Obrigado e adeus, Ginny Knight



Capítulo 4 – Obrigado e adeus, Ginny Knight


- Como é que você me encontrou? – perguntou Ginny, por fim, e sua voz foi apenas um sussurro, um fantasma do seu tom normal.


- A minha governanta e a de Arthur são irmãs – explicou Harry, após examiná-la minuciosamente – Você telefonou para casa dele e foi ela quem atendeu. Pode imaginar o resto.


Estivera tão perto de encontrar o seu pai! E se tivesse sido ele a atender o telefone? O que lhe teria dito? Na altura nem parara para pensar nisso, apenas se lançara rumo ao desconhecido. Ainda assim, preferiria mil vezes voltar atrás no tempo e encarar a voz do seu pai do que estar ali, sofrendo as acusações de Harry.


- Eu…não disse o meu nome – balbuciou. Harry continuava a dirigir-lhe um olhar atento, que a deixava ainda mais incomodada.


- Dadas as circunstâncias, era de esperar, você não acha?


Ginny olhou-o com desprezo: - Como soube quem eu era e como me encontrou? – insistiu com a máxima frieza.


- As suas pesquisas a levaram a locais onde eu tenho amigos, contactos. Sou bastante conhecido por aqui, Palermo é ao mesmo tempo uma cidade grande e pequena. Para além disso, comecei a procurar você. Não demorei muito a descobrir o seu nome e a localizar a morada onde trabalhava.


A jovem passou uma mão na testa, apercebendo-se que estava suada e gelada. Sim, devia ter sido mesmo fácil para ele.


- E…e o Arthur…ele disse para você se livrar de mim? – perguntou a medo. Aquela ideia a aterrorizava. Que tipo de homem seria o seu pai?


Ergueu o rosto ao não obter nenhuma resposta da parte de Harry. Este estava mais concentrado no seu prato e em colocar mais comida para ela comer.


- Você tem de comer – disse, continuando a atulhar o prato dela com diversos tipos de alimentos.


- Comer? Como é que eu posso comer?! Como é que você pode pensar em comida agora? – Ginny sentiu a voz sufocar-se na garganta. Se continuasse a apertar as mãos sobre o colo e desejasse com todas as suas forças, talvez conseguisse materializar-se magicamente noutro lugar, fugir para bem longe dali. Fugir do seu passado que tentara a todo o custo recuperar e que agora parecia querer devorá-la. Fugir de Harry e da sua forma desconcertante de ser. Tentou descontrair-se, pois só assim conseguiria pensar mais racionalmente, mas estava difícil ser racional naquele instante. Tudo o que ela quisera, o que ainda queria, era preencher aquele enorme vazio que sentia dentro de si, mas se perguntava se os seus sentimentos ainda importariam depois de tudo o que soubera.


- Não…não me respondeu – olhou frontalmente para o moreno – Ele disse a você…para se livrar de mim? – a simples ideia de que o seu pai se descartaria assim de uma possível amante a fez tremer perante o que faria com a sua filha ilegítima, que abandonara há tantos anos atrás.


- Isso realmente importa? – Harry murmurou, desviando o olhar.


O seu tom enfureceu a ruiva. Desejou lhe bater novamente, até que toda a sua vida lhe saísse do corpo, mas…ele não conhecia a verdade. Harry supunha simplesmente que ela era uma amante que viera impedir o casamento. Tentou acalmar-se, compreender a sua posição, mas não lhe foi nada fácil.


- Porque é que está fazendo tudo isso? Que interesse move você? Suponho que não está disposto a admitir que o meu…que o Arthur te deu ordens para comprar o meu afastamento, pelo que sou obrigada a deduzir que você o faz por iniciativa própria. Porquê? – questionou Ginny, sentindo pela linguagem corporal dele que pela primeira vez estava tocando num ponto sensível, um ponto que ele talvez preferisse evitar. Contudo, a voz dele fez-se ouvir.


- Como eu já disse, ele vai se casar com a mulher com quem deveria ter casado há muitos anos. O meu interesse nisso tudo é apenas que o casamento ocorra sem incidentes – recostou-se na cadeira e a olhou intensamente. Ginny manteve o olhar firme, tendo a impressão de que ele ainda não terminara – O Arthur é um grande amigo. Gosto dele quase como se fosse meu pai, já que eu não tive pai, e o conheço suficientemente bem para saber que o melhor é que ele não tenha você por perto num momento tão delicado da sua vida.


- Então foi você quem idealizou tudo isso? - acusou-o, furiosa – E não acha que talvez esteja interferindo demasiado, sobretudo tendo em conta que sabe tão pouco sobre este assunto?


“Pouco não, nada!”, pensou. Embora não fosse amante de Arthur, tinha impressão de que se revelasse a sua verdadeira identidade aquele estranho a faria desaparecer do país num abrir e fechar de olhos. Concerteza uma filha ilegítima dada para a adopção não faria muito melhor à sua relação do que uma amante.


- Sei o suficiente para querer evitar qualquer tipo de problema – o seu olhar verde intenso parecia querer penetrar mais além.


- Não vim aqui para causar problemas – murmurou Ginny, baixando o olhar e sentindo-se tomada por uma enorme vontade de chorar. O que dissera era a mais pura verdade, jurara a si mesma desaparecer assim que visse o mínimo sintoma de complicações. Mas as complicações tinham surgido muito antes dela as ver chegando, na pessoa de Harry – Eu…eu só queria vê-lo – adiantou, mais para si mesma do que para ele.


Algo que agora era impossível. Harry Potter não iria permitir que ela se aproximasse de Arthur Weasley nem que fosse a cem metros de distância. Estava presa naquela casa até indicação em contrário. Estar perto, tão perto de alcançar o seu objectivo para depois lhe ver esse sonho arrebatado de forma tão dolorosa…mas…e se Arthur chegasse a vê-la saberia que ela não era sua amante. Aliás, saberia que aquela era a primeira vez que a via, saberia que Harry cometera um erro inimaginável.


- Me diz…-balbuciou ela – E as outras? Antes…você disse que o Arthur …disse que a fraqueza dele eram as mulheres. Quero dizer…


- Aonde você quer chegar? – o tom dele era abrasivo e o seu olhar hostil – Você não deve ser ingénua ao ponto de pensar que a vossa relação era séria, pois não?


Ginny voltou a cara e mordeu com força o lábio. Era horrível saber o que Harry pensava dela. Não saberia dizer de onde saía a sua força, mas se forçou a encará-lo com frieza.


- Nós, as amantes, ocupamos o segundo lugar nas listas de ingenuidade, bem a seguir às esposas. Não sei se o Arthur teve outras mulheres, nem quantas foram.


Decidira entrar naquele jogo. Queria saber mais sobre o seu pai, algo que pudesse auxiliá-la a encerrar aquele capítulo da sua existência. Necessitava de saber, talvez, que o seu pai era um mulherengo invertebrado, um quebra-corações devasso, alguém que não valesse a pena conhecer. Só assim poderia regressar a casa se sentindo minimamente inteira, alegrando-se por ter sido dada para a adopção. Harry a analisou. Quando se deu por satisfeito passou a mão nos seus cabelos religiosamente desarrumados, suspirou levemente e acabou respondendo:


- O Arthur tem um passado obscuro mas duvido que alguém mais, além de mim mesmo, tenha tido acesso a essa parte da vida dele. Podem até já ter partilhado a cama, mas você nunca conhecerá os seus pensamentos mais íntimos. Nunca nenhuma mulher os conheceu.


Ginny cerrou os olhos com força. Seria possível sofrer ainda mais?


- E esse passado dele…- começou, mas uma gargalhada fria de Harry deteve-a.


- Não, Ginny. Não vai conseguir que eu diga mais nada. Deixemos o Arthur em paz, está bem?


- Não, não está nada bem – protestou, fechando os punhos até os nós dos dedos estarem lívidos - Não é justo. Você me traz aqui para me afastar dele, faz todas as acusações que quer e agora não quer falar mais no assunto?! Você não pode simplesmente pôr o meu mundo de pernas para o ar e depois ignorar esse facto. Não é justo…


Esfregou a testa, à beira das lágrimas. Estava a deixar-se levar pelos sentimentos pedindo a Harry algo impossível, mas desejava tanto saber mais e mais…Harry fitava-a com uma expressão que ela a custo identificou como sendo compaixão.


- Gosta mesmo dele, não gosta? Até pode ser que esteja realmente apaixonada por ele.


Ginny obrigou-se a olhá-lo. Gostaria de amá-lo, ao seu pai, mas não da forma que Harry imaginava.


- Pode ser que sim – murmurou, o cabelo ruivo agitando-se e ocultando-lhe o rosto enquanto se erguia.


- Onde vai?


- Vou dar um passeio – respondeu ela, tentando sorrir superiormente e falhando redondamente no seu intento.


- Vou com você.


- Não, por favor – pediu ela. Harry a observava, uma vez mais, com um olhar curioso e penetrante, como se tentasse alcançar a sua alma – Não vou fugir. Aceitei tudo o que você disse e repito que não vim à Sicília para causar quaisquer problemas. Preciso de tempo para pensar, e é só isso que quero.


- Ginny – a voz dele era diferente e, por uma vez, não a olhou directamente nos olhos ao falar, continuando sentado a brincar com os talheres – Você não sabia do casamento, pois não?


- Não, eu não sabia – admitiu, sorrindo com tristeza. Nem nos seus sonhos mais ousados poderia ter imaginado aquele desenlace: chegar ali a tempo de presenciar o casamento do seu pai. Um casamento do qual ela não poderia fazer parte – Mas isso não é algo que me vá tirar o sono.


Harry olhou-a verdadeiramente surpreso e ela, para esconder a dor que a devastava, utilizou a sua ousadia: - A mulher com quem ele vai casar deve ser quem ele precisa. De certo modo, não a invejo. Vai andar muito ocupada a controlá-lo – afastou uma longa madeixa de cabelo e tentou sorrir – E quanto a mim, sou uma sobrevivente. Não faltam homens por aí – virou-se e ia começar a andar quando um profundo suspiro a impediu de continuar. Olhou para Harry e este sorria.


- Você me confunde Ginny. Pensei que estivesse magoada porque o amava e, de repente, muda completamente de registo com essa última frase – a jovem fitou-o e depois se aproximou.


- E o que é que pensa disso, Harry Potter?


- Penso que essa tua atitude é um aviso. Você é uma mulher esperta e acho que tem algum plano em mente e não quer despertar suspeitas. Resumindo, acho que você está disfarçando, actuando como uma artista em palco. Vou ter que te vigiar muito bem – a sua expressão estava fechada e os seus olhos emanavam um brilho frio e calculista.


- Pois eu também tomarei a sua atitude como um aviso. Nunca vi ninguém passar do calor ao frio com tanta facilidade. Sim, deixemos o Arthur de lado e falemos daquele beijo. Foi algum teste? Uma maneira de tentar provar para você mesmo que eu sou a prostituta que pensa que sou?


Harry parecia ter ficado desarmado perante aquela frase e passou a mão no cabelo, aparentemente tentando ganhar tempo para pensar e avaliar aquela acusação. Ginny esperava pela resposta, com o coração na garganta, também ela confusa.


- Não consegui resistir – respondeu ele, por fim, furioso – Não sei porque me deixei tentar daquela maneira por uma garota que não vale nem para…para…


- Para quê? – Ginny gritou, a sua cara da cor dos seus cabelos – Você é demasiado arrogante, Harry Potter!


- Basta, Ginny! – ordenou ele, perdendo também o domínio - Isso já foi longe demais!


- Nunca será longe demais para mim – continuou ela, apertando os punhos – Você é arrogante, frio…


Harry avançou até ela e Ginny teve a impressão de que estava decidido a silenciá-la da mesma maneira que fizera antes. Todo o seu corpo se contraiu e as palavras secaram na sua garganta. Naquele instante soube que toda a raiva que sentia para com ele se devia apenas a uma coisa: à sua atitude, o facto de pensar o pior dela era, de alguma forma, pior do que aquilo que acabara de saber sobre o seu pai. Era impossível negar a atracção que sentia por Harry. A mera presença dele alertava todos os seus sentidos. E se lhe contasse toda a verdade? De todas as formas, o seu pai não a queria, tal como ela não queria sentir todas aquelas sensações que Harry lhe despertava. Este pensamento acordou-a daquele semi-abraço entorpecedor e recuou para sair do alcance dos braços másculos do moreno.


- Não, por favor – implorou – Não me toque. Não diga nada. Me deixa!


Deu meia volta e começou a correr a toda a velocidade. Desceu as escadas do terraço e atravessou a relva sem saber para onde estava indo. Por fim, com a respiração tremendamente alterada, deteve-se para recuperar o alento e apoiou-se num muro de pedra, que lhe chegava à cintura.


- Morrer não é a solução – ouviu atrás de si, sentindo um perfume já conhecido e umas mãos nos seus ombros.


- O que quer dizer? – perguntou, alarmada. Continuando a agarrá-la com firmeza, Harry fê-la se virar. Ginny abriu os olhos de par em par e recuou um passo. O moreno segurava-a e o seu corpo foi para ela como um muro de protecção. Nunca pensara sofrer de vertigens, mas talvez estivesse enganada quanto a isso. Aquilo que acabara de ver deixou-a totalmente desorientada. Do outro lado do muro, havia um perigoso precipício de rocha viva e, a uns cinquenta metros abaixo, avistava-se uma pequena enseada. No seu estado de ansiedade para fugir dele, podia facilmente ter saltado o muro sem pensar e…


Respirou fundo para se recuperar daquele susto e conseguiu acalmar-se até certo ponto. Subitamente, o corpo quente de Harry colado às suas costas e as suas mãos pareciam-lhe um perigo muito maior que qualquer queda livre.


- Eu estou bem – adiantou, soltando-se dele – Não sabia…- o presenteou com um sorriso nervoso – Não sabia que havia aqui um penhasco. – afastou-se do muro ao se aperceber da tensão de Harry que, por sua vez, estava disposto a agir a qualquer momento – Eu não estava a pensar em me atirar. Não sou desse tipo, acho essa atitude uma cobardia – adiantou, vendo-o descontrair-se.


- Ainda bem – murmurou ele, pegando-lhe depois na mão e conduzindo-a novamente até ao caminho que ela percorrera rumo ao penhasco. Ginny sentiu com uma alarmante nota de agrado a suavidade e força daquela mão. Optou por retirar a mão, mas então ele colocou a mão sobre os ombros dela. “Assim fica difícil”, pensou enquanto mordiscava o lábio. Harry guiou-a através dos magníficos jardins, pintados de todas as cores que ela conseguia enumerar, até chegarem à casa. Nenhum dos dois falou até se encontrarem na zona da relva, perto do terraço. Sentia-se um pouco mais calma. A sensação daquela relva sob os seus pés era completamente diferente da de qualquer jardim onde já houvesse estado e foi esse comentário que fez.


O jovem deteve-se e ela seguiu em frente. Mais à frente estacou também, interrogando-se sobre o que é que poderia ter chocado tanto um homem como aquele. Voltou-se para ele e viu que este estava com a cabeça levemente inclinada e um olhar divertido.


- Você diz as coisas mais estranhas! O que é que a relva tem a ver com tudo o resto? – a ruiva encolheu os ombros.


- Estava simplesmente tentando encontrar um tema de conversa. Pensei que fosse evidente.


- Acho que existem muitas coisas das quais podemos falar, dadas as circunstâncias, e que nada têm a ver com jardinagem.


- As circunstâncias são bastante estranhas e você não devia se surpreender com nada daquilo que eu diga. Segundo as suas próprias palavras, eu sou um mistério. Uma sedutora, um problema bicudo, até mesmo uma potencial suicida. Se você acha as minhas conversas estranhas, devia decididamente ouvir as suas de vez em quando – lançou um sorriso irónico e voltou costas, encaminhando-se para as escadas. Harry seguiu-a e sorria quando a alcançou.


- As excentricidades dos ingleses – disse trocista.

- A loucura dos sicilianos – respondeu na hora ela e Harry riu às gargalhadas.


Já se encontravam no terraço, olhando-se mutuamente. Estava metida numa grande embrulhada e preferia dizer toda a verdade naquele momento, já que ele parecia mais descontraído e de bom-humor. Mas o mais provável era que Harry não acreditasse nela, pelo que a situação voltou a ser desesperante.


- E agora, o que vai acontecer? – perguntou-lhe sem preâmbulos. Harry encolheu os ombros.


- Pode ser uma boa ideia ir acabar de comer.


- E depois? – insistiu ela. O moreno voltou a arquear as sobrancelhas num gesto divertido, quase como se ela tivesse feito uma proposta indecente.


- Depois, desfrutaremos da tranquilidade do lar – retorquiu, afastando a cadeira para que Ginny se sentasse, num gesto de cavalheirismo surpreendente - Vamos ter que viver juntos durante três semanas, acho que já chega de melodramas por hoje.


- Foi você quem provocou a tragédia grega – replicou ela – Eu gosto da vida tranquila.


- Ainda bem, porque eu tenho muito que fazer antes do casamento e não me agrada andar a correr atrás de você a toda a hora – sorriu e serviu dois copos de vinho. Ginny bebeu o seu de um trago, sem vacilar. Começava a acreditar que ultrapassaria tudo aquilo mais facilmente com alguns copos em cima. Procurou ignorar o último comentário dele e ergueu o copo no ar após voltar a enchê-lo.


- Está bem, faremos uma trégua. A uma existência calma entre nós, demore aquilo que demorar em recuperar o juízo e me libertar desta prisão – bebeu o seu vinho, mas ele não participou do brinde e Ginny teve uma ideia.


- É claro que existem termos para o acordo de paz – disse calmamente. Foi então que o viu beber o seu vinho e pousar o copo sobre a mesa.


- Era o que eu imaginava – murmurou ele passados alguns instantes – Mas o dinheiro só passará para as suas mãos quando o casamento terminar.


- Não tencionava pedir dinheiro algum, mas já que parece tão decidido a dar-me algum, insisto em trabalhar para o merecer. Você tinha razão, claro. Não tenho dinheiro e preciso de pagar o bilhete de regresso para Londres. Já que a sua governanta não está e você diz que tem muito trabalho, posso ocupar o lugar dela. Farei a comida e limparei a casa. Depois do casamento você me paga e eu vou embora – fez uma pausa – para sempre. Acho que é justo e você?


- Você sabe cozinhar?


Ginny olhou para a comida que tinha à sua frente. Mais do que cozinhada tinha sido apenas misturada: salada, carne fria e marisco.


- Sei.


- E limpar? – perguntou Harry. Ginny riu levemente.


- Que dificuldade pode ter essa tarefa?


- Eu sou muito exigente com a limpeza, não é fácil trabalhar para mim – Harry parecia sério mas Ginny rolou os olhos.


- Jamais me teria ocorrido tal coisa.


- Muito bem, então estamos de acordo. E o que faremos nas noites quentes?


- Que noites?


- Aquelas que se estendem desde o entardecer até ao amanhecer – respondeu ele, sorrindo levemente.


Visto Harry ter continuado a comer como se não tivesse sido ele a proferir aquelas palavras, ela o imitou. Mas era difícil mastigar e engolir tendo a sensação de que tinha a boca cheia de algodão. Imaginar as noites ardentes do mediterrâneo na companhia daquele homem era, no mínimo, inquietante. Poderia superar as tarefas domésticas mas e quanto às noites?


- Pintarei. Apanharei flores do jardim e farei belas naturezas-mortas trancada no meu quarto. Quanto a você, pode fazer aquilo que bem lhe apeteça.


- Costumo passar as minhas noites com alguma mulher encantadora quando a oportunidade surge – disse ele. Estava a provocá-la e Ginny obteve a confirmação dessa suspeita quando viu que Harry tentava ocultar um sorriso. Talvez estivesse começando a conhecê-lo.


- Que sorte a sua – retorquiu ela – Agora compreendo a sua amizade com Arthur. Vocês guiam-se pelas mesmas paixões. Mas é uma pena que não se passe o mesmo comigo. Sou bastante mais selectiva na hora de escolher com quem partilho as minhas noites e é evidente que você não é um bom candidato – explicou, comendo um pouco de salada. Harry riu-se.


- Não lhe estava oferecendo a oportunidade de me escolher – adiantou – Estava apenas apalpando o terreno para ver se você tinha alguma objecção em eu trazer cá acompanhantes femininas enquanto você viver aqui.


Ginny apertou os talheres com tamanha força que pensou que fosse dobrá-los. Porque é que tinha sempre de cair nas armadilhas dele? Harry dissera que não tinha esposa, mas podia perfeitamente ter uma namorada. Estaria ele a referir-se à dona do vestido? O pensamento dele fazendo amor com uma mulher naquela maravilhosa casa era-lhe quase insuportável. Fez uma bola com o guardanapo e lançou-o sobre o prato antes de se levantar.


- Desde que não espere que eu cozinhe e limpe para ela ou elas, pode trazer todas as mulheres que quiser. Agora, me dá licença, tenho mais que fazer – disse, começando a juntar os pratos sujos sob o olhar atento dele. Por fim, ele falou.


- Traduzindo: você odeia a ideia de eu trazer cá outras mulheres.


- Não me lembro de ter dito tal coisa.


- Não disse, mas foi isso que sentiu – ele inclinou-se mais para junto dela e a jovem deixou novamente a pilha de pratos sobre a mesa.


- Não tenho nada a ver com a sua vida amorosa – respondeu, sentindo-se indignada e não sabendo bem porquê.


- Eu acho que tem, as suas faces estão fervendo – levantou-se de rompante e puxou-a por um braço – Será que você cora tão facilmente com o calor da paixão? – murmurou perto do seu ouvido. Ginny cerrou os dentes.


- Não sei, nunca me olhei ao espelho nessas ocasiões – respondeu entredentes.


- Pois, da próxima vez verificaremos isso, está bem? Pode ser divertido – e soltou-a.


A ruiva ficou surpreendida e não surpreendida ao mesmo tempo. Começava a compreender o tipo de homem que ele era. Sem coração. Harry era o tipo de homem que utilizava as mulheres e depois as deitava fora. Observou-o entrar em casa, sem olhar para trás. Porque é que se lembrara de ler aqueles malditos papéis? Só tivera dores e tristezas. Sim, tinha um pai verdadeiro, alguém que não era como ela imaginara. Um homem que adorava mulheres e as utilizava, e cujo amigo se regia igualmente pelo mesmo padrão.


Suspirou, pegou na loiça e levou tudo para a cozinha, uma divisão moderna. Deixou tudo sobre a bancada e olhou em volta. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi um quadro pendurado na parede. Estava coberto de postais de lugares distantes e de fotografias, o que mostrava que Harry Potter também tinha um lado humano. Uma fotografia em particular chamou a sua atenção. Três pessoas estavam representadas e uma delas era, sem dúvida, Harry. Ginny retirou a foto com a mão a tremer. A jovem que se encontrava ao seu lado era linda, morena e sensual. O homem que estava por trás era mais velho, ruivo, e tinha os braços colocados por cima dos ombros de ambos. Ginny olhou atentamente, sentindo mais do que vendo que aquele homem devia ser o seu pai. Ia colocar a fotografia no lugar, quando Harry falou atrás de si:


- Pode ficar com ela se quiser, pois é o mais perto que vai estar dele. A jovem que está ao meu lado é filha dele, de modo que talvez agora compreenda que vocês não poderiam nunca formar um casal. Não devem existir muitos anos de diferença entre você e ela.


Ginny se virou para o contemplar, o seu rosto desfigurado pela dor e o seu coração imóvel, como um lago sem ondas e sem fundo. Sentiu a cabeça girar e a visão desfocar. A voz dele soava fria e recriminatória, como se estivesse falando com a forma mais insignificante de vida. A foto lhe caiu da mão e Ginny saiu da cozinha a correr. Sem saber como, encontrou o caminho até ao seu quarto e ficou de costas coladas à porta durante aquilo que lhe pareceram horas.


Tinha uma irmã e o homem da fotografia era o seu pai. E…a filha, sua meia-irmã, parecia estar apaixonada por Harry. Seria ela a mulher que ele pretendia trazer para casa? A sua cabeça começou novamente a andar à roda, tanto que teve vontade de gritar. Não deveria ter vindo. Não queria estar ali. Estava sofrendo como nunca e certamente haveria mais dor à sua espera. Não iria ser capaz de suportar tudo aquilo.






- Ginny, isso é demais! Duas vezes num só dia é obsessivo. Além disso, ver o seu traseiro tão apetecível com esses calções enquanto está de joelhos não é nada bom para a minha pressão arterial.


- Não devia ter problemas de pressão na sua idade – respondeu ela, enquanto esfregava com todas as suas forças. Duas vezes num só dia de joelhos era realmente um pouco obsessivo, mas fazia maravilhas à sua mente e ao espírito, para não falar da cintura. Estava levando suas obrigações muito a sério. Fez uma pausa para recuperar o alento apoiando-se nos tornozelos. Harry encontrava-se de pé, apoiado na maçaneta da porta da cozinha, completamente despreocupado com as suas calças de linho e uma camisa vermelha meio aberta. Estava descalço e todo o seu aspecto era descontraído e relaxado, para além de muito atraente.


Ginny sorriu. Era naqueles momentos que se sentia bem: ele provocando e ela respondendo com um rápido comentário. E o resto do tempo? Ginny parecia surpreendê-lo tanto a ele, quanto ele a ela. Muitas das vezes, apanhava-o a estudá-la. Devia ser um mistério para Harry. Supostamente a ex-amante de Arthur Weasley, um homem poderoso, e ali estava, de joelhos, esfregando o chão da cozinha até se ver reflectida nele.


- A culpa é do Padfoot – disse – Há pêlos e marcas de patas por todo o lado. Por isso é preciso lavar a cozinha duas vezes por dia.


- E a culpa é de quem? Normalmente, não o deixo entrar em casa. Quando você se for embora, vou ter muitas explicações para dar.


- Conversarei com o Padfoot antes de me ir embora. Ele compreenderá.

E continuou a esfregar o chão, apesar de a ideia de deixar aquele lugar maravilhoso a fazer sentir um aperto no peito. Adorava aquele lugar e estava disposta a continuar a esfregar o chão até à eternidade se com isso pudesse ficar. Gostava daquela casa fresca e antiga, com a sua sóbria e elegante tranquilidade, os jardins cujo contraste com a casa fazia com que o seu sangue cantasse de euforia. Se ficasse ali muito mais tempo, iria necessitar de uma transfusão. De repente, sentiu que a levantavam pela cintura e o trapo lhe caiu das mãos.


Harry agarrava-a com força pela cintura e os seus olhos brilhavam com uma intensidade estranha. Pela forma como a segurava, não teve outra hipótese senão apoiar as mãos nos braços dele. Aquela cena era muito íntima e desconcertante para ela.


- Não pretendia explicar nada ao cão, mas sim à minha governanta – disse ele, rabugento.


- Sim, mas teria de explicar primeiro ao Padfoot. É o mais justo – murmurou ela. O moreno sorriu, resignado.


- Ginny, você é impossível – os seus olhos escureceram, como se uma sombra tivesse ocultado a sua luz interior, um sintoma de mudança de humor que ela já conhecia – Onde é que você o conheceu?


- No terraço. Você também estava lá. Se bem me lembro, me beijando à força.


Harry apertou as mãos na sua cintura.


- Porque é que você continua fazendo isso? Porque é que foge sempre à conversa cada vez que falo no Arthur?


Sim, era isso que ela fazia. Depois de ter visto a fotografia já não queria saber mais detalhes das suas vidas. Deixara de fazer perguntas sobre o seu pai e nem queria saber a história da sua meia-irmã. Harry é que continuava captando a sua atenção, pois era real. A única imagem daqueles três que era de carne e osso para ela. Como naquele instante, ao agarrá-la daquele jeito, deixando-lhe marcas da sua atracção na alma. Recuou um passo, libertando-se dele, e agachou-se para pegar o frasco do detergente.


- Porque é que continua a falar dele? – perguntou – Conseguiu manter-me afastada dele e devia estar contente pelo facto de não continuar obcecada. Fim de história.


- Mas não é assim tão fácil, pois não? – retorquiu ele. Ginny aproximou-se do armário e guardou o frasco, continuando de costas para ele depois.


- É. É muito simples. O Arthur vai casar e não há nada que eu possa fazer ou dizer a respeito disso.


- Veio até cá procurá-lo, passa por todo o tipo de situações traumáticas e agora renuncia a ele?


- Mas é isso que você quer, não é? O mais lógico e razoável – se voltou para o desafiar. Que pretendia ele que ela fizesse afinal?


- Agora que penso nisso, não sei o que é esperava que fizesse – mencionou, pensativo – Mas encontrar você de joelhos a esfregar o chão de cinco em cinco minutos não era certamente uma opção que tivesse em mente.


- São os termos do nosso acordo – lembrou ela – Esqueço o Arthur e trabalho para você, e depois do casamento você me paga e eu apanho o primeiro voo de regresso a casa. Obrigado e adeus, Ginny Knight.


- Está vendo? Voltou a fazer a mesma coisa.


- O quê?


- Se armar em dura - apontou ele. Ginny sorriu.


- É aquilo que as amantes despeitadas fazem ou, pelo menos, aquilo que devem fazer.


- Isso é muito razoável, mas não combina nem um pouco com você.


- Por Deus! Isso é um comentário ou uma pergunta? Porque se for uma pergunta, tenho demasiado calor para uma análise psicológica.


- Seja um comentário, então – decidiu Harry – A minha análise relativamente a você é a seguinte: uma jovem intensa cuja vida lhe prega constantes partidas, mas que se comporta de uma maneira extremamente razoável quando descobre que o seu adorado amante está a ponto de se casar com outra mulher. Há algo que não se enquadra aqui.


A ruiva deu de ombros. Talvez devesse suspirar mais, chorar mais durante a noite, certificando-se de que ele a ouvia, e passear mais pela casa como uma alma penada. Talvez fosse assim que agissem as amantes despeitadas. Optou por uma resposta estratégica.


- Ainda não me encontrei cara a cara com ele.


- Sentir-se-ia de outra forma se encontrasse com ele? O fogo da paixão se reacendia? – perguntou ele, sombrio.

Ginny sorriu: - Quer dizer que se eu me apercebesse de tudo aquilo que ia perder, ou seja, uma avultada conta bancária, decidiria lançar-me sobre o pescoço dele? – Harry negou com a cabeça.


- Não me referia a isso.


- Pois eu acho que sim. Você pensa que eu ando constantemente à caça de uma presa. Uma mulher jovem e um homem mais velho que têm uma aventura. Para você, só pode tratar-se de algo mercenário.


- Quando na verdade foi tudo um conto de fadas, não é? – disse ele e a jovem se sentiu magoada com tanto cinismo.


- Chega, Harry! Isso não te diz respeito!


- Tenho curiosidade.


- Curiosidade ou ciúmes? – perguntou sem pensar e assim que acabou de falar desejou não tê-lo feito. Aquela ideia era absurda, mas quando ele não respondeu com uma enérgica negação ou um sorriso trocista, Ginny começou a interrogar-se. Estaria ele com ciúmes da sua suposta aventura com Arthur? A hipótese era excitante, mas ela negou de imediato essa possibilidade.


- Vamos para o terraço – sugeriu ele – Você pinta e eu observo – disse, como se ela não tivesse dito nada.


- Fico nervosa quando você olha para mim enquanto pinto – queixou ela, quase fazendo beicinho. No entanto, era verdade. Além de deixar o pincel no local errado, tinha o coração permanentemente na garganta. Era muito perturbador.


- Sinto-me lisonjeado – respondeu ele com um sorriso franco e luminoso, que a fez corar.

A rotina daqueles dias que ali passara consistia em limpar toda a manhã, altura em que Harry desaparecia misteriosamente, aparecendo apenas para o almoço. Depois voltava a sumir e regressava apenas mais tarde, quando ia até ao jardim para a ver pintar. Padfoot, que a acompanhava a todas as horas, acostumara-se um pouco mais à presença dele e só lhe rosnava quando se aproximava demasiado de Ginny. Cedo descobrira que adorava tomar conta daquela casa, poder observar os lindos objectos que ali existiam, poder tocar com as mãos no vidro antigo e sentir a história que continha, as visões que tinha presenciado. Contudo, nem o trabalho a livrara de ficar obcecada por aquela fotografia.


- Me fala da filha do Arthur – pediu de rompante, enquanto desciam as escadas.


- Porque é que me pede isso? – questionou ele, amparando-a na descida pelos degraus deteriorados pelo tempo.


- Curiosidade – murmurou ela. Harry sorriu.


- Ou ciúmes, por vê-la pendurada sobre o meu braço com tanta naturalidade? – o seu tom era indecifrável. Ginny empinou o nariz, percebendo que estava a receber o troco pela observação que fizera ainda na cozinha.


- Para sentir ciúmes teria que sentir algo por você, e não sinto.


- Que desilusão. Estava começando a pensar que gostava um pouco de mim.


- E gosto – admitiu ela, fitando-o – Você é estranho, mas podia estar fazendo a minha vida num inferno e não está.


Harry pareceu contentar-se com esta resposta, embora a olhasse com uma intensidade desarmante. Tinham chegado ao local onde ela costumava pintar, um banco de pedra junto a um hibisco no roseiral do jardim. O banco encontrava-se rodeado por canteiros de flores e Ginny sentia que podia passar ali dias intermináveis sem, no entanto, conseguir captar a plenitude daquele lugar. Pintou com toda a sua alma, num silêncio profundo e extasiado acompanhada por ele, que a observava sem interferir, até que as sombras da noite devoraram os contornos das suas figuras.



N/A – Aí está o novo capítulo. Eu achei mais fraquinho que qualquer outro, mas tenho estado meio doente e foi difícil pôr em palavras as ideias que tinha. Por outro lado, este é o capítulo de transição: a partir daqui vem H/G em força, com alguns dos momentos em que tenho mais esperança e que creio me darão mais prazer a escrever. Mas será que o Harry tem um caso com a irmã da Gi? Não sei, não! Ahahah



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