De volta ao começo
Sem dúvida alguma, aquele não fora um Natal comum, Sarah pensou, enquanto trocava-se para dormir. Os feriados haviam terminado, e ela esperava que a torrente de novidades cessasse.
Olhou-se no espelho, perguntando à imagem refletida quando é que acordaria e descobriria que estivera delirando. Afinal, até seu nome seria outro a partir de agora, e com isso ainda não se acostumara.
Sentia sede, e decidiu ir à cozinha em busca de um copo d’água, não tinha nenhuma vontade de tentar isso de forma “diferente”... Não por enquanto!
Sorrindo de sua própria dúvida quanto aos seus poderes mágicos, Sarah deixou o quarto, caminhando sem ruído pelo corredor, graças às suas velhas pantufas cor de rosa.
Não tinha avançado muito, quando ouviu indícios claros de que alguém estava com algum problema. Alan, pois fora a única criança a permanecer na casa, já que era “a sua casa”, soluçava e murmurava alguma coisa, provavelmente sofrendo um pesadelo.
Sem vacilar, Sarah abriu a porta do quarto. A réstia de luz que invadiu o aposento foi suficiente para guiá-la até a cama do garoto, que realmente se contorcia e gemia.
Chamou-o pelo nome várias vezes, tocando seu ombro, mas ele não respondia, continuando a se debater. Então, atendendo um instinto imperioso, chamou-o carinhosamente:
- Filho, acorde. Está tudo bem, estou aqui.
- Mãe! Mãe, que horrível, está lá, sobre a nossa casa! – ela a fitava agora, olhos desmesuradamente abertos, sem reconhecê-la de pronto.
Compreendendo o que se passava, ela o tranqüiliza:
- Calma, filho. Isso já passou. Já foi há muito tempo e não vai acontecer de novo.
Alan a fitava, acalmando-se aos poucos e só então despertando totalmente, enquanto Sarah o fez deitar-se em seu colo e, fazendo-lhe cafunés como sua saudosa mãe D. Beatriz, começou a cantar:
- Dorme a cidade... – mas parou, aquela música era muito... impessoal. Então, lembrou outra, uma de suas favoritas, e que ele entenderia, pois era em inglês:
- When you're weary/ Feeling small/ When tears are in your eyes/ I will dry them all/
I'm on your side/ When times get rough/ And friends just can't be found/ Like a bridge over troubled water/ I will lay me down/ Like a bridge over troubled water/ I will lay me down
When you're down and out/ When you're on the street/ When evening falls so hard/ I will comfort you
I'll take your part/ When darkness comes/ And pain is all around/ Like a bridge over troubled water/ I will lay me down/ Like a bridge over troubled water/ I will lay me down
Sail on Silver “Boy”, Sail on by/ Your time has come to shine/ All your dreams are on their way/
See how they shine/ If you need a friend/I'm sailing right behind/ Like a bridge over troubled water/ I will ease your mind/ Like a bridge over troubled water/ I will ease your mind
(Quando você estiver cansado, sentindo-se pequeno/ Quando houver lágrimas nos teus olhos, eu irei enxugá-las, eu estarei do teu lado./ Quando o tempo maltratar você, e os amigos não puderem ser encontrados, como uma ponte sobre águas turbulentas, eu me estenderei/ Quando você estiver pra baixo, Quando você estiver na rua e quando o anoitecer for difícil, eu irei confortar você/ Eu estarei ao seu lado, quando a escuridão chegar e o sofrimento estiver ao redor./Como uma ponte sobre águas turbulentas, eu me estenderei. /Navegue, Garoto de Prata, Navegue/ Seu tempo está ficando claro, todos teus sonhos estão a caminho./ Veja como eles brilham./ Se você precisar de um amigo, eu estarei navegando ao teu lado/ Como uma ponte sobre águas turbulentas, eu me estenderei.)
Snape aparecera à porta, e Sarah não parou de cantar, apenas lhe fez um gesto para que se mantivesse em silêncio.
Mas o garoto dormira, um sorriso meigo em seus lábios, parecendo até... outra criança.
Sarah o admirou por um minuto, surpreendida por algo que acabara de perceber, mas não disse nada a respeito para o irmão, que se aproximou em silêncio.
- Coloque-o direito na cama, é muito pesado pra mim – ela pediu num sussurro.
Snape assim o fez, e depois de cobri-lo com a manta, e Sarah beijar-lhe o rosto, murmurando um “boa noite, querido!”, ambos deixaram o quarto, fechando a porta.
- Eu ia buscar um copo d’água... mas agora, acho que preciso é de um chá. Será que consigo um? – ela perguntou em voz baixa, e Snape lhe pediu com um gesto que a acompanhasse.
Logo, estava diante da lareira, na mesma poltrona da outra noite, bebericando um saboroso chá de ervas.
Snape a examinava com atenção e, percebendo que usava as velhas pantufas que um dia ele transfigurara em coelhos, riu ao comentar:
- Vejo que perdeu o medo de calçá-las...
- Hein? – ela o fitou por cima da xícara e, entendendo do que falava, sorriu:
- Ah, eu nem lembrava disso, né? Embora tenha que confessar que, às vezes, parecia olhar para elas e ver dois coelhos, sem entender porque.
- Você continua cantando muito bem. Mas por que fez aquilo?
- Ora... o garoto estava sofrendo, tendo um pesadelo. Só fiz confortá-lo, para que dormisse novamente e com tranqüilidade.
- Então vou te chamar, quando tiver pesadelos. – ele gracejou – Se é o tratamento que vou receber...
- Senhor Severus Snape, se não fôssemos irmãos, eu...
- O que?
- Azarava você agora!
Eles riram juntos. Se Snape voltara a provocá-la, era porque estava bem. Mas Sarah não deixou de notar que ele depositara um frasquinho na mesa.
- O que é isso?
- Poção do Sono sem Sonhos. Eu ia fazê-lo tomar.
- Absolutamente desnecessário... Você não consegue fazer nada sem magia?
- Já lhe provei que sim, não é mesmo? – ele sorriu, lembrando-se dos meses vividos como trouxa.
Mas sua irmã aproveitou o momento para perguntar sobre o que a deixara mais curiosa ao reencontrar Snape:
- Escuta... como foi que você encontrou esse garoto? Ou... ele é seu filho, mesmo? Temos uma Sra Snape por aí?
- Não, claro que não! –ele se apressou em retrucar e Sarah riu de seu terror a esta idéia.
- Você é mesmo um lobo... ou melhor... um morcegão solitário!
- E você continua gostando de viver perigosamente – ele sacou a varinha, em sua já habitual ameaça de estuporá-la.
- Não está mais aqui quem falou – ela ergueu as mãos, num pedido de trégua – Mas queria saber como o encontrou.
- É uma longa história...
- Sou toda ouvidos!
Snape a fitou, depois olhou para as chamas por um momento, depois soltou um longo suspiro e começou a contar...
*******
Em toda a sua vida, Snape nunca imaginara passar por um momento como aquele. Nem a audiência onde fora julgado pelo assassinato de Alvo Dumbledore fora tão... angustiante. Provar sua inocência relativa, ou seja, que agira sob ordens do próprio Dumbledore ao atingi-lo no peito com a maldição da morte, não era nada, diante do que lhe mandavam fazer agora: trabalhar com Harry Potter!
Mas, se era o que precisava fazer para provar que só continuara como Comensal por ordens de Dumbledore, se apenas sua participação na captura de comensais ainda foragidos garantiria que ficasse fora de Azkaban, que fosse.
Decidido, ele deixou sua casa, cuja localização em Spinners End apenas uma pessoa conhecia - e esta pessoa estava muito longe agora - e aparatou nas imediações do Caldeirão Furado, ponto de encontro com Potter e a equipe de aurores (pois o rapaz se recusara a descansar enquanto tivesse um comensal à solta, mesmo ainda não sendo um auror). Ele tinha uma notícia quente pra eles: alguns comensais enlouquecidos atacariam mais uma casa esta noite... Mas, se tivessem sorte, conseguiriam evitar mais mortes desnecessárias, ainda mais depois da queda definitiva de Voldemort.
O alvo, era uma família de sangues-puros, que haviam se negado a seguir o Lord das Trevas e, depois do fim da guerra, haviam sido tolos o suficiente para julgar que não mais precisavam de proteção extra.
Infelizmente, eles não foram rápidos o bastante. Mesmo sendo tomados de surpresa com a chegada do grupo de aurores, os comensais enlouquecidos, quatro no total, continuaram lançando maldições a toro e a direito. E, claro, o pobre casal que residia na casa agora em ruínas, foi atingido.
Dos comensais, apenas um escapou, pelo menos, este saldo positivo, apesar da tristeza de todos. Não haviam conseguido impedir mais duas mortes vãs...
Harry e os outros partiram, levando os comensais capturados, mas Snape permaneceu. Seu joelho ferido voltara a latejar, agora que o efeito da poção para dor passara. Por um momento, pensou ter visto Dumbledore examinando a casa...
- Tolice, Dumbledore está morto. Eu o matei! E ele não se tornou um fantasma, com certeza..
- Claro que não, Severus. – a voz do velho diretor soou dentro de sua mente, assustando-o.
Snape fitou o vulto luminoso à sua frente, que sorria, olhando por cima dos óculos meia-lua, como sempre fizera.
- Então, o que está fazendo aqui? Resolveu voltar sei lá de onde pra me assombrar mais do que já faz em meus pesadelos?
- Claro que não, meu amigo. Apenas vim lhe ajudar. Ainda há algo a ser feito.
E, apontando para o interior da casa, Dumbledore desapareceu, fazendo Snape pensar que agora dera pra ter alucinações... Mas se ergueu da pedra em que se sentara, resolvido a tirar aquilo a limpo.
Haviam desfeito a marca negra no céu, tudo estava calmo agora, mas ele continuava a sentir resquícios de feitiços muito fortes, que já deveriam ter se desvanecido... muito estranho.
Andou por toda a casa, praticamente tudo estava destruído. Móveis, utensílios, tudo. A um canto de um dos cômodos, porém, algo lhe chamou atenção: a parede de um dos cantos não refletia as sombras em torno como deveria... Havia algo ali.
Depois de avaliar mentalmente todas as possibilidades, apontou a varinha, exclamando:
- Finite encantantem!
Um velho armário de madeira apareceu do nada, mas isso não surpreendeu-o. Estava curioso era com os motivos para existir um armário escondido por um feitiço desilusório, ali.
Um som abafado vinha de dentro do armário, e ele se aproximou com cautela, escutando. Poderia ser um simples bicho-papão, ou talvez... alguém escondido.
Preparando-se para o pior, apontou para a fechadura do armário:
- Alohomora!
Com um estalo forte, a porta se escancarou, e desta vez, Snape se surpreendeu de verdade: havia algo, ou melhor, alguém, dentro do armário. Encolhido e enrolado em uma veste velha, um garotinho o fitava agora com olhos arregalados de susto, mas ainda assim com expressão corajosa.
Snape respirou fundo, e esperou, fitando o garoto com a expressão mais tranqüila que conseguiu fazer. O menino continuou a encará-lo, entre curioso e amedrontado. Snape, com um suspiro, falou em sua voz mais suave:
- Meu nome é Snape. Qual é seu nome?
- Alan. – a voz faca mal podia ser ouvida – Cadê minha mãe?
Snape titubeou. O garoto devia ter três, no máximo quatro anos. Não podia simplesmente dizer que todos estavam mortos... Mas também não poderia mentir. Não quando o garoto o encarava com tanta coragem.
- Eles... se foram... e nós também precisamos sair daqui.
- Por que?
- Porque... a casa está toda destruída. Não é seguro ficar aqui.
- Você vai me levar pra minha mãe?
Snape não soube o que dizer. Pela primeira vez na vida, sentiu-se incapaz de dizer algo. Não podia ser grosseiro com um garoto que acabara de perder toda a família, por mais que detestasse ter que lidar com crianças...
Depois de pensar um pouco, respondeu:
- Por enquanto, não podemos ir onde ela está. Mas ela me pediu pra cuidar de você, certo? Precisamos levar você para outra casa. Vamos?
Ele estendeu a mão, esperando a reação do garoto. Em último caso, lançaria um feitiço de sono para levá-lo até... por Merlim, pra onde?
Mas o garoto estendeu sua mãozinha e pegou a sua, num gesto de confiança que o surpreendeu.
- Vamos. – ele disse em sua vozinha infantil, mas determinada.
Snape sorriu, por um segundo. Aquele garoto nem imaginava quem ele era, ou não teria concordado com tanta confiança. Ele, que semrpe fora temido e evitado pelos alunos em Hogwarts, agora conduzia um garotinho pela mão... O que diria um deles se o vissem agora?
Mas tinha mais com que se preocupara agora. Viu que o garoto ficava cada vez mais acabrunhado, à medida que atravessavam a casa semi destruída, e com toda razão. Então, decidiu fazer diferente. Aquele garoto não precisava ver tudo com ficara e imaginar o que teria acontecido com a família. Não precisava de mais motivos para seus já prováveis pesadelos vindouros.
- Olha, vamos viajar de um jeito diferente, ok? Vou abraçar você, e vamos embora. Vai parecer um pouco estranho, você pode até ficar um pouco tonto, mas passa logo. Está pronto?
- Sim, senhor.
Snape fitou aqueles olhos escuros, quase tão escuros quanto os seus próprios, e desejou do fundo do coração que não se tornassem frios como o dele. Recordou por um breve instante a si mesmo naquela idade, e seu coração, pois Snape tinha um coração, afinal, se enterneceu. Sorriu seu sorriso mais sincero e brando, ao dizer:
- Então, vamos.
Abraçou-o, aparatando em seguida.
Snape não sabia, mas naquele momento, dava o primeiro passo para uma vida completamente diferente da que conhecia.
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