Se eu cair em tentação
Capítulo 17 – Se eu cair em tentação
And love is a stranger who'll beckon you on
Don't think of the danger or the stranger is gone. (You Only Live Twice, Coldplay)
Draco voltara-se e acenava sarcasticamente ao recém-chegado. A ruiva podia sentir o olhar dele sobre si, imaginando que ele devia estar admirando o seu cabelo longo e ruivo, e voltou-se.
Quando os seus olhos encontraram o verde dos de Harry, e este deixou cair a taça de champanhe que tinha na mão, Ginny soube que nunca, nunca, ultrapassaria o que sentia por Harry Potter.
Ela olhou-o frontalmente, tentando chamar a si toda a sua coragem, e viu que ele empalidecera e que nos seus olhos brilhava um fogo intenso.
Ao seu lado, Draco conseguia sentir a faísca que aquele encontro produzira, toda a tensão que eles viviam, praticamente ausentes do mundo e alheios ao movimento intenso da enorme galeria. Automaticamente, aproximou-se da ruiva e colocou a mão sobre o seu ombro, apercebendo-se de como a pele dela estava gelada.
- Vocês já se conheciam. – não era uma pergunta, apenas uma constatação. Pela cara do Potter e pela reacção de Ginny, era difícil não perceber que eles eram conhecidos de longa data. E que as coisas entre eles não estavam propriamente bem resolvidas.
Nenhum deles pareceu sequer notar que ele falara, continuando presos naquele momento que nenhum deles ousava já esperar. Então, quando parecia que ficariam assim para sempre, Harry moveu-se em direcção ao último quadro que haviam visto, quebrando o contacto visual.
- Tem razão, Malfoy. Tudo o que eu pintei eram sentimentos reais, tormentos vividos. E, no entanto, parece que eu posso ter estado enganado todo esse tempo. – o moreno dirigiu um olhar rápido para Draco, que se limitou a sorrir perante aquele ódio contido. Não precisava daquele olhar para saber que a ruiva do quadro era, claramente, Ginny, e que aqueles dois tinham uma história. Potter era o homem do passado que ele tentava combater, o homem sempre ligado ao mistério da caixa-de-música.
Ginny sentia as ondas de força que provinham de Harry e sabia que a qualquer momento ele iria explodir e dizer algo que ela não desejava ouvir. Ele sempre falava tudo o que queria, sempre agia como desejava e apenas depois, quando todo o estrago estava feito, se interrogava e arrependia. Dentro de instantes ele iria gritar, socar Draco e agarrá-la pelo braço, exigindo uma explicação…não necessariamente por essa ordem.
Enquanto se limitava a olhá-lo, de braços caídos ao longo do corpo, não conseguiu deixar de notar que dois anos apenas tinham modificado levemente aquele rosto que tanto amava. Ele era o mesmo, mas certos traços estavam mais maduros e vincados, como se uma grande tormenta tivesse passado e deixado as suas marcas. Marcas dolorosas e eternas.
Draco observava com apreensão as alterações profundas que a jovem sofria, como se a sua calma cristalina tivesse sido finalmente quebrada, no único momento em que baixara a defesa.
Ela olhava-o com amor, paixão e mágoa. Ela desejava nunca mais estar perto dele, mas também queria, do fundo do seu coração, correr para os seus braços e acreditar que tudo ficaria bem. Ela odiava aquela sensação que ele despertava, de que ela era, e sempre seria, vulnerável a Harry.
Então, ele voltou a mover-se e andou até ela, os olhos verdes devorando cada linha da face de Ginny. Ela mudara, estava mais madura…mais mulher. No entanto, ele ainda podia ver ali, por detrás daqueles olhos castanhos, a mesma garota que povoara o seu mundo e fizera dele um homem melhor. Ele queria ser um homem melhor. E queria ser por ela.
“Como é possível que ela continue tão linda? Não…mais perfeita ainda do que quando a conheci. Simplesmente inesquecível”, constatou o moreno. A sua cara permanecia fechada, os olhos inflamados com um fogo que apenas ela conseguia acender e Ginny recuou levemente com a proximidade, temendo o que se seguiria. Contudo, ela continuava de cabeça erguida, nunca demonstrando por completo o que lhe ia na alma.
Quando ele ergueu as mãos, por momentos pensou que fosse abaná-la. Draco devia ter tido o mesmo pensamento, pois deslocou-se para junto dela de forma a intervir. Mas nada disso aconteceu.
Harry, com uma leveza impressionante, como se temesse que ela se esfumasse no ar, colocou os braços em volta dela e simplesmente abraçou-a. Sem palavras ou pedidos de explicação. Limitou-se a deixar-se embriagar pelo perfume floral, sentindo a maciez da pele alva dos seus braços, enquanto a envolvia, encostando-a ao seu peito. Suspirou e pousou a testa sobre o topo da cabeça ruiva, sentindo-se em paz pela primeira vez em dois longos anos.
Ginny pensou que o coração ia parar quando Harry a tomou nos braços. O seu corpo e mente dividiam-se entre o desejo de que o contacto durasse para sempre e a ânsia de se afastar dele, de quebrar aquele encanto que ameaçava tomá-la. Não, não podia permitir que ele a manipulasse. Ele fazia parte do passado e deveria ficar lá, junto com as suas memórias. Junto com o amor que sufocava carinhosamente, todos os dias intermináveis desde há dois anos.
E de mansinho, como se pretendesse evitar um choque, desprendeu-se dos braços dele e recuou para junto de Draco, que fitava a cena com um dos seus habituais olhares calculistas. Harry começou a formular uma frase, dirigindo-se a Ginny, quando viu que ela dera a mão ao loiro e o olhava numa atitude de desafio.
- Que momento bonito, lamento ter de me colocar no meio, Potter. Acho que a Gi prefere a minha companhia – tinha de admitir que sacanear o seu inimigo de sempre lhe daria um enorme prazer, para além de que sentia que Ginny precisava do seu apoio neste momento. Mas ela teria muito que explicar, ah se teria.
- Fica longe desse assunto, Malfoy – no tom de voz do moreno pairava uma ameaça velada.
- Ou então, o quê? Vai para casa chorar e pintar mais uns quadrinhos medíocres? – na boca dele bailava um sorriso de escárnio – Ela está comigo. Aceita isso, será apenas mais uma coisa que você perdeu para mim – afirmou ele, sorrindo agora abertamente. Ginny teve vontade de gritar um “O QUÊ?!” para Draco, mas a situação exigia medidas desesperadas. Ela precisava de se manter longe do moreno e o amigo era o passaporte ideal para essa fuga oportuna. Por isso, resolveu entrar no teatrinho improvisado.
- Como vai, Harry? – questionou, calma e educadamente – Parabéns pela exposição, ela está realmente maravilhosa. Creio que conhece Draco Malfoy… – sorriu levemente, pensando em quantas vezes aqueles dois já não teriam trocado porrada – Ele teve a gentileza de me convidar, eu nem sabia que a vernissage era sua.
- Isso você não precisava dizer – respondeu Harry, com um olhar duro e ardente – Eu sei que não teria vindo se soubesse.
- Talvez – olhar naqueles olhos enquanto mentia era algo que ainda estava fora do seu alcance.
- Claro que como minha noiva, eu teria que a convidar. – Draco interveio, com um sorriso plácido e morno. O queixo de Ginny quase caiu.
- Cala a boca, Malfoy – o italiano parecia ter perdido finalmente a pose – Nunca foi mais do que um mentiroso e não esperava que a sua honestidade surgisse agora, como um cogumelo em época de chuva – os olhos cinzentos de Draco chisparam – Eu estaria louco se acreditasse numa palavra saída dessa sua boca viperina.
- E se for da minha boca, Harry? – Ginny questionou subitamente – Se eu disser? – Harry pareceu hesitar, como se duvidasse, mas recuperou o olhar confiante.
- Você diria, Gi? – as entranhas de Ginny pareceram dar um triplo mortal quando ouviu Harry pronunciar aquele diminutivo – Diria? – insistiu ele, olhando-a bem nos olhos, como se adivinhasse que ela nunca o faria.
- Eu…eu… – ela queria dizer, afastá-lo definitivamente da sua vida, mas no seu íntimo sabia, tal como ele, que não seria capaz.
- Eu sabia – ele sorriu, um sorriso triste mas um esboço primário de contentamento. Ginny procurou algo para dizer, algo que afastasse os assuntos que sabia serem inevitáveis.
- Como está a Belle? Lily e o meu pai disseram que ela veio morar com você, aqui em Nova Iorque – Harry mediu-a com o olhar antes de responder, ignorando Draco, que apertava a mão da ruiva como um pedido silencioso para que ela lhe permitisse que ele socasse o rosto do moreno.
- Bem – respondeu o moreno – Ela deve andar por aí.
- Não – ouviram uma voz feminina nas suas costas e voltaram-se – Na verdade, estou bem aqui – a morena sorriu brandamente para o irmã, antes de trocar um olhar rápido com Harry. Em seguida, avançou para a abraçar.
- Que saudades, Gi – reclamou, apertando forte a ruiva – Mas você está linda…diferente, mudada. Nova Iorque te fez bem – sorriu, mas o irmão, que a conhecia como ninguém, notou que ela também estava tensa. Depois de largar Ginny, virou-se lentamente para o loiro, fazendo o seu melhor sorriso de escárnio.
- Drácula, há quanto tempo! – fez um tom de voz falsamente alegre, como se acabasse de encontrar um amigo de longa data – Cada vez mais arrogante e metido, posso ver. Fico feliz por você!
- Era só o que me faltava – rosnou Draco – A garotinha irmã do Potter. Cada dia mais parecida com o irmão…dá até pena – um sorriso retorcido ocupou-lhe os lábios.
- Dificilmente podia me elogiar mais, sanguessuga pálida – Belle torceu os lábios, em puro gáudio – Queria você ser metade do que o meu irmão é – Draco gargalhou friamente, um riso que arrepiou os pêlos de Belle.
- Metade do falhado? Metade do ridículo que ele está fazendo, rastejando para a minha acompanhante? – a garota empalideceu de raiva, mas o irmão segurou-lhe o braço.
- Não se cansa, Belle. Eu não desperdiçaria o meu tempo com esse aí. Deixa que um dia ele morda a própria língua e se envenene em si próprio – os dois homens trocaram olhares irados e altivos.
Draco deslizou o olhar pelo rosto da morena, agora repleto de contentamento, e pelo corpo dela. Usava um vestido cinza simples e saltos, mas algo naqueles cabelos castanhos e brilhantes pareceu cegá-lo por uns instantes. Há vários anos que conhecia Potter e, consequentemente, já tivera o desprazer de se cruzar com a irmã em diversas ocasiões. Contudo, cada vez que se encontravam a inimizade aumentava, como se a maturidade apenas lhes gritasse o quão diferentes eram e o quanto deviam se odiar. No entanto, teria de admitir que ela era bonita. Uma beleza diferente da de Ginny, que era indomável, selvagem, doce e inebriante, tudo ao mesmo tempo. Belle era um espelho calmo, uma montanha russa, um rosto comum, que apenas por ser dela se tornava realmente belo. Ou coisa assim.
- A conversa está muito desinteressante e a exposição terrível, mas teremos de ir – pressionou suavemente a mão da ruiva, que parecia demasiado presa a algo que só ela via no momento. Deitou um último olhar a Harry, antes de se voltar para acompanhar Draco, mas antes que se afastassem mais do que uns passos, Harry chamou-a.
- Ginny! – ele parecia ter-se decidido no último instante. Percorreu a distância que os separava – Nós precisamos falar. Há tantas coisas que eu preciso te dizer, saber…
- Não há nada para dizer, Harry – Ginny lambeu os lábios, tentando ganhar coragem – Eu estou bem e não existe motivo para trazer de volta uma história com mais de dois anos.
- É só isso que nós somos, Gi? Uma história que luta para esquecer? – os olhos dele escureceram. Estava pálido e os punhos cerrados, caídos ao longo do corpo, tremiam. A postura dele gritava a dor que sentia. Ginny vacilou, olhando para o loiro. Ele retribuiu o olhar, como se dissesse “Você decide o que quer fazer, mas não se arrependa.”
- Tudo bem – suspirou, cansada – Fala.
- Não aqui. Não com ele se metendo – fitou Draco, que apertou os lábios furiosamente, lutando para permanecer impassível. Mediram-se mutuamente, até que o loiro decidiu-se por deixar que eles falassem a sós. No final, a ruiva sairia dali com ele…e Potter estaria um passo mais próximo de ser um assunto encerrado. De vez.
- Gi, eu te espero no carro. Não demore. – olhou-a nos olhos, deu um último sorriso gélido na direcção de Harry e desapareceu na multidão que ocupava a galeria.
- Venha, falaremos melhor aqui – apontou para uma porta semi-oculta e Ginny seguiu-o. Entraram e ela deparou-se com um pequeno gabinete, onde o dono da galeria devia receber visitas e tratar de negócios. Encarou o moreno e teve um baque com aquilo que viu.
Ele estava encostado na porta, a cabeça baixa e parecia perdido. Quando ele ergueu o olhar e o fixou no dela, ela compreendeu que toda a força que ele tentara passar não estava mais lá. Ele assemelhava-se a um homem derrotado e triste, que vivia apenas esperando que o dia seguinte trouxesse uma sombra de esperança. Pensou também, sentindo um aperto no coração, que talvez ele tivesse achado que esse dia tinha chegado.
Mas ela sentia ainda a mesma energia que provinha dele, a mesma capacidade desconcertante de a ler como um livro aberto. Diante daqueles olhos, ela sentia-se sempre pequena e desprotegida, mas estranhamente reconfortada pelo pensamento de que, perto dele, ela nunca precisaria fingir. Podia ser apenas uma garota com medo de viver, quando viver poderia magoá-la de novo. Brutalmente. Impiedosamente.
Olhando naqueles olhos imensamente verdes, ela soube que já o perdoara por qualquer coisa que ele tivesse feito um dia. Algo se interpunha entre eles, agora, mas não era algo que ele tivesse provocado. O tempo e as lembranças estavam naquela sala junto com eles e era desesperante sentir que não as conseguiria ultrapassar para chegar novamente à pessoa que fora. A pessoa que ela era agora, a pessoa que restara após aquela noite na Sicília não era a mesma que Harry tinha na sua cabeça. E ela deixaria bem claro, agora e para sempre.
- Porquê? – a pergunta de Harry trouxe-a de volta para a realidade, ecoando triste e serena.
- Eu tinha duas opções – explicou, após uma pausa para ponderar. Encarou-o bem de frente enquanto falava, direita e orgulhosa, exibindo a mulher em que se tornara – Eu podia partir para longe ou ficar e definhar. Eu fiz a minha escolha.
- Uma escolha que não me incluía – ele colocou as mãos nos bolsos, fitando o vazio – Será que você sequer pensou em mim, Gi? Em como eu fiquei? – a voz dele ressaltava com dor e mágoa, mas ela não se deixou intimidar.
- Eu disse que nem tudo era sobre você, Harry. Não era sobre você. Não é sobre você.
- É sobre o Malfoy? – Ginny notou os ciúmes atrozes que se escondiam atrás das palavras aparentemente bem medidas. Suspirou, andando até perto de uma janela.
- É sobre mim.
- Desde quando você ficou tão egocêntrica? – a voz dele não se alterara, mas a ruiva sabia que ele estava apenas com raiva de a ver na companhia de Draco.
- Possivelmente desde que eu fui violada e quase morri, Harry. São coisas que te mudam, e ficam para sempre.
Harry sentiu que aquelas palavras foram um estalo directo na sua cara, deixando-o de olhos arregalados e ofegante. Toda a raiva e amargura desapareceram e ficou apenas a mulher que ele amava e vinha desejando, finalmente diante de si, que fora ferida e marcada e se reerguera como uma Fénix. A mais bela flor desabrochando na adversidade extrema, onde ninguém pensou haver mais do que dor e maldade.
Tinha de abrir o seu coração. Ser honesto com ela e dizer tudo o que sentia, falar ao seu coração quando tudo o mais parecia falhar.
- Todo esse tempo… – engoliu o nó que se formara na sua garganta – Eu apenas quis te encontrar. Poder te abraçar e dizer o quanto eu lamento. Eu lamento, Gi. Por tudo. Quando eu me deito para dormir eu só fico imaginando como seria a nossa vida se eu tivesse ficado e te protegido. Como tudo seria diferente, agora. Tão diferente.
- Eu… – Harry fez-lhe um gesto com a mão para que o deixasse prosseguir, como se um veneno letal estivesse sendo extraído das suas veias.
- Eu queria poder voltar atrás. Mas não posso. Não podemos. Esse tempo todo em que esteve longe, eu quase acreditei que não existiam segundas hipóteses e que teria de viver para sempre com a incerteza. Mas eu te reencontrei, hoje…o dia em que, pela primeira vez, eu realmente me senti sem esperança. Vendo você, assim… – ele olhou-a e Ginny sentiu-se analisada de corpo e alma – Tudo parece perder sentido, apenas sobramos nós aqui. E a nossa segunda chance…
- Harry, eu te perdoo. Não existe mais rancor pelo passado. Olha, eu não vou dizer que eu sou muito feliz pelo que me aconteceu, mas eu aprendi a viver com isso e a utilizar essa...parte da minha vida…para me fortalecer. A culpa não foi sua, existe apenas um culpado pelo que aconteceu e ele definitivamente não se chama Harry Potter.
- Então… – dessa vez foi ela quem não permitiu que ele a interrompesse.
- Mas eu já não sou a mesma pessoa, Harry. E não estou certa de querer voltar a ser.
- Eu só queria poder ter você por perto – a voz dele soava embargada e rouca – Te curar com o meu amor. Conhecer essa nova mulher que você diz ser. Te amar de todas as formas possíveis.
- Não! – ela estava inquieta, precisava que ele compreendesse mas ele não estava colaborando – Você ama o passado, Harry! – praticamente acusou-o, andando de um lado para o outro - Está preso numa ilusão, numa mentira. A sua Ginny morreu! O nosso amor morreu!
Ele pareceu tomar um novo choque, os olhos verdes toldados por uma sombra escura, mas recuperou algum alento. Avançou lentamente até parar diante dela e prendeu o olhar no seu.
- Eu ainda amo você e não penso te perder uma segunda vez. Não se eu puder evitar… – calou-se por uns segundos, antes de continuar – A não ser que diga agora, olhando nos meus olhos, que eu morri para você, tanto quanto desejou morrer para mim.
- Eu…eu… – a sua cabeça gritava para que dissesse e acabasse de uma vez com aquilo, mas mais uma vez sabia estar condenada ao fracasso. Não podia dizer, porque não podia sentir. A nova Ginny, tal como a antiga, não sabia mentir assim. Fechou os olhos com força e baixou a cabeça.
- Eu já não sinto o mesmo, Harry. Não é mais amor, não pode ser.
Sentiu mãos fortes e cálidas agarrarem os seus braços e foi puxada contra ele. Abriu os olhos e deparou-se com os dele a centímetros dos seus. Ele perscrutou durante longos momentos e ela sabia que ele conseguia ver o tamanho da sua omissão. Sentiu-se imunda e traiçoeira, indigna do amor que ele lhe devotava. Uma lágrima teimosa escorreu pelo seu rosto.
Ele largou-a e deu-lhe as costas.
- Não envergonhe aquilo que sente por puro medo. Eu aceitaria qualquer coisa vinda de você, mas não que temesse me amar…que tivesse medo de ser feliz. O tempo está contando na segunda chance, Gi. Ele é bem grande, mas não ilimitado – e deixando uma Ginny atónita e tentando digerir aquelas palavras, bateu com a porta ao sair.
Draco dirigia devagar, cauteloso com o trânsito caótico que era praticamente constante na Grande Maçã. Ginny estava sentada no lugar ao lado do condutor, os olhos desfocados varrendo a noite.
Ele lançou-lhe um olhar preocupado, pela trigésima vez desde que haviam deixado a Galeria. Ela simplesmente tinha chegado junto dele e sussurrado um “Vamos, por favor”. Depois disso, apenas silêncio e uma profunda tristeza que destilava da ruiva, para sua grande, mas não total, incompreensão.
- Ele é o tal, não é? – perguntou subitamente, como se ela lhe tivesse dado um sinal de que poderia perguntar. Um sinal que, de facto, não viera. Mas o silêncio pesado ameaçava devorá-lo vivo se nada fizesse.
Ela pareceu acordar de um longo sono e olhou-o como se o visse pela primeira vez. Ele reparou que ela mordia o lábio inferior. Por fim, suspirou e ajeitou-se no assento do carro.
- É – respondeu, simplesmente.
- Você o ama? – perante a reacção dela, ele pareceu ganhar coragem.
- Não sei. Talvez. Sim.
- Esclarecedor – resmungou entredentes – Serei o único a notar que está um pouco indecisa, aqui?
- Draco, agora não. – o pedido dela pareceu quase desesperado – E não, eu não vou voltar com ele. Pode continuar nutrindo o seu ódio de estimação pelo…Potter.
- Não que eu precisasse da sua autorização. – protestou baixinho, mas sorriu placidamente – Se deu um fora nele, não sei porquê essa cara de enterro. Devia estar comemorando… – essa era a sua forma de animá-la, embora tivesse perfeita noção de que talvez não fosse adequada ao momento.
Mas ele era assim. O seu temperamento não se adequava ao afecto expansivo, nem a conversas de profundo teor psicológico. O seu humor sarcástico e classe eram, na maioria das vezes, a sua principal arma. No entanto, em raros momentos, sabia como demonstrar aquilo que sentia e pensava sem ser brusco ou rude e, vendo como as lágrimas desciam em cascata silenciosa pela face de Ginny, soube que aquele seria um desses momentos.
Guiou o carro para uma rua secundária e estacionou no primeiro lugar vago. A ruiva parecia tão concentrada em tentar conter, inutilmente, o choro dentro de si, que nem notara a paragem do veículo.
- Gi…não fique assim, por favor... – pediu, estendendo-lhe um lenço imaculadamente branco que saíra do seu bolso – Talvez devesse falar, quem sabe não se sentiria melhor.
- Não há nada para contar. – ela fungou, mas quando o lenço saiu do seu rosto, ela parecia novamente calma, como se acabasse de recolocar uma máscara de puro aço – Eu apenas me deixei levar por lembranças e…por palavras sem significado real.
- Se palavras sem significado te deixam assim, se tivessem então não quero nem imaginar – ele tentou que ela sorrisse, e foi o que ela fez.
Enquanto observava a ruiva sorrir levemente, admirou a covinha que se formava na sua bochecha. Alguns fios ruivos estavam colados à cara dele, húmida pelas lágrimas que chorara. Seguiu o trajecto dos longos fios, que se perdiam no decote do vestido e engoliu em seco.
Hesitante, levou a mão até ao rosto dela e, delicadamente, retirou os fios que haviam se prendido. Sem notar, estava perigosamente próximo da garota, inclinado sobre o banco dela.
Humedeceu os lábios e soprou algo que vinha pensando toda a noite, desde que a fora buscar a casa:
- Eu posso te fazer feliz, Gi. Basta você querer. Eu sei que não sou o ideal de homem, nem de companheiro…eu sei que sou um poço sem fundo de defeitos – e virtudes – e também estou consciente de que você procura outra coisa. Talvez alguém mais como o Potter… – cuspiu o nome - Cheio de garra, vida e paixão. Mas eu posso te oferecer tudo o que eu tenho e, quem sabe, esse pouco que seja sirva para você…esquecê-lo. Eu estou apaixonado…me dá uma oportunidade de te provar.
Ginny pensou por um segundo, quase sorrindo interiormente, se aquele seria o dia das chances nunca antes vividas, nunca antes perdidas.
- Não…
- Mas… – ela colocou a mão sobre os lábios dele, deslizando suavemente, de forma a calá-lo.
- Você…não está apaixonado por mim, Draco. – explicou gentilmente, com toda a sua doçura – O que sente é forte, eu sei. Queria me abraçar, beijar, tocar. Queria estar perto para conversar e ter uma boa companhia, poder ser um pouco mais você próprio, no lugar do garoto mimado e egocêntrico que mostra ao mundo. E isso se chama, respectivamente, desejo e amizade.
- Hm? – a confusão espelhou-se nos olhos do loiro, como se ela estivesse ficando louca.
Ela sorriu pacificamente, antes de completar a ideia.
- Libido, Draco. Desejo, tesão, vontade. Como preferir chamar. E um grande companheirismo e amizade. E essas coisas são, sem dúvida, duas grandes componentes do amor entre um homem e uma mulher. Mas amor não é apenas isso e eu sei, como você sabe, que é tudo o que existe entre nós.
- Mas...eu pensei… – ele afastou-se e recostou-se no assento do condutor, espalmando as mãos sobre a cara.
- Quando encontrar alguém que realmente faça você tremer e ansiar, voar e cair, sorrir e chorar, compreenderá as minhas palavras. Quando o amor te apanhar, a diferença…é enorme, e nunca mais irá confundir esse sentimento com uma mera atracção sexual e uma bonita amizade.
Ele inspirou profundamente, como se tentasse absorver pelo nariz o significado das palavras que ela lhe dirigira. Por fim, voltou a olhá-la e ela se surpreendeu com a honestidade e pureza que, por instantes, viu estampada nas íris cinzentas dele.
- E se sabe tudo isso, é porque você já não precisa achar o seu amor, não é? Não tem como confundir…
Ela suspirou e fechou os olhos. Quando os abriu e o olhou, uma paz atormentada pairava na sua face alva.
- Exactamente.
Quando finalmente Draco a deixou em casa, dando-lhe um beijo delicado na face e parecendo algo abalado, embora escondido sobre a sua permanente máscara de indiferença gelada, Ginny pensou que teria paz por essa noite.
Tudo o que desejava agora era tomar um banho e dormir. Não que achasse que conseguiria realmente, com toda essa facilidade…mas precisava desabar e a sua cama parecia o local perfeito para isso.
Quando se preparava para ir até ao quarto, a campainha tocou. Franziu a testa, estranhando visitas a uma hora tão tardia, mas foi até à porta e espreitou pelo ralo. Era Belle, parada em frente à porta com a face pálida e um ar impaciente. Respirou fundo e abriu.
- Belle. – murmurou. Deu-lhe passagem, sentindo-se cansada como raramente se sentira em toda a sua vida.
- Gi…o que aconteceu com você e Harry? Ele ficou na exposição por mais algum tempo, mas assim que achou que ninguém iria notar a ausência dele, me arrastou para casa e se fechou no quarto. Eu tentei falar com ele, mas ele diz que está tudo bem.
- Talvez esteja mesmo. – tentou responder a ruiva, mas calou-se perante o olhar descrente da morena.
- Eu dei cobertura ao teu segredo. Todo esse tempo, eu sabia onde você morava e trabalhava, mas eu menti. Eu tive de mentir para o Harry! – ela parecia positivamente enraivecida – Ele esteve comigo sempre que eu precisei e eu…eu não hesitei em trai-lo porque você me pediu. Eu assisti impotente ao sofrimento dele ao longo de dois anos e depois vinha para cá e fingia que tudo ficaria bem!
- Eu…eu não sei o que dizer, Belle. Eu lamento, realmente.
- Não, você não lamenta! – acusou-a a irmã – Se lamentasse teria ouvido o que ele tinha para dizer, teria procurado por ele antes. Eu me recuso a vê-lo sofrer mais, Gi… – a ruiva olhou, a medo, a irmã nos olhos e descobriu-os repletos de lágrimas – Ele só quer te amar. E eu sei que ele ainda vive em você. Para quê tudo isso? Todo esse sofrimento desnecessário?!
- Eu precisava disso. – a ruiva tentou explicar, observando a irmã sentar-se nervosamente na ponta do sofá e enterrar a cara nas mãos.
- Eu sei. – a voz de Belle soou abafada e cansada – Por isso eu a encobri. Pelo tempo que desejou, embora eu já não visse necessidade. Está curada e ultrapassou o que aconteceu, mas insiste em lutar contra algo maior do que você.
- A minha vida estava em ordem, até hoje. E ficará novamente e Harry irá superar também. – a ruiva teimou, embora nem para ela estivesse já tão claro assim – Eu fiz a minha escolha. Aquela que eu pensei que fosse mais correcta… – desesperou-se pela incompreensão da irmã.
- Você já pensou que talvez esteja tão obcecada em tentar fazer a escolha certa, que nem parou para considerar a hipótese de não existir uma escolha certa, ou errada, apenas muitas escolhas possíveis? – Belle saiu do sofá e ajoelhou-se no tapete, em frente à ruiva que se deixara cair na poltrona.
- Obrigada, Belle. Isso realmente ajudou. – retorquiu, ironicamente.
- Esse é o ponto! Você não precisa de ajuda. Não há nada para perceber, apenas resta o que sente realmente. – cobriu as mãos de Ginny com as suas, apercebendo-se do quão gelada ela estava.
- O que eu sinto…é medo. – a ruiva sussurrou baixinho, como se nem tivesse sido ela a proferir aquelas palavras. Mas sabia que eram verdadeiras. Harry tinha visto muito além dela própria, mais uma vez.
- Gi, eu não estou dizendo para que volte com o Harry… – continuou Belle.
- Mas…
- Todas as coisas verdadeiramente excitantes da vida exigem mais coragem do que aquela que normalmente temos. Uma longa inspiração e um mergulho. Gi, o tipo de medo de que estamos falando…muitas vezes é assim que sabemos aquilo que vale realmente a pena.
- Eu não quero isso, Belle. Eu não quero mais ter esperança e depois ser desiludida. – Ginny afastou as mãos da irmã – Não mais.
A morena suspirou pesadamente e levantou-se. Olhou a irmã uma última vez e, por momentos, sentiu uma enorme pena dela. Durante todos aqueles dias que haviam se visto, longe dos olhos de Harry, a ruiva sempre agira como se uma força velada a tomasse. Nunca antes a vira naquele estado de abandono profundo, incerta das suas acções e sentimentos. O seu conselho estava dado e agora era tempo de deixá-la reflectir…e esperar, do fundo do coração, que ela seguisse os seus conselhos.
- Boa noite, Gi. – despediu-se suavemente, tentando transmitir algum conforto.
- Para você também, Belle.
Quando a irmã saiu, batendo suavemente com a porta, Ginny deixou-se cair no sofá e adormeceu. Tudo o que queria era um sono sem sonhos. Sem Harry.
Belle entrou em casa e procurou, sem uma esperança real, por Harry. Foi até ao corredor e observou a porta fechada do quarto. Aparentemente ele queria ficar sozinho e ela já ia dar meia volta e dirigir-se para os seus aposentos, quando um impulso quase inconsciente a fez avançar e bater com os nós dos dedos na madeira polida da porta.
- Harry…? – chamou. Passado alguns instantes, ouviu a voz rouca do irmão dar-lhe o consentimento para que entrasse e foi o que fez.
Vislumbrou a grande cama no centro do quarto, mas ele não estava lá. Olhou em volta e viu, mesmo na penumbra, que ele estava sentado no chão, os joelhos encolhidos e as costas apoiadas na parede.
- Eu…Harry…
Quando o irmão ergueu os olhos, ela estacou com o brilho que via neles. Havia tristeza e melancolia, talvez até alguma raiva, mas era sobretudo amor. Um amor profundo e maduro que ela aprendera a associar à imagem de Ginny. Ele sorriu fracamente à luz do luar que se escoava pelas portas de vidro da varanda.
- Tudo bem, Belle. Eu sei.
Ao princípio ela não estava bem certa da dimensão das palavras dele mas, quando o fitou no fundo dos olhos, percebeu o que ele sabia. Ele sabia sobre ela e Ginny. Que elas se encontravam. Sempre soubera.
- Como? – foi tudo o que foi capaz de dizer, antes de deslizar e se sentar na parede oposta àquela que apoiava o irmão.
- Ao início era só uma impressão, de que me escondia algo. Nós sempre fomos melhores amigos, Belle. Mas com o passar do tempo…a sua esperança que parecia inesgotável…os desaparecimentos por longas horas, em que voltava e ficava me olhando com um ar estranho…Acho que, no fundo, eu não acreditava que a Gi fosse capaz de nos desprezar tanto, sabe? Eu sabia que ela não viria ter comigo, a escolha óbvia seria você.
- Eu queria ter contado, ser honesta com você. Mas eu estava dividida entre duas lealdades, então resolvi deixar quieto. – justificou-se, observando o esboço de sorriso que se formava nos lábios do moreno.
- Eu não te culpo. Era a vontade dela, Belle…está realmente tudo bem.
- Ok. – procurou algo mais para dizer, mas o silêncio em que mergulharam era quase confortável.
- Não sabia o que iria sentir, sabe? – Harry falou, devagar, como se conversasse consigo próprio – Sonhava em reencontrá-la mas o que eu sentiria, de facto, estava nublado para mim. Quando a vi com Malfoy, eu queria sentir raiva. – ele olhava as mãos, numa atitude quase envergonhada – Eu me forcei a tentar magoá-la como ela me magoou. Mas tudo o que eu sinto é amor, Belle. E eu daria qualquer coisa para tê-la de volta.
- Hm. – Mas que raio de resposta era essa? “A única que sou capaz de dar”, pensou triste.
- Eu rastejaria se ela me pedisse, acho. Sempre tive orgulho do meu…orgulho, – fez uma careta com a redundância – mas eu o abandonaria na mesma hora se isso significasse uma oportunidade para nós. Ela é linda. E tenta se fazer de forte e fingir que mudou imenso, mas eu só vejo uma casca ligeiramente diferente. E a amo mais ainda por isso. Ela diz que eu não a conheço, porque tem medo de admitir que eu a vejo melhor do que ela própria.
- O que vai fazer? – questionou Belle, depois de escutar, com uma nota de emoção, o desabafo do irmão.
- Eu vou lutar, Belle. É tudo o que eu sei fazer. Dessa vez eu não vou ficar olhando enquanto ela sai da minha vida. Eu já não tenho mais medo.
Nova Iorque era uma cidade caprichosa, decidiu a ruiva. Durante cerca de dois anos ela nunca colocara os olhos em Harry, independentemente de onde fosse ou com quem saísse. A cidade decidira ocultá-la entre os seus milhões de habitantes e, subitamente, tinha decidido precisamente o contrário. Onde quer que fosse, Harry estaria lá e Ginny já temia o momento em que colocaria um pé fora de casa.
Era como se o acaso tivesse decidido que eles se encontrassem uma primeira vez pelos seus próprios meios e recursos. Depois do reencontro, ele já não parecia disposto a ser um espectador passivo e operava-os como marionetas numa cidade enlouquecida. Viam-se nos jantares para que eram convidados; na Faculdade de Belas-Artes; no meio da rua mais movimentada ou do jardim mais deserto. Harry Potter estava em todo o lado e Ginny ponderou seriamente a hipótese de ter um gigantesco íman colado nas costas.
Sempre que se encontravam, Harry limitava-se a olhá-la com uma intensidade desarmante e um sorriso sincero. Parecia dizer-lhe constantemente ao ouvido “O tempo está contado, você decide”.
O Natal aproximava-se a passos largos, estavam já nos princípios de Dezembro. Belle, que a visitava agora diariamente, puxava com destreza o assunto das festividades. Ginny tinha plena consciência de que ela sonhava com um Natal em família, mas não pensava ceder. Não, ela não passaria o Natal tomando gemada ao lado de Harry.
Entretanto, decidiu ir ver Will. Tinha noção de que andava afastada dele, demasiado absorvida pelos seus dilemas existenciais e pelas saídas com Draco, que parecia recuperado do golpe que ela lhe aplicara (retomara até o seu humor…hm…próprio). Procurou por ele no seminário, onde lhe disseram que ele estaria na Igreja com o grupo de jovens que orientava.
Apanhou o primeiro autocarro que a levaria até lá. Odiava dirigir e, por isso, nem tinha um carro próprio. Desceu nos subúrbios, um bairro calmo apesar de algo degradado. Will contara-lhe, numa das suas inúmeras visitas, que aquela paz se devia a um trabalho constante e diário.
Ginny sabia que ele se orgulhava de fazer parte desse trabalho, pois tinha perfeita noção de ele era quem mais influenciava os jovens. Mas, como sempre, ele era modesto e nunca aceitaria ficar com todos os créditos.
Subiu as escadas que levavam até ao interior da pequena igreja e olhou em volta. Talvez estivessem na sacristia ou na sala de convívio das traseiras, destinada precisamente para aquelas sessões. Contudo, quando pretendia ir averiguar, avistou Will.
Ele estava sentado num dos bancos da frente da Igreja, mas não parecia estar em oração. Estava simplesmente sentado, fixando o grande crucifixo no meio do altar. Vestia roupas normais e Ginny não deixou de se sentir aliviada. Embora já o tivesse visto várias vezes com as roupas próprias de um candidato a padre, certamente preferia desabafar com o Will normal. O Will amigo. O seu Will.
Avançou ao longo do corredor e sentou-se, com leveza e graça, junto a ele. Ele não desprendeu os olhos do altar, mas sorriu em reconhecimento.
- Tem andado ocupada, não? Faz umas duas semanas que não me procurava. – a voz dele oscilou momentaneamente.
- Você também não me procurou! – retorquiu ela, divertida. Mas algo naquela cena, no semblante sempre calmo de Will, parecia diferente. Ele conhecia-a muito bem, mas o conhecimento era certamente recíproco. Algo se passava com ele e ela iria descobrir o quê.
- Verdade. – concordou ele. Parecia cansado, notou a ruiva. Os olhos castanhos, sempre brilhantes, estavam sulcados por duas enormes olheiras e estava pálido…parecia quase uma figura de cera.
- O que se passa, Will? – resolveu ir directa ao assunto.
- Nada. – respondeu, rápido demais. Ela fitou-o intensamente, tentando puxar o olhar dele para o seu, mas ele parecia renitente e desviava constantemente os olhos.
- Nunca me mentiu antes. – constatou a ruiva, algo magoada – Seja honesto. Há algo errado e não é de hoje. Faz um tempo, já…
- Está tudo bem, Gi. – tentou convencê-la docemente – Vai ficar tudo bem. Estou feliz por você…agora que encontrou Harry tudo vai melhorar.
- Na realidade, acho que tudo piorou incomensuravelmente. – lamentou-se. Tinha conversado longamente com Will pelo telefone sobre o reencontro com Harry e a conversa com Draco.
- Talvez tenha de piorar antes de melhorar, como uma ferida que sangra. – ele ocupava-se ainda em fixar ardentemente a cruz – Ele pode te fazer feliz, Gi. Basta você aceitar. – ela surpreendeu-se com aquilo que lhe pareceu ser dor nas palavras dele.
- Will…não minta para mim…por favor… – quase implorou, sentindo-se à beira das lágrimas. Ele era o seu rochedo e se ele lhe falhasse, então ela se sentiria demasiado perdida.
- Eu estou cansado de dançar à volta destas grandes palavras. – e ele parecia realmente cansado, quase quebrando - Eu só quero ser honesto com você…mais do que qualquer coisa, quero ser sincero. Mas você acha que estamos preparados para essa honestidade? Porque a sinceridade é uma grande palavra e muda as coisas e complica tudo. Tem certeza que está pronta para todas as consequências da verdade? – pela primeira vez naquela tarde fria, olhou-a nos olhos.
- Sim. – murmurou, tremendo.
- Eu resolvi entregar a minha vida a Deus, quando tudo o mais falhou. A minha decisão era irrevogável e eu estava certo dela. Era tudo o que eu queria. Todas as pessoas me falavam sobre as dificuldades que eu enfrentaria, os sacrifícios que faria. O meu mentor no seminário vivia me falando de tentações.
- Tentações…? – Ginny sentia-se confusa com o rumo da conversa.
- Sim. Ele dizia que essa é a principal luta de um padre católico…resistir às tentações. Que elas viriam em muitas formas e eu teria de travar um grande combate para as compreender e enfrentar. Para as ultrapassar. E eu estava conseguindo, nada me tentava ao ponto de eu pensar sequer em abdicar da vocação. Até há dois anos…
A ruiva sentiu-se inquieta e temia o resultado daquela conversa. Se ele fosse dizer aquilo que a sua mente gritava que ele iria dizer…nada mais seria igual…mas ela não queria que fosse diferente…
- Há dois anos eu te conheci. E se a sua amizade me encantou, tudo o resto me encantou igualmente. Você me encantou. – ele engoliu em seco, buscando a coragem para prosseguir – E eu finalmente compreendi que as tentações vêm quando menos esperamos, nas formas mais encantadoras…nas formas que nós sempre ansiámos por ver. Eu ansiei tanto por alguém como você…mas quando veio, era tarde demais para mim.
- Will… – ela tremia, sentindo a enorme angústia que devassava o amigo. A sua própria angústia.
- E eu tenho me sentido tão culpado, Gi. Como eu posso ousar amar alguém mais do que eu amo a Deus? Eu jurei dar a minha vida a todas as pessoas que precisassem dela, mas eu só penso em uma pessoa. Quando acordo, antes de dormir, enquanto olho o crucifixo…uma única imagem. – ele deitou a cabeça nas mãos, desesperado – Eu te amo, Gi. Você é a minha mais doce tentação.
As lágrimas corriam agora dos olhos dela, inundada em imagens dos vários momentos que haviam passado juntos. Será que não tinha visto, realmente, aquele sentimento? Ou calara a sensação apenas porque o conforto que ele lhe proporcionava era demasiado grande e valioso para desejar que algo se modificasse?
- A única tentação pela qual eu cederia. Eu deixaria tudo por você, Gi. Mas eu sei que não sente o mesmo.
- Eu…eu te adoro, Will – procurou algo mais para dizer, quando o viu sorrir com serenidade.
- Eu sei. – sussurrou ele – Mas só existe um homem para você. E esse homem…não sou eu. Quero que seja feliz com Harry e isso me deixará feliz também.
Ginny levou uma mão até à face dele, acariciando suavemente e admirando o seu enorme sentido de abnegação. Como alguém podia ser assim? Legitimamente bom?
- Eu realmente precisava de confessar, mas não o teria feito se você não me conhecesse tão bem ao ponto de praticamente me forçar. – sorriu divertido e ela acompanhou-o – Eu nunca te terei…e, por isso, acho que posso continuar no seminário. A única coisa que me faria deixá-lo, nunca será minha.
- Você…lamenta ter-me conhecido? – perguntou, a medo.
- Não. Eu não lamento um segundo que eu passei, e espero passar ainda, contigo. Eu não lamento o meu amor. Ele só me torna mais forte, nunca mais fraco.
- Eu me sinto muito honrada, Will. De verdade.
- Eu sei. Deveria honrar o seu amor, também. – ela olhou-o e percebeu que ele estava incitando-a, mais uma vez, a procurar Harry. Mas ela não o faria…simplesmente não conseguia.
- Nos vemos em breve, espero. – ele sorriu perante as palavras dela e assentiu.
- Claro.
E sentindo-se arrasada, ela saiu da igreja e sentou-se na paragem do autocarro, sabendo que ele precisava ficar sozinho agora. E que ela… precisava de Harry.
Lá dentro, Will ajoelhava-se perante o altar e pedia a Deus que lhe desse forças para suportar a provação, mas nunca que o fizesse esquecer. Ele não queria esquecer. Usaria o amor por uma mulher, para amar ainda mais intensamente o mundo inteiro.
Foi sem verdadeira surpresa que viu Harry e Belle entrarem pela porta envidraçada do restaurante. Claro, porque não?! O dia já estava tão bom, esse seria apenas o toque de perfeição, a coroa de glória. Porque é que deixara mesmo que Draco a arrastasse de casa? Oh, certo. Qualquer coisa sobre ela ser a única companhia que prestava.
Aquele era um dos lugares mais prestigiados da cidade, uma toca de jovens de classe alta, bonitos e cultos. Ah, e a comida era óptima também. Obviamente, estava completamente lotado. E obviamente, Belle avistou-a e foi até à mesa deles.
- Gi! Que surpresa encontrar você aqui…e nessa companhia? – lançou um olhar altivo a Draco, que retribuiu com um olhar gelado e um sorriso retorcido. – Isso aqui está cheio. Acha que podemos sentar com você? – desprezou Draco, claro.
- Erm… – observou enquanto Harry se aproximava. Estava lindo naquela noite, com uma camisa verde que fazia os seus olhos resplandecerem sob a luz das inúmeras velas. A sua vontade primária foi dizer que não, mas então o seu olhar voou para Belle, que parecia tão feliz e praticamente implorava com os olhos castanhos. – Tudo bem.
Se olhares matassem, ela sabia que já estaria comendo plantas pela raiz, depois do olhar mortífero que Draco lhe lançou. Contudo, não disse mais nada e Ginny percebeu que ele avistara uma oportunidade de se divertir infernizando os dois irmãos.
Alguns minutos depois, Belle e Draco trocavam palavras ácidas e repletas de ironia. Ele tentara com Harry também, mas ele parecia estranhamente bem-disposto e algo alheado. Ginny lutava furiosamente para não olhar para ele, mas sabia que os olhos verdes estavam fixos em si.
- Drácula, sabe qual é o seu problema? – Ginny escutou Belle perguntar, animadamente, enquanto barrava um pãozinho com manteiga – É falta de mulher. Nenhuma te suporta.
- Está se candidatando, Potter fêmea? Oh, espera… – ele fingiu um ar pensativo – Você ainda não saiu das fraldas.
- Eu não sou Potter, seu iletrado. O meu sobrenome é Weasley, tal como o da Gi. – pela expressão segura do loiro, ela percebeu que ele já sabia toda a história. – Talvez devesse deixar de pintar os cabelos, isso está afectando o seu cérebro…que já não é lá essas coisas.
- É natural, anta morena. – o loiro sorriu friamente. Odiava que mexessem com o seu cabelo, uma herança de família, como os dólares e o mau-feitio. – Você é que devia experimentar ir num cabeleireiro, talvez ganhasse algum encanto. Pelo menos o Potter aí sempre tem algum estilo, embora não se compare comigo.
Ginny observou pelo canto do olho, enquanto Harry sorria divertido e continuava descansadamente a comer azeitonas temperadas.
- Você é ressabiado mesmo, vampiro desdentado! – a morena estava corada e parecia prestes a explodir. Definitivamente, ela tinha um lado Weasley.
- Zangou, é? – o sorriso frio de Draco parecia quase estender-se aos olhos, um sinal óbvio de que ele estava realmente divertido. – Vai chorar?
Tinha que admitir que trocar galhardetes com a garota era dar o tempo por bem passado. Ela tinha um espírito parcialmente semelhante ao de Ginny, mas era mais fria na maioria do tempo, tinha o espírito arguto e resposta rápida na ponta da língua. Reparou em como ela ficava ainda mais bonita furiosa, mas rapidamente reprimiu o pensamento e continuou a provocá-la.
Harry e Ginny permaneciam à margem do combate verbal que era disputado à sua frente, aparentemente concentrados em deglutir as iguarias do Chef. O saxofone tinha começado a tocar algumas músicas alegres, versões de músicas muito conhecidas.
Essa era uma das vantagens daquele espaço, os instrumentos estavam ao dispor de qualquer um que quisesse brindar os presentes com uma apresentação musical. Quando o saxofonista terminou, sendo delicadamente aplaudido por todos (menos Belle e Draco que estavam debruçados sobre a mesa num profundo…diálogo) e ovacionado pelos seus companheiros de mesa, Ginny sentiu um movimento ao seu lado e viu que Harry se levantara.
Observou enquanto ele ia até ao piano e se sentava, sob os olhares de várias pessoas na sala do restaurante. Massageou lentamente os dedos, como se fizesse um aquecimento, e lentamente começou a tocar uma sonata de Schubert. Era bela, mas sobretudo triste.
Quando ele ergueu o olhar, continuando a tocar enquanto, à distância, olhava nos olhos dela, Ginny soube que era para ela. Não havia dito uma palavra durante todo o jantar, mas agora tocava para ela, como se mais nada existisse. Ela sabia que ele não gostava de tocar em público e se o fazia era só por causa dela. Tudo por ela.
Belle parou de discutir com Draco para ouvir o irmão. Ele nunca mais tocara desde que Ginny partira, mesmo que no seu apartamento existisse um grande piano na sala.
Talvez eles se entendessem, mas não deixaria para o acaso decidir. Ela iria dar um empurrãozinho.
Belle tinha um plano.
N/A – Eu demorei, mas esse é o maior capítulo que jamais escrevi. É também um dos que mais gostei, tem muita interacção entre todas as personagens. Ah! Aí pelo meio existem dois diálogos a que eu fui buscar inspiração numa série, Dawson’s Creek. Estão obviamente adaptados e o sentido nem é o mesmo, mas ainda assim foram preciosas ligações. O próximo capítulo será de Natal, talvez um dos mais felizes que escrevi…e um presente para os fãs H/G ahauahua! Estou contando com mais uns 5/6 capítulos, no máximo, até ao final. Entramos na recta, portanto. Preciso sinceramente dos vossos comentários, nem que seja para dizer que não ficou tão bom assim…afinal, só assim poderei melhorar, certo?
Obrigado pessoas (especialmente as meninas que sempre comentam), fiquem sabendo que vos adoro e até ao próximo!
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