.”

Se qualquer outra pessoa lhe mandasse uma carta daquelas, Malfoy provavelmente a comeria viva, mas Matt tinha os seus privilégios. E, além disso, a notícia dele era boa demais para ser ignorada. Era óbvio a quais arquivos ele havia se referido: os arquivos dos casos das mulheres desaparecidas. O’Brien finalmente iria consegui-los! Draco realmente tinha esperanças de que eles fossem ajudá-lo a jogar luz naquele mistério e a encontrar o maldito assassino que, com certeza, receberia a recompensa merecida por tudo o que fez a Gina assim que Malfoy pusesse as mãos em seu pescocinho. Ah, se receberia!

Rapidamente, então, ele pegou um outro pedaço de pergaminho nas suas coisas e rabiscou: “Eu não vou me atrasar.” Depois, prendeu o bilhete novamente na pata da coruja que, aí sim, levantou vôo e saiu pela janela. Draco ainda ficou encarando o céu azul por alguns instantes depois que ela se foi. Ele planejara ir buscar Gina hoje. Iria falar com ela, pedir desculpas, ganhá-la de volta — isso, ao menos, nos seus sonhos. Mas esses sonhos poderiam esperar mais um dia. O que ele não podia fazer — sob nenhuma circunstância — era ignorar a chance de descobrir o responsável — o culpado por toda aquela história.

Isso ele faria nem que fosse a última coisa na sua vida. E, se ele morresse depois disso, morreria feliz.





— Eu não esperava que você estivesse de volta tão rápido — John falou com uma certa esperança na voz, ao sentar-se diante dela na sala. O coração de Emily se contraiu ao saber que, em questão de minutos, ela teria que acabar com aquela esperança.

— Eu também não esperava estar de volta logo — tentou responder com uma voz neutra.

— Então o que aconteceu? — ele perguntou quase inocentemente. Como ela poderia responder a essa pergunta? Como colocar em palavras de forma que ele pudesse entender tudo o que estava sentindo?

— Nada — ela disse por fim — E ao mesmo tempo, tudo.

— O que isso quer dizer?

— Eu mesma ainda estou tentando entender — ela levou as mãos ao rosto — John...

— Você viu a sua família? — ele interrompeu secamente.

— Não.

— O tal médico que ele te levou para ver serviu de alguma coisa?

— Não.

— Então por que eu tenho a sensação de que aqui é o último lugar da Terra onde você gostaria de estar?

— Porque é assim que eu me sinto.

— Você... Você... — ele começou, mas subitamente não sabia o que dizer. Levantou-se da cadeira e foi até a janela. Algumas crianças brincavam na rua vazia como se tudo estivesse bem no mundo. Inundado por uma raiva sem tamanho, John cerrou os punhos e socou a parede, fazendo Emily pular na poltrona — Por quê? É só isso que eu gostaria de entender! Por quê?! O que foi que eu fiz de errado??!!

— John... — ela começou se levantando, mas ele a interrompeu.

— Não! Você não precisa dizer mais nada. Eu sempre soube. Sempre soube — completou apoiando a cabeça contra o vidro e fechando os olhos.

— Sempre soube o quê?

— Sempre soube que um dia você iria abandonar a vida que construiu... que você iria me abandonar por causa de alguma meia promessa, de alguma meia certeza no horizonte. Você nunca me amou.

— Isso não é verdade.

— É sim. E você sabe disso tão bem quanto eu. Eu fui um passatempo adequado enquanto você estava esperando pela sua vida de verdade recomeçar.

— Se você se sentia assim, então por que ficou comigo?

— Porque eu te amo! Porque eu tinha esperanças de que a sua vida de verdade nunca iria recomeçar. Entende como isso é estranho? De certa forma, eu queria que você não descobrisse nada... Eu tinha esperança de que talvez algum dia o que eu estava oferecendo seria suficiente para você.

— Isso é tão pouco, John. Você merece alguém que te ame de verdade.

— Eu sei. Infelizmente, eu também sei que falar é muito fácil. Muito mais fácil do que fazer.

— Não é verdade que eu nunca te amei — Emily falou suavemente, se aproximando dele — Você é uma pessoa maravilhosa e eu não sei o que teria acontecido comigo se não fosse por...

— Eu não quero a sua gratidão! — ele gritou, virando-se para encará-la incisivamente — Eu não quero a sua gratidão!!! Eu nunca quis e isso foi sempre a única coisa que você me deu!

— John...

— Vá embora, Emily.

— Não faça isso...

— E você quer que eu faça o quê? Que diga que está tudo bem? Que você não me feriu? Que eu não gostaria que você ficasse? Que eu não daria a minha vida para que tudo fosse diferente? É isso que você quer que eu diga?

— Eu sei que é difícil...

— Não, você não sabe. Você nunca soube — e após uma pausa — Vá embora, Emily. Quanto mais rápido você for, melhor para nós dois — e ele se virou de novo para a janela, sem encará-la, esperando.

Tremendo ligeiramente, ela se afastou dele, caminhando na direção da porta. Quando estava quase saindo, tirou do dedo a aliança de noivado e a colocou vagarosamente sobre o aparador. Era realmente o fim, ela se deu conta. Tinha acabado de abrir mão do que fora o seu maior ponto de referência durante dez anos por causa de um homem que ela mal conhecia. Era impossível não sentir medo enquanto abria a porta e saia para a rua. Era impossível não ter dúvidas ao contemplar a tranqüila vizinhança e o riso alegre das crianças brincando. Era impossível não questionar os seus próprios motivos ao sair andando por aqueles caminhos tão familiares, sabendo que, dali em diante, nada seria conhecido, nada seria familiar.

O medo era natural, Emily decidiu, por fim, mas deixar esse medo determinar as suas ações não seria. Por mais que tivesse dúvidas, ela sabia que tinha feito a coisa certa. Sabia que tinha tomado a decisão certa.

Era hora de começar a viver a sua própria vida.





Draco andava de um lado para o outro sem parar, checando o relógio a intervalos regulares. Já passava das dez, mas o infeliz do O’Brien ainda não tinha chegado e, se havia algo que ele realmente detestava, era esperar. Malfoy já tinha fumado cinco cigarros, um atrás do outro. Fazia anos que ele não fumava assim, mas nem isso pareceu acalmar seus nervos. Por fim, quando ele tinha acabado de acender o sexto cigarro e o chão do seu apartamento já quase estava com um buraco de tanto que ele andava para lá e para cá, ouviu a voz do outro às suas costas:

— Fumar realmente faz mal à saúde, sabia?

— Onde foi que você se meteu?!

— Calma! São só dez e quinze...

— Não me interessa se são só dez e quinze! Você está atrasado do mesmo jeito!

— Sim, eu sei, mas agora estou aqui. Satisfeito?

— Trouxe os malditos arquivos? — Draco perguntou impaciente.

— Trouxe — O’Brien respondeu, mostrando algumas pastas que carregava — Aqui estão.

— Por que você não falou logo? — Malfoy perguntou, tomando os papéis das mãos do outro avidamente e sentando-se com eles na mesa. Estavam ali! Finalmente, ao alcance das suas mãos! Mesmo se quisesse, ele não teria conseguido disfarçar sua ansiedade. Não quando poderia estar diante da resposta para todas as suas perguntas.

— Não vai querer ajuda para examiná-los? — O’Brien perguntou — Eu os peguei emprestado, então nós não temos muito tempo antes de devolvê-los...

— Pegou emprestado? — Draco levantou as sobrancelhas. O outro apenas sorriu.

— E então, quer ajuda ou não quer?

— Claro que sim. Sente-se aí — convidou empurrando uma das pastas na direção de Matt, que pegou a cadeira oposta à do outro e se curvou, pronto para trabalhar.

— O que exatamente você espera descobrir aqui?

— Tudo. Ou pelo menos, alguma coisa.

— ‘Alguma coisa’ não é um pouco vago demais, não?...

— Se eu soubesse exatamente o que eu estou procurando, eu não estaria procurando merda nenhuma, né? Já tinha encontrado! — Malfoy respondeu perdendo a paciência — Eu não sei o que passava pela mente do infeliz que investigou esses crimes pela primeira vez, mas talvez ele tenha visto algo que nós não vimos. Talvez nós possamos até encontrá-lo pessoalmente para perguntar.

— Ou talvez ele esteja envolvido na trama toda.

— Um investigador da sua própria organização?

— Em primeiro lugar, ela não é a minha organização. Eu apenas trabalho para ela. É diferente. Em segundo lugar, deve haver um motivo pelo qual ninguém, nem mesmo a Organização percebeu a conexão entre esses crimes antes, não é mesmo?

— Você acha que o tal Smith acobertou tudo.

— Quem sabe? Eu acho apenas que é uma possibilidade a se considerar.

— Mas se esse for o caso, nós não encontraremos nada de útil nos arquivos dele!

— Bom, só há um jeito de descobrir, Draco — Matt respondeu, curvando-se novamente sobre os papéis em cima da mesa. Malfoy o encarou ainda por alguns instantes, considerando suas palavras. Talvez O’Brien estivesse certo e tudo aquilo fosse inútil: apenas mais um beco sem saída, uma esperança perdida. ‘Não’, ele balançou a própria cabeça, afastando tais pensamentos. ‘Não desta vez’. Ele tinha certeza de que descobriria algo importante ali. Tinha certeza absoluta e, imbuído dessa convicção, pôs-se a trabalhar ferozmente.

Os arquivos estavam em profunda confusão. À primeira vista, poderia até parecer que fora o próprio investigador que causara tal desordem, mas, olhando com cuidado, era possível notar certos padrões e detalhes que nunca teria sido levados em consideração por uma pessoa tão desorganizada. Pelo contrário. Na opinião de Draco, ficou logo claro que aqueles arquivos haviam sido revirados, revistados e pesquisados de forma apressada. E que quem quer que tivesse sido responsável por isso causara tamanha bagunça.

— Você mexeu nessas pastas antes de chegar aqui, Matt? — ele perguntou mais por desencargo de consciência. Precisava eliminar todas as possibilidades.

— Não. Por quê? Você está achando que eu tirei tudo do lugar?

— Só estou querendo ter certeza de que não foi você. Só isso.

— Bom, não fui eu — e após uma pausa — Por quê? Quem você acha que foi?

— Alguém que está tão interessado nesses arquivos quanto eu. Ou mais, até.

— Você não acha que está ficando meio paranóico? Eu encontrei essas pastas quase perdidas. Elas estavam empoeiradas e abandonadas. Ninguém as tocava há anos!

— Se elas eram assim tão pouco importantes, por que você teve que “pegá-las emprestado”? Por que não deixaram você simplesmente sair pela porta com elas?

— Regulamentos, eu acho. Políticas. Todos os documentos lá são controlados. A burocracia é tremenda.

— É... E talvez haja motivo para tantos segredinhos... — Malfoy resmungou, voltando-se novamente para os papéis na sua frente. Matt ignorou o último comentário e também voltou ao trabalho.

Pouco depois, contudo, Draco não pôde deixar de manifestar em voz alta a sua frustração:

— Mas não tem nada aqui! — ele exclamou, empurrando a pasta para longe — Está tudo uma bagunça completa e não há nada que nós já não saibamos!

— Como você pode chegar a essa conclusão tão rápido? Eu mal estou na metade do meu arquivo!

— É óbvio, não é? Qualquer coisa de interesse para nós que pudesse estar aqui já foi convenientemente removido!

— Removido por quem?!

— Pela mesma pessoa que fez essa zona toda com os papéis!

— Você e a sua paranóia...

— Não é paranóia! — Draco exclamou, levantando-se da mesa com raiva e derrubando a cadeira no processo — Eu não sou maluco, sabia, merda?! E eu sei muito bem reconhecer uma armação quando eu vejo uma! E é isso que essas pastas são: uma armação, um embuste! Deixadas aí para enganar os trouxas quando qualquer coisa de valor já foi retirada!

— Como você pode ter certeza sem nem olhar tudo?!

— Tendo!

— Só você mesmo... — Matt riu, enquanto virava-se de novo para o arquivo.

— Só eu mesmo por quê? Por acaso o que eu estou falando é tão absurdo assim? — o outro perguntou furioso. Realmente precisava descarregar toda aquela raiva acumulada em alguém e Matt era o candidato mais próximo.

— Não, Draco — O’Brien suspirou resignado — não é absurdo. Eu só acho que você não tem como ter tanta certeza assim antes de olhar. As pastas estão todas bagunçadas... Se elas foram mesmo reviradas...

— Se, não! Elas foram reviradas. Eu não tenho dúvida alguma.

— Pois bem, elas foram reviradas.

— E saqueadas.

— E saqueadas — Matt concordou meio a contra-gosto — Mas está claro que isso foi feito de forma apressada. Talvez algo tenha escapado da revista.

— Talvez, talvez... Eu estou cansado desta palavra — Malfoy respondeu, acendendo outro cigarro e recomeçando a andar de um lado para o outro, enquanto O’Brien voltou a ler cuidadosamente os documentos. Não demorou muito, contudo, e ele foi novamente interrompido:

— O que você sabe sobre esse tal de Smith?

— Como assim?

— Como assim?! Como assim?! Será que a pergunta foi complicada demais para você entender?

— Draco, agora você está realmente passando dos limites!...

— Eu estou cansado, okay? Estou cansado, frustrado, decepcionado, nervoso, fudido, sozinho, com a mulher que eu amo praticamente no altar com outro homem e, para piorar, estou fazendo uma merda de pergunta simples que aparentemente é difícil demais para você entender, então, me dê a porra de um desconto, okay?

— Com a mulher que você ama o quê???

— Não pergunte.

— Mas, Draco...

— Não pergunte!

— Você encontrou a Gina?!

— Eu já disse para você não perguntar, merda!!!

— Você disse, mas esta simplesmente não é uma opção! E eu tenho o direito de saber: ou você encontrou ou você não encontrou!

— Ah, quem dera que fosse fácil assim — Draco soltou uma risada nervosa.

— Mas é fácil.

— Não, não é.

— E por que não? Se ela está viva, se você sabe onde ela está, se...

— ... se ela vai se casar com outro homem... — ele adicionou sarcasticamente.

— Ela o quê?

— Não pergunte. Eu não quero falar sobre esse assunto.

— Mas ela está bem? Ela está viva?

— Ela está bem e está viva. Ela só não é mais a Gina.

— Não é mais a Gina?! Mas então, qu...

— É uma longa história e eu não quero falar sobre isso agora, entendeu? Ou eu vou ter que começar a ser mal-educado?

— Você é sempre mal-educado, Malfoy.

— Exatamente. Agora diz logo o que você sabe sobre a porra do Smith ou me deixe em paz de vez!

— Nada! Eu não sei nada sobre a porra do Smith! Eu já te falei que eu não conheço ele!

— Mas ele ainda trabalha na Organização?

— Eu já te disse que não me lembrava de ninguém com esse nome. E depois eu ainda fiz uma pesquisa, mas o único Smith que eu encontrei era novo demais para ser o nosso Smith.

— Resumindo: você não sabe de porra nenhuma.

— Nenhuma — o outro concordou.

— Nem conhece ninguém que saiba? Que tenha trabalhado lá na mesma época?

— Não.

— Vocês não têm registro de empregados? Nada?

— Acredite, Draco — Matt balançou a cabeça em sinal negativo — é como se o cara nunca tivesse existido.

— Ou teve seus registros cuidadosamente apagados pela mesma pessoa que mexeu nos arquivos.

— Se esse for o caso, então, por que não sumir com os arquivos de uma vez também? Não faz sentido mantê-los, mesmo que incompletos.

— Talvez não — Draco deu os ombros — O fato é que os arquivos estão aqui, eles têm a letra e a assinatura do Smith, então eu estou supondo que ele não seja um produto da imaginação de alguém, e, para completar, eles foram revirados e saqueados.

— Saqueados? Você não acha que essa palavra é meio melodramática demais, não?

— Saqueados, roubados, afanados, escondidos, surrupiados... você pode escolher a expressão. Por mim, tanto faz. Tudo significa exatamente a mesma coisa: eu estou mais uma vez em um beco sem saída.

— Não necessariamente... — Matt falou, em um tom de voz um pouco distante, como quem acaba de perceber algo muito importante. Ele estava aparentemente bastante interessado em alguma coisa nos papéis.

— O que foi? Você achou algo?

— Talvez — o outro respondeu de forma enigmática.

— Você não tem certeza se é importante?

— Ah, não. Eu tenho bastante certeza de que é importante.

— Então o que é? Um nome? Um lugar? Um...

— Um ritual.

— Que tipo de ritual?

— Eu não tenho certeza.

— Então como você pode saber que é importante?!

— Acredite, eu sei.

— Deixa eu ver isso — Draco puxou o papel da mão dele — Não tem nada aqui — constatou após passar os olhos pelas palavras.

— No final da página.

— Sim?

— Leia.

— Não dá para entender.

— Exatamente. Está em alemão arcaico.

— Mas são só algumas palavrinhas...

— E você sabe o que elas significam? — o outro indagou, mortalmente sério.

— O quê? — Draco perguntou, sentindo seu coração se acelerar subitamente.

— Significam: “A Morte da Alma”. Agora, eu não consigo pensar em nenhum bom ritual que leve esse nome. Você consegue?

— Não — Malfoy respondeu, empalidecendo — Não consigo.





Já passava um pouco da hora do almoço. Emily entrou em casa apressada. Depois que terminara a tão temida conversa com John, saíra para dar um passeio pela cidade. De certa forma, ela sentia como se estivesse se despedindo silenciosamente de tudo. Sabia que não poderia continuar sua vida ali, da forma como sonhara. Precisava sair finalmente da redoma de vidro em que vinha vivendo e encarar o mundo lá fora. O mundo grande, perigoso e cruel, mas, ao mesmo tempo, belo, sedutor e emocionante. Havia mais para ela, Emily sabia. Mais do que aquela cidade pequena, mais do que a vida que John planejara para os dois. E ainda assim, era difícil dizer adeus. Era como se ela tivesse que deixar para trás uma grande parte de si mesma. E uma parte que simplesmente não queria ser esquecida.

Ela entrou em casa ainda com o semblante um pouco pesado e o silêncio a recebeu, como sempre. A casa estava vazia. Emily esquecera uma das janelas abertas, então o vento leve fazia as cortinas beges se moverem, impelidas por uma força invisível. De certo modo, era assim que ela se sentia: agindo por conta de algo que não conseguia descrever, que não era palpável ou tangível, mas que estava lá. Inegavelmente estava lá. E era mais poderoso do que qualquer outra coisa que ela já sentira.

Calmamente, Emily foi até a janela e a fechou com cuidado. Depois, encarou sua sala vazia por alguns instantes. Estava com fome. Sabia que deveria ir para a cozinha preparar algo, mas não estava com ânimo para isso. Foi em direção ao telefone, então, com a intenção clara de ligar para algum restaurante e pedir o almoço. Quando pegou o aparelho, contudo, seus dedos hesitaram. Havia outra pessoa para quem ela deveria ligar.

O papel estava no seu bolso. O papel onde ele escrevera seu número. Tão próximo. Tão tentador. Emily o pegou e vagarosamente discou-o no fone. Depois, prendeu a respiração. O que ela falaria? O que afinal havia para ser dito? Seu coração começou a bater acelerado conforme do outro lado o telefone tocava. Ele iria atender a qualquer momento e que motivo ela tinha para estar ligando? Ela podia simplesmente dizer que queria que ele voltasse? Ele queria voltar? Emily sabia que sim. Em alguma parte do seu cérebro ou do seu coração, ela tinha certeza disso. Uma certeza que ia além da compreensão racional.

Enquanto milhares de pensamentos passavam pela sua cabeça, contudo, o telefone continuava tocando. E tocando, e tocando. Ele não estava em casa, ela sabia. Ainda esperou um pouco. Um pouco mais do que esperaria normalmente até que finalmente desistiu, seu coração acalmando-se, metade aliviado e metade angustiado. ‘Onde ele poderia estar?’, ela se perguntou sem que pudesse evitar. Depois, deixou-se cair no sofá e fitou o teto da sala desinteressadamente. O que ela estava fazendo com sua vida?

Logo, perdeu-se em devaneios mentais sobre o que iria acontecer. Não era uma prática muito aconselhável e as conclusões alcançadas quando ela estava neste estado de espírito raramente se mostravam válidas mais tarde, mas ainda assim Emily não conseguia resistir. Deixou-se ficar lá, então, quieta, pensando por um tempo. Antes que pudesse chegar a qualquer decisão, entretanto, foi interrompida.

Imediatamente, sentou-se reta no sofá. Aquilo não podia estar certo, podia? A casa dela estava vazia. Não poderiam realmente ser passos o que ela estava ouvindo no andar de cima, poderiam?

Rápido, Emily se levantou e foi até o pé da escada.

— Olá? — perguntou olhando para cima. Os passos pararam imediatamente — Tem alguém aí?

John e Camila eram os únicos que tinham as chaves da sua casa. Será que o médico já estava ali para buscar suas coisas? Dificilmente.

Intrigada, Emily começou a subir os degraus, pé ante pé. Não havia nenhum intruso no andar de cima. Ela estava apenas imaginando coisas, com certeza. Afinal de contas, nada de errado nunca acontece em Harmony Springs. Certo?





— O que houve? — Matt perguntou, preocupado, ao notar que Draco deixara-se cair na poltrona, muito mais branco do que o normal — Você sabe do que se trata?

— Havia um livro... — o outro respondeu, após uma longa pausa, encarando fixamente a lareira

— Sobre “A Morte da Alma”? Você o leu?

— Não. O meu pai falou dele para mim uma vez. Era um livro de magia negra. Antiga e poderosa.

— E ele falava sobre “A Morte da Alma”?

— Sim — a voz do outro soava distante e dispersa. Draco ainda parecia paralisado.

— E...?

— E o quê? — ele se virou com raiva por ter seus pensamentos interrompidos de novo.

— O que é “A Morte da Alma”??? Eu estou certo em achar que é um ritual?

— Está. É um ritual. Um ritual muito poderoso. E muito perigoso.

— Como? O que ele faz?

— Ele... Meu Deus! — Draco exclamou, levando as mãos à cabeça — Como eu pude ser tão burro?!

— Burro por quê? Eu não estou entendendo nada! — O’Brien levantou-se da cadeira — Será que dá para você explicar?

— Ela está em perigo.

— Ela quem?

— Eu a deixei sozinha, será que você não entende? Eu não tinha idéia... — completou, também se levantando.

— QUEM? QUEM VOCÊ DEIXOU SOZINHA???

— A Gina, seu imbecil! Eu deixei a Gina sozinha! E eles ainda estão atrás dela!

— Eles quem?

— Se eu soubesse quem eles eram, já não tinha sobrado nenhum para contar história, não é mesmo?!

— Mas por quê? Por que iriam procurá-la depois de tanto tempo? Por que...

— Porque o ritual ainda não está completo, seu imbecil! Ela ainda está viva! Meu Deus! Eu preciso ir para lá...

— Calma, Draco!

— Calma é o caralho! — o outro respondeu, pegando sua varinha que estava sobre a mesa — Eu vou aparatar.

— Onde ela está?

— Na Escócia, numa cidade chamada Harmony Springs.

— Na Escócia?!?! Você está maluco? É longe demais para aparatar, Draco! — Matt o segurou pelo braço — Eu não vou deixar você fazer uma loucura dessas! Pode ser que eles nem saibam onde ela está, pode ser que...

— Sim, Matt. Pode ser. Mas eu não estou disposto a arriscar. Você está?

— Mas, Draco...

— Eu a deixei sozinha, será que você não entende? — Malfoy respondeu, puxando seu braço — Se alguma coisa acontecer a ela, a culpa vai ser minha — ele concluiu sombriamente, e, com um movimento de varinha, desapareceu.

Matt balançou a cabeça negativamente uma vez. Aquilo não estava certo. Sem uma segunda opção, contudo, ele também pegou sua varinha no bolso e, no instante seguinte, desaparatou.

Se tivesse esperado mais alguns momentos, não teria deixado de ouvir o toque do telefone que, encontrando o lugar vazio, ecoou por algum tempo solitariamente no apartamento deserto de Draco.

No final das contas, não faria diferença ouvi-lo ou não ouvi-lo. O tabuleiro já estava armado, os peões já estavam posicionados e a sorte fora lançada. Agora, só restava esperar.





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