Quando a chuva passar
Capítulo 13 – Quando a chuva passar
- Eu ainda não consigo acreditar que ela foi embora sem se despedir – Lily murmurou. Ela, Arthur e Belle estavam sentados na sala, alguns dias a seguir ao casamento e ao desaparecimento de Ginny.
- Ela pediu para que eu dissesse o quanto ela lamentava que tivesse de ser assim – Belle retorquiu rapidamente, jogada num cadeirão – Mas ela sabia que vocês iriam fazer de tudo para impedir.
- E ela não disse para onde iria? – perguntou Lily pela milésima vez. Belle encolheu os ombros e negou com a cabeça. Olharam ambas para Arthur, que permanecia silencioso. Os olhos acastanhados estavam meio perdidos no nada mas, de repente, ele soltou um suspiro profundo e pareceu voltar à realidade.
- No fundo…eu acho que já sabia que ela ia fazer algo assim – disse subitamente – Ela estava demasiado transtornada, magoada…torturada por medos e lembranças. Eu sei que não convivi muito tempo com ela, mas tenho a certeza de que ela dará notícias. Não dirá para onde foi, claro, mas arranjará forma de comunicar dizendo que está bem.
- Mas…nós poderiamos ajudá-la – Lily levantou-se e andou ansiosamente pela sala – Perto de nós ela estaria segura, protegida. Ela não vai resolver os problemas dela fugindo a vida inteira, Arthur – exasperou-se – E você sabe do que ela está fugindo, ou antes, de quem.
- Mãe…nós também estamos tristes pelo Harry – Belle foi até junto da mãe e colocou-lhe uma mão no ombro, num gesto de apoio – Mas isso é algo somente deles, que teremos de respeitar. A Gi fez aquilo que achou melhor para ela, para ele…para todos. Agora temos de estar aqui para o meu irmão.
- Eu sei, querida – a mãe puxou-a para um abraço carinhoso. Arthur sorriu com aquela demonstração de afecto e agradeceu aos céus por ainda ter aquelas duas na sua vida – Por falar nisso, onde está o meu filho? – Belle gemeu levemente e voltou a atirar-se para o assento do cadeirão, antes de responder.
- Fechado no quarto tendo pena de si próprio, acho eu – fez uma cara dura para os pais, quando eles a olharam indignados – Não estou dizendo nenhuma mentira. Eu quis ir lá falar com ele, dar um conselho…mas ele não pareceu adorar a ideia – os pais dizeram um ar interrogativo – “Me esquece, Isabelle!” – a morena imitou a voz rouca e grave do irmão no seu tom mais azedo – Quando ele me chama assim eu nem tento mais, não sou masoquista para querer ficar sofrendo – terminou, espreguiçando-se. Os pais sorriram, mas o sorriso esmoreceu quando viram uma autêntica alma penada entrar na sala.
Harry estava pálido, de um delicado tom marmóreo, tinha umas olheiras demarcadas e escuras rodeando-lhe os olhos verdes que, por sua vez, estavam baços e sem o habitual brilho. Vestia uma camiseta cinzenta completamente gasta pelo tempo e pelo uso, bem como umas bermudas esverdeadas. Belle olhou para os pés do irmão e reparou que estava descalço e que tinha um ar tão perdido, que ela poderia jurar que ele não fazia ideia de onde estava nem de quem eles seriam. Ele fitou-a directamente e ela sentiu a alma trespassada por aquele olhar vazio do irmão.
- Harry…- começou, mas o moreno virou costas e desapareceu da mesma forma intempestiva como entrara. Ela lançou um olhar incrédulo aos pais – O que raio foi isso! Eu vou falar com ele, isso não pode continuar do jeito que está… - pisou duro até à porta, mas Lily antecipou-se e segurou-a pelos ombros.
- Meu amor, você fica aqui. Chegou a hora de eu ter uma conversa com o meu filho. Uma conversa que já deveriamos ter tido… – os olhos verdes brilharam e a expressão do belo rosto mostrava toda a sua convicção.
Não sabia porque fora até à sala. Provavelmente queria comprovar que ainda estava vivo, pois começava a duvidar seriamente. Sentia-se tão vazio, destruído por dentro, inerte, que não se espantaria se tivesse entrado na divisão e fosse invisível aos olhos dos outros. A sua dor, pelo contrário, parecia cada vez mais visível. Agigantava-se dentro de si de uma tal forma que a juraria palpável.
Caiu na cama e abraçou o travesseiro. O quarto estava na penumbra, desde o dia em que…desde aquele dia, ele não voltara a abrir os cortinados. Olhou para o espaço vazio na sua cama e à sua frente surgiu a imagem que mais desejava ver.
Os cabelos ruivos, levemente cacheados, espalhavam-se pela almofada como uma cortina de fogo. A face alva mas um pouco rosada, os lábios bem definidos e convidativos, os olhos castanhos, brilhantes e sinceros. Ela estava ali, tão perto…era só esticar a mão e tocar a pele amada, sentir o seu calor e suavidade. Sorriu e ela retribuiu. Sentiu-se cheio de um sentimento quente e doce, reconfortante. Olhou-a encantado, enquanto ela se espreguiçava e ria abertamente. E, no entanto, quando de facto estendeu a mão para agarrar uma madeixa de cabelo, ela desapareceu diante de si, deixando-o sozinho. As lágrimas quentes corriam livremente dos seus olhos.
Soltou um gemido de dor e embalado pelo desespero que tentava sufocar, pousou a cabeça sobre o travesseiro que lhe pertencera. O perfume dela ainda estava impregnado no tecido. Bastava fechar os olhos e ele podia tê-la de novo ali, perto dele, para sempre. Era tudo o que desejava agora. Ficar ali eternamente, perdido nos momentos que vivera com ela, imaginando-a ali.
A verdade ameaçava esmagá-lo. Ela não estava mais ali, não ia entrar a qualquer momento gritando com ele por ser um idiota. Não ia mais acordá-lo a meio da noite, assustada porque tivera um pesadelo. Não ia mais poder amá-la ao final do dia e ficar rindo e conversando até que o sono chegasse. Tudo o que ele queria era estar perto dela, mas ela partira deliberadamente para onde ele não pudesse alcançá-la.
Queria poder sentir raiva dela por aquilo que pensava ser uma cobardia. Mas a parte mais racional de si lembrava-se constantemente das palavras que ela lhe escrevera e sabia que fora uma opção válida, a única que ela conseguia ver.
- Porque você fez isso comigo…eu te amo tanto… - as palavras correram para fora de si num suspiro lento e baixo. Fechou os olhos e tentou dormir. Talvez o sono trouxesse o esquecimento ou…quem sabe nos seus sonhos ela ainda estivesse ali, do seu lado.
Ouviu um leve bater na porta, mas ignorou. Se não respondesse, depressa o deixariam em paz. Contudo, passados alguns instantes, a maçaneta da porta rodou e deu passagem a Lily. Ele fechou a cara, disposto a ser claro e rude mesmo com a sua mãe, mas algo na expressão dela o fez engolir em seco e hesitar. Ergeu-se levemente, até ficar sentado na cama e deu a sua atenção aquela mulher tão especial para si.
- Harry… - ela começou, aproximando-se até se sentar na beira da cama, perto do filho – Eu sei que você está sofrendo demais, mas não pode continuar assim.
- Assim como? – ele perguntou, num tom seco e desinteressado.
- Com pena de si próprio. Zangado com o mundo. Fechado no quarto à espera que a sua vida comece. Você tem que encarar a realidade, ela não vai voltar…não por agora, não por um longo tempo.
- Então… - ele falou lentamente – É suposto que eu volte a viver alegremente, esquecendo tudo o que aconteceu? Tudo o que eu vivi com ela? Toda a dor e desapontamento que sinto agora?
- Sim – respondeu Lily simplesmente – Não esquecer, mas aprender a viver com isso. Eu me culpo, sabe… - Harry lançou-lhe um olhar inquisitivo – A sua vida nunca foi muito normal. Acho mesmo que você nem acreditava no amor, até que a Ginny apareceu. A minha vida meio que se projectou na sua…você não queria se prender de uma tal forma a ninguém. Mas existem alturas, meu amor, em que não é uma escolha que possamos fazer…as coisas apenas acontecem, sem pedir permissão. E nós devemos nos render e entregar de corpo e alma.
Harry ouvia aquelas palavras e sentia que elas o atingiam directamente. Afinal de contas, também Ginny lhe dissera que a sua falta de entrega e confiança haviam minado o seu amor, dando espaço para que…tudo acontecesse. Levantou-se da cama e andou agitadamente até à janela, ficando de costas para Lily.
- Eu…eu acho que, por vezes, nós precisamos de perder completamente alguém para que compreendamos o que essa pessoa significava para nós – levou a mão ao cabelo, bagunçando-o ainda mais – E eu precisei de a perder, de a ver afastar cada dia mais até ao dia em que finalmente se foi, para perceber o que ela realmente significava para mim. E ela significa tudo.
Lily sorriu docemente antes de se levantar e caminhar até ao filho. Colocou-se ao lado dele e olhou na mesma direcção que ele, observando o jardim.
- Se assim é, talvez tenha chegado o momento de você correr atrás da sua vida, em vez de esperar que ela se resolva por si. Se você acha que poderia ajudá-la, que o certo é estarem juntos, então…você deve ir atrás dela.
- Mas eu não sei para onde ela foi… - a voz saiu ligeiramente alterada, com uma nota de ira e desespero.
-…Mas sabe que existem sítios por onde seria inteligente começar a procurar – Lily completou – Você está com medo, Harry. Medo de a encontrar e de ela continuar a rejeitar você. Mas o medo…o medo nos impede de ser felizes. A coragem não é, nem nunca será, a ausência de medo, muito pelo contrário – Ela procurou os olhos verdes do filho, iguais aos seus e o olhou profundamente – A verdadeira coragem vem de encarar e vencer os nossos medos, a maioria deles vindos de nós próprios. E você, meu amor, demonstrou sempre uma coragem insuperável. Eu me lembro que quando o James… - a emoção tomou conta da sua voz – quando ele morreu, você me consolava todas as noites. Ainda mal conseguia articular frases completas, mas você ficava perto de mim e me dava a sua mão até que a dor fosse embora. E depois disso, muitas vezes ainda, quando estávamos em Nova Iorque. Demonstre novamente a sua coragem, não desista de lutar pelo seu amor verdadeiro.
- Ela foi embora – ele exasperou-se - Isso é um sinal bem óbvio de que não quer estar perto de mim.
- Não – Lily abanou a cabeça num gesto decidido e firme – Isso é um sinal de que ela não quer que você compartilhe a dor com ela, um sinal de que não quer ser um peso na sua vida, uma mágoa, uma má lembrança. Ela se foi…mas nunca pediu para que você não a seguisse. Quem sabe, no fundo…ela sempre o tenha desejado. Se o Arthur tivesse tido a coragem de ir atrás do grande amor da sua vida, a Molly ainda estaria viva, provavelmente. A vida da Ginny teria sido diferente e a nossa também. A Belle não existiria. Coisas boas vieram dessa cobardia, é um facto, mas certamente também viriam da coragem. As consequências dos nossos actos são insondáveis e você não vai querer viver uma vida de arrependimento, de hipótese. Vá atrás dela, Harry. Não dê chance para os “se”.
O moreno ponderou longamente as palavras da mãe. Ficaram em silêncio e, por fim, ele suspirou. Fitaram-se no fundo dos olhos um do outro, conversando sem palavras, e deram as mãos, até que a dor fosse embora.
Os três estavam novamente sentados em conjunto, jantando e conversando amenamente. Contudo, a expectativa de que algo estava para acontecer pesava no ar.
Harry surgiu pela porta, perfeitamente barbeado e de banho tomado, envergando uns jeans escuros, uma camisa azul clara e um casaco. Os sinais de intensa fadiga eram ainda visíveis, mas a sua expressão era resoluta e decidida, e nos seus olhos voltara a surgir algum do antigo brilho, como se uma alma tivesse voltado a habitar aquele corpo. Olhou para os três, que o fitavam com descarado interesse, e sorriu levemente.
- Vou atrás da Gi. Começo por Londres, era lá que ela morava. Não faço ideia da morada e, aliás, nem da zona da cidade, mas já tomei algumas providências para descobrir bem rápido. Parto hoje mesmo – concentrou-se na mãe, que sorria largamente – Desejem-me sorte!
Belle foi a mais efusiva, tendo saltado da cadeira e pulado para o pescoço do irmão. Abraçou-o com força e fez mil e uma recomendações, instruindo-o para ligar assim que tivesse notícias. Ele assentiu, sorrindo para ela, abraçou Arthur e beijou a mãe.
Já estava perto da porta quando voltou atrás. Havia uma última coisa a dizer.
- Arthur…se algo surgir sobre o Firenzzi, eu quero ser o primeiro a saber. Tomei também algumas medidas em relação a ele. Assim que der, eu volto para organizar tudo o que tenho contra ele e para o encontrar – o padrasto devolveu o olhar sério e acenou.
Harry deu um último aceno e praticamente voou até ao carro, apanhando de passagem o saco de viagem que preparara e deixara no hall. Deu a partida para o aeroporto, rumo a Londres.
Após deixar a mansão, aproveitando a confusão da festa para ocultar a sua saída, caminhou durante algum tempo até chegar à estrada principal. Chamara um táxi que a apanharia ali e seguiria em direcção ao aeroporto. Encontrou-o já à sua espera e entrou, indicando o seu destino.
Não estava bem certa de que avião queria apanhar. Uma parte de si desejava voltar a Londres, para a sua casa da infância, refúgio durante tantos anos. Ver rostos familiares, que lhe lembrassem da vida que tivera antes de tudo aquilo acontecer. Ir para um local que conhecesse e onde fosse fácil passar despercebida na multidão.
No entanto, tinha a certeza de que seria o primeiro sítio onde a procurariam e, para além disso, encontraria a casa vazia, uma vez que os seus pais adoptivos continuavam em Nova Iorque.
Nova Iorque…A cidade que acolhera Lily, que vira crescer Belle e abrigara Harry. A irmã falara-lhe longa e entusiasmadamente sobre o país, a cultura, a metrópole. Com milhões de habitantes, aquele seria o sítio ideal para recomeçar. Iria até lá e ficaria com os pais, que mesmo com a sua indiferença eram pessoas já conhecidas e a quem se habituara.
Chegou ao aeroporto, retirou a sua mochila (trouxera apenas o indispensável e nenhuma das roupas com que Harry a presenteara), agradeceu ao condutor e dirigiu-se ao balcão. Encontrou-o sem gente em fila de espera, por isso foi imediatamente atendida por uma das mulheres que ali trabalhavam.
- Queria um bilhete para Nova Iorque, no próximo voo que esteja disponível, por favor – pediu.
- Bom – a mulher respondeu num inglês quase perfeito – Terá de apanhar um avião para Roma e de lá para Los Angeles, fazendo depois ligação a Nova Iorque. Lamento que não possa ser directo, mas teria de esperar um bom tempo para que tal acontecesse.
- Tudo bem, pode ser – aceitou a ruiva, dando os seus dados e recolhendo o bilhete de embarque.
O avião partia em breve, por isso a espera foi curta. Após passar pelos trâmites de segurança e estar instalada no seu lugar, ao pé da janela, permitiu-se recostar a cabeça e pensar, pela primeira vez, naquilo que estava fazendo. Deixava para trás a família que sempre desejara, as raízes que descobrira mas que já eram tão suas, Harry…Harry.
Sentia um nó no peito mas, simultaneamente, uma calma rara começava a invadi-la. Tomara uma decisão e não voltaria atrás. Se fora capaz de a suster olhando nos olhos dele, gravando-o para sempre nas suas lembranças e no seu coração, então nada a faria voltar atrás. O futuro estava à sua espera e, de alguma forma, ela sabia que tinha o encontrar longe da Sicília.
A viagem não foi demasiado longa, até chegar a Roma. Ali teve de esperar por duas horas até fazer a ligação a Los Angeles. Nesta segunda etapa deixou que o sono a invadisse e sonhou longamente com um estranho de olhos verdes que chorava e a tentava alcançar desesperadamente sob um céu cheio de estrelas. Acordou com um novo aperto no peito e perguntou-se se Harry a odiaria naquele momento, pois estava certa de que ele já sabia da sua fuga há várias horas.
Tentou voltar a dormir mas as imagens da sua curta vida com Harry assaltavam-lhe constantemente a cabeça, levando-a de novo para um local doloroso e cheio de sofrimento. A lágrimas caíam suavemente quando o avião iniciou a descida. Quando o piloto anunciou a operação ela olhou pela janela e reparou que as nuvens negras ocupavam todo o espaço à sua volta e, por isso, sentia-se uma certa turbulência.
Contudo, conseguiram aterrar em segurança e sem nenhum incómodo. Quando estava no terminal, à espera do avião que faria a ligação a Nova Iorque, a tempestade desabou em toda a sua força. Parecia que as nuvens tinham chegado ao seu tamanho e escuridão limite e, agora, faziam disparar pesadas gotas de chuva e trovões. Foi sem muita surpresa que viu o seu voo ser adiado, até que a tempestade passasse.
- Uma tempestade em Los Angeles…mas aqui raramente chove no Inverno, quanto mais no final do Verão – ouviu uma senhora elegante dizer para aquele que parecia ser o marido.
Suspirou e dirigiu-se para as filas de cadeiras na sala de espera do Aeroporto Internacional de Los Angeles, carregando a mochila no ombro. Olhou em volta e a sua atenção prendeu-se num casal de namorados, que caminhava de mãos dadas próximo de si, aparentemente alheado da tempestade, da multidão em espera, do mundo. Uma súbita tristeza abateu-se sobre si, mas antes que a sentisse em pleno foi contra alguma coisa e caiu.
Fechou os olhos ao perder o equilíbrio e iniciar a queda, mas o contacto com o chão não chegou. Em vez disso, caiu em cima de alguma coisa sólida mas não tão dura, algo quente e perfumado. Abriu os olhos devagar e deparou-se com uns olhos castanhos escuros fixos nela e um sorriso sereno. Engoliu em seco e apercebeu-se de que caira em cima de um homem, que jazia debaixo de si, numa posição bastante comprometedora noutras circunstâncias.
As faces de ambos estavam a centímetros de distância e ele sufocava o riso, fazendo-a erguer um sobrancelha e morder o lábio, questionando-se sobre a sanidade mental do estranho.
Ele ria agora abertamente, gargalhando alegre, enquanto ela continuava deitada em cima dele. O riso do homem era sincero e bonito e fazia duas covinhas nas bochechas, que ela considerou imediatamente amorosas e sinal de bom carácter. Ele levou a mão ao cabelo e passou-a por entre os fios castanhos escuros, quase do mesmo tom dos olhos, continuando a sorrir. Ela sentia-se indignada com aquele ataque de riso e pensou se teria alguma coisa cómica colada na testa. Cerrou os dentes e resmungou:
- Qual é a piada?
- A piada é saber quando você pretende sair de cima de mim…já terminou de examinar? – apontou para si próprio e voltou a rir. Ela corou e saiu atabalhoadamente de cima dele, apanhando a mochila do chão.
- Eu não estava examinando você – afirmou, ainda vermelha.
- Tudo bem. Eu comecei a rir porque foi uma queda engraçada, se bem que você ficou com a melhor parte ao cair em cima de mim – fez um sorriso bastante safado, que ela retribuiu com um estalo de língua e um bufar indignado. Ele continuava sentado no chão, mas acabou por erguer-se.
- Melhor parte? Eu não fico rezando para cair em cima de lunáticos sabe? – resmungou, rodando nos calcanhares e saindo dali.
“Ora, quem ele pensa que é?”, pensou. Caminhou displicentemente até uma cadeira e sentou-se, com a mochila no colo. Aquela zona estava relativamente calma, uma vez que a grande aglomeração de pessoas estava perto da cafetaria e do restaurante. Olhou pelas enormes janelas do aeroporto e verificou, com pesar, que a tempestade parecia ter vindo para ficar. Fechou os olhos e perdeu-se no nada.
Passados uns instantes, sentiu alguém sentar-se ao seu lado, mas não deu importância.
- Desculpa – ouviu uma voz rouca e suave pronunciar perto de si. Entreabriu os olhos e viu o seu interlocutor. Era o jovem com quem chocara antes e que estava sentado na cadeira ao seu lado – Eu não costumo ser assim, mas já estou aqui faz umas…quatro horas e estou meio fora de mim.
Ela encolheu os ombros e balcuciou um “Tudo bem” meio mastigado. Ele presenteou-a com um sorriso calmo e agradável. Ficaram em silêncio, olhando para todos os lados menos um para o outro. Aquele estranho intimidava-a, o seu olhar era transparente e cândido como o das crianças, parecia lê-la como um livro aberto. Já antes tivera a mesma sensação, uma manhã na Sicília. O tempo foi passando, mas a tempestade parecia ficar cada vez mais forte.
- Você pode me dizer que horas são? – pediu Ginny a dada altura, olhando para o moreno.
- Depende – ele respondeu, não desprendendo os olhos do livro que tinha nas mãos.
- Como assim, depende? – Ginny franziu a testa. Esperava sinceramente que dali não viesse nenhuma frase engraçadinha ou não responderia pelos seus actos. Ele afastou os olhos do livro e mirou-a com um ar generoso, como se fosse explicar alguma verdade universal que todos conhecessem menos ela.
- Depende se você está falando do horário de Los Angeles, de Nova Iorque, do sítio onde você veio. Depende se você quer saber se o tempo está passando rápido ou devagar para mim, na forma como eu o sinto. O tempo é uma coisa muito relativa, você não concorda? – Ginny mal conseguia disfarçar a sua incredulidade por aquela tirada – Depende de quanto você já viveu. Você já experimentou a sensação de querer que um momento durasse para sempre, quando tudo parece ter parado à sua volta? – Ginny teve uma visão de um beijo num panteão – Ou, pelo contrário, já viveu algum momento que parecesse uma eternidade, mas que você desejasse nunca ter acontecido? – a ruiva sentiu uma náusea ao ter um relance de uma cena violenta numa sala sombria. O estranho observava-a atentamente e, por fim, suspirou – Eu diria que sim. Então, você já sabe que é relativo.
- Você é a criatura mais estranha que eu jamais conheci – acabou por dizer, quando achou que era seguro falar para que a sua voz não saísse embargada. Ele sorriu e espreguiçou-se. Ginny reparou que ele tinha um bonito corpo, másculo e elástico, embora não fosse demasiado alto para homem. Percorrendo o rosto dele, enquanto ele voltava a concentrar-se na leitura, notou que ele tinha uma cicatriz no canto do lábio, um leve risco que, no entanto, não o tornava menos belo ou agradável, apenas mais misterioso.
Quando ele se movimentou para mudar de posição, a camisa castanha revelou um cordão com um crucifico prateado. Era uma peça lisa e simples, mas Ginny sentiu que dela vinha uma força estranha e uma calma sobrenatural invadiu-a. Quando levantou os olhos viu que ele a observava novamente e corou.
Mais algumas horas se passaram até que os aviões fossem libertados e pudessem seguir viagem. Ginny seguia calmamente, rumo à porta de embarque, relembrando que o estranho não levantara os olhos quando ela se despedira, apenas acenando como se a fosse ver em breve.
Entrou e a hospedeira indicou-lhe o seu lugar, desta vez do lado do corredor. Quando já estava instalada e de olhos fechados, pensando que talvez agora pudesse tirar uma soneca, foi novamente interrompida.
- Não me despedi de você porque sabia que nos voltariamos a ver – abriu os olhos de rompante e deparou-se com o estranho – Desde que vi você que sei que as nossas vidas estão cruzadas.
- Quê! – a ruiva engasgou-se.
- Bom, se não fosse por essa sensação, talvez tenha ajudado o facto de ter visto o seu bilhete – ele sorriu e passou por ela, sentando-se do lado da janela. Depois de ter olhado pela janela, voltou a dirigir a atenção para ela.
- Olha, eu não sei quem você acha que eu sou, mas não é muito normal andar me atirando para cima de garotos no aeroporto e…
- Ah, então você se atirou? – ele questionou rapidamente.
- NÃO! – ela retorquiu irritada – Você está distorcendo tudo!
- Eu acho que nós começámos da maneira errada – passou por cima dos sons de indignação dela – Deviamos ser pessoas normais e apresentar-nos – estava sério, mas parecia divertido. Ginny respirou fundo, mas ao olhar para os olhos dele algo dentro de si agitou-se.
- Ginny Knight-Weasley – acabou por dizer, estendendo a mão.
- William Fortune, mas pode ficar por Will mesmo – segurou a mão dela, apertou-a levemente e Ginny sentiu-se um pouco mais feliz.
N/A – Bom, esse foi provavelmente o capítulo que menos gostei de todos os que já escrevi, não em termos de prazer de escrita mas em resultado. Talvez tenha sido por ser transição, no próximo teremos um pouco mais de “acção”. Depois me digam o que acharam e se é só paranóia minha ahah. Bom, surgiu o Will Fortune que espero agradar aos meus leitores. Ainda não vimos praticamente nada dele, mas eu já deixei algumas pistas, vamos ver se vocês descobrem huahauaha. Agradeço especialmente à Kynn, que me ajudou com o nome dessa criatura!
Obrigada a quem tem comentado, vocês fazem o meu dia!
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!