Um criado fiel
MAIS UMA VEZ HARRY OLHOU PELA JANELA de seu minúsculo quarto, no sobrado da Rua dos Alfeneiros, tentando talvez, vislumbrar uma resposta às tantas indagações que lhe passavam pela mente desde sua chegada, há dois dias, vindo de Hogwarts, logo após o funeral do diretor da escola, com uma breve passagem pela Toca, para o casamento de Gui e Fleur.
Na verdade a decisão já estava tomada. Ele havia exposto a si mesmo todas as possibilidades de como seria seu futuro agora, que já não possuía seu tutor moral, Alvo Dumbledore, a lhe mostrar o melhor caminho a seguir e as decisões mais corretas a tomar, apesar de que, geralmente, seus atos não eram exatamente aqueles que lhe teriam sido aconselhados pelo falecido amigo.
Sentou-se à cama e ficou algum tempo a observar Edwiges empoleirada em sua gaiola, agora sempre aberta, colocada sobre o armário. A coruja soltou um pio, como que esperando um chamado para se juntar ao garoto, mas, recebendo apenas o silêncio como resposta, acomodou o bico sob as penas e permaneceu quieta.
Era noite alta já, e o estômago do rapaz reclamava, barulhento, da pouca atenção recebida nos últimos dias, aliás, de sua própria vontade: assim que se acomodara no banco traseiro do carro dos Dursley, após ter sido deixado pelo pequeno grupo da Ordem da Fênix em uma rua lateral à estação ferroviária, narrou ao tio Valter e à tia Petúnia os acontecimentos que culminaram na morte de Dumbledore, acrescentando que só estava retornando à casa dos tios devido à proteção que o feitiço lançado pelo falecido bruxo lhe proporcionaria até que completasse dezessete anos, mas que não pretendia viver com eles até que este fato se consumasse, em pouco mais de dois meses, não iria lhes dar nenhum tipo de despesa – nem com alimentação – queria apenas se isolar em seu quarto e ficar só, até que arranjasse outro lugar para morar e levar seus pertences mágicos, no que teve a concordância imediata de ambos.
Ingeriu o restante de algumas guloseimas que havia trazido d’A Toca, por insistência da Sra. Weasley e, retirando de seu malão um pedaço de pergaminho e pena, pensou por alguns instantes e escreveu as seguintes palavras:
“Preciso lhe falar, venha ao meu quarto. Harry Potter”.
Olhou mais uma vez para a mensagem e, aprovando com um sinal de cabeça, colocou-a em um envelope e escreveu o nome do destinatário e seu endereço mágico, chamando Edwiges em seguida.
— Não é uma entrega muito comum... – disse à coruja, enquanto esta recebia a correspondência com o bico –... mas acredito que conseguirá cumpri-la...
A ave saltou pela janela, satisfeita, e pôs-se a voar pelo céu noturno. O jovem bruxo espreguiçou-se demoradamente: “Foi dado o início, agora só resta esperar...” – pensou ele, deitando-se de lado na cama dura e barulhenta e fechando os olhos. Imediatamente lhe veio à mente a imagem de uma garota, com esvoaçantes cabelos cor de fogo e que lhe lançava um sorriso maroto, pareceu até que podia sentir o perfume de camélias que emanava daquela criatura encantadora, sentou-se rápido e olhou esperançoso à sua volta, imaginando talvez encontrar a jovem escondida em algum canto do aposento, mas não havia ninguém. Voltou à posição anterior resignado com a realidade e, em poucos minutos estava dormindo.
O ambiente era escuro e úmido, a escassa luz que iluminava precariamente aquele insalubre espaço, se originava de alguns raros castiçais que sustentavam velas grossas e gastas, as janelas que compunham o ambiente se encontravam todas fechadas e cobertas por densas cortinas cerradas. A um canto do desolado aposento, sentado numa velha cadeira com braços de espaldar, os antebraços largados sobre as pernas, abertas em um ângulo acentuado, e a cabeça pendente defronte ao peito, o bruxo púbere e de cabelos cor de ouro, porém sujos e desgrenhados como nunca haviam sido antes, mantinha-se em um estado de profunda letargia.
— Não há nada que o Snape possa fazer por você, pequeno Malfoy, ouça bem o que lhe digo: suas horas estão contadas! – a voz de Pedro Pettigrew ressoou do outro lado da sala, onde mantinha uma espécie de sentinela à frente de uma imponente porta de carvalho maciço, o olhar maligno e amarelado, qual um abutre, aguardando pelos restos do predador.
Draco, não moveu um músculo sequer com o comentário do bruxo das trevas, aparentemente acostumara-se a este tipo de provocações, bem diferente daquele garoto altivo e empertigado que a tantos outros havia torturado, com atos de superioridade e desrespeito pelos menos afortunados, durante os anos de estudo em Hogwarts.
— Você vai ver como eu tenho razão... – continuou o bruxo atarracado –... ninguém desobedece ao Lorde das Trevas e continua vivo para dar o exemplo.
O garoto de sangue-puro continuou mudo e impassível, aguardando que estava, já há algum tempo, que seu protetor, Severo Snape, intercedesse em seu favor junto ao seu Mestre. Na verdade, o louro não sabia se realmente deveria agradecer ou não, ao seu ex-professor de Poções e Defesa Contra as Artes das Trevas, pelos favores a ele prestados: às vezes ficava imaginando que... se ele tivesse aceitado a proposta do velho diretor, de proteger a ele e à sua mãe... se Snape não tivesse ido até a torre de astronomia onde Dumbledore havia sido encurralado... talvez as coisas pudessem ser diferentes, agora... talvez houvesse alguma esperança para ele... mas... não... NÃO! Draco sabia que tinha que extirpar aqueles pensamentos de sua mente, estava prestes a ter uma entrevista com Lord Voldemort, um hábil legilimente, não poderia dar razões para piorar ainda mais a sua situação...
Seus devaneios foram interrompidos pela entrada, no aposento, do Lobo Greyback, o terrível lobisomem que, mesmo não estando em seu estado de transformação, demonstrava tamanha ferocidade, que amedrontaria até o mais valente dos bruxos. Um cheiro horrível de animal e sangue misturados sucedeu a sua entrada, e passou a impregnar o ambiente, seus olhos ferinos fixaram-se por um instante no pensativo ex-aluno de bruxaria, que se levantou abruptamente, derrubando a cadeira à qual estava sentado e escorando as costas na parede mais próxima, com um ar de absoluto terror estampado no rosto.
O meio-animal mostrou um ar de satisfação com a atitude do rapaz, mas, logo em seguida, dirigiu-se a Rabicho, que não conseguiu conter um leve tremor nas pernas, e disse, numa voz que mais parecia uma seqüência de latidos:
— Diga ao Mestre que estou atendendo ao seu chamado! Aguardarei lá fora até ele acabar com este aqui. – completou o Lobo, apontando para Draco com o polegar, os olhos repletos de maldade.
O jovem Malfoy soltou um suspiro de alívio, após certificar-se que Greyback não ficaria no mesmo recinto que ele, começou a levantar a cadeira que jazia no chão, quando ouviu novamente a voz do antigo bichinho de estimação de Rony Weasley:
— Viu? Não te disse? O Mestre vai entrega-lo ao Lobo Greyback, e você sabe como ele gosta de criancinhas...
Draco sentiu as pernas lhe faltarem, mas conseguiu apoiar-se a tempo na cadeira que manuseava, sentando-se, em seguida, com estardalhaço. Então, após um momento de indecisão e, procurando deixar seu tom de voz o mais natural possível, o garoto externou a dúvida que trazia presa ao peito desde que o homem amaldiçoado entrara no aposento:
— Pensei que o Greyback havia sido capturado em Hogwarts...
— Muito azar o seu, não é mesmo Malfoy? – a voz escachada do animago encheu novamente a sala – É muito difícil manter uma criatura, como o Fenrir, estuporada por muito tempo: ele se recuperou enquanto os vassalos de Dumbledore perseguiam a você e seu "Protetor–Snape", e retornou à Sala Precisa, fugindo pelo Armário Sumidouro!
"Muito azar... realmente!" – pensou Draco, enquanto fixava o olhar em Rabicho, tencionando responder-lhe alguma coisa, quando a porta que os separava dos aposentos de Lord Voldemort, abriu-se inesperadamente, com um rangido assustador.
Severo Snape passou rapidamente pela sentinela, de feições de roedor, sem ao menos demonstrar que percebera sua presença, sua capa enfunando-se às suas costas. Atravessou decididamente o cômodo, em direção à porta oposta, que o conduziria para fora do edifício, arriscando antes, porém, um breve olhar, sem significado e desprovido de sentimentos, endereçado ao jovem sonserino, enquanto passava por ele.
Malfoy viu sua última e derradeira esperança passar pela porta, em meio ao esvoaçar de suas vestes, ficando ouvindo ainda, logo em seguida, seus passos perdendo-se ao longe ao afastar-se e, antes que pudesse tentar imaginar se aquele olhar teria algum significado, uma voz fria e penetrante se fez ouvir pelo recinto, vinda do cômodo onde se encontrava o Senhor das Trevas:
— Que entre o moleque!
A luz do Sol, entrando pela janela, incidia diretamente no rosto do rapaz, embriagado pelo sono, obrigando-o a despertar e modificar a sua posição, que era a mesma em que havia adormecido algumas horas antes.
— Olá!!!
Harry deu um salto na cama, procurando os óculos na mesinha de cabeceira ao lado, a fim de tentar identificar o vulto que o cumprimentara de tão curta distância, embora seu subconsciente já identificasse a visita por atitudes semelhantes tomadas no passado.
— Dobby???
— Sim, Dobby senhor! Harry Potter mandou carta a Dobby, e Dobby veio ao quarto de Harry Potter para falar com ele! – disse o elfo doméstico abanando no ar o envelope enviado algum tempo atrás, onde se lia:
“Dobby. Castelo de Hogwarts - Cozinha”.
— Obrigado por ter vindo tão rápido, Dobby. – agradeceu o rapaz, sentando-se na cama e ajeitando os óculos no rosto. Deu uma olhada rápida para a gaiola de Edwiges e verificou que a coruja não havia retornado ainda: Dobby devia ter aparatado imediatamente para o seu quarto, assim que recebera a correspondência, e ficado aguardando que o garoto acordasse.
— Harry Potter quer falar com Dobby! O que Dobby pode fazer por Harry Potter? – o elfo continuava brandindo a carta como se fosse um troféu, uma das coisas mais importantes que, provavelmente, acontecera em sua vida.
— Sente-se Dobby... – disse, ao mesmo tempo em que se afastava para o lado, liberando espaço para o elfo.
De um salto, Dobby sentou-se ao lado de Harry, todo imponente pelo fato de sempre ser tratado, pelo bruxo, como um igual, mas logo mudou suas feições, com um ar de preocupação e baixando as enormes orelhas até que as mesmas ficassem apenas amparadas pelo seu peito, disse:
— Aconteceu alguma coisa ruim? Uma OUTRA coisa ruim?
— Não Dobby, pode ficar tranqüilo. Apenas quero lhe propor um negócio que será muito bom para mim, se você aceitar, é claro.
— Dobby aceita! – bradou o elfo, com as orelhas levantando rapidamente, ao mesmo tempo em que uma expressão de satisfação tomava sua fronte – Dobby aceita qualquer coisa que for boa para Harry Potter!
— Obrigado, mas primeiro você tem que saber do que se trata!
O elfo balançou várias vezes a cabeça, afirmativamente, aguardando que seu interlocutor continuasse a falar. Harry deu um suspiro, como que armazenando ar nos pulmões e, ao mesmo tempo, tomando coragem para dizer o que tinha em mente.
— Sei que você combinou com o professor Dumbledore de trabalhar como serviçal no Castelo de Hogwarts, em troca de moradia e um salário.
Novo aceno de concordância, com a cabeça.
— Com a... morte... do diretor... – a palavra, evidentemente, ainda doía ao ser pronunciada. O pequeno ouvinte também percebeu e baixou um pouco as orelhas.
— Com a morte de Dumbledore... – continuou –... você continua obrigado a trabalhar na Escola? Ou precisa conversar com a nova diretora... ou já conversou com ela...?
Dobby ficou alguns instantes em silêncio, com certeza ainda não havia pensado no assunto. Em seguida gaguejou:
— Dobby... continua... trabalhando... não falou com ninguém... Harry Potter quer que Dobby fale com professora McGonagall?
— Na verdade, Dobby... – Harry se encheu de resolução – Na verdade, eu quero saber se você quer trabalhar para mim! – em seguida passou a despejar as frases, que havia ensaiado anteriormente, todas de uma vez – Eu preciso de alguém que me ajude... de preferência um amigo, como você... Eu posso lhe pagar o mesmo salário que você recebe em Hogwarts!
Dobby balançava a cabeça freneticamente, em sinal de afirmação, as orelhas em pé e a felicidade estampada no rosto, mas, repentinamente, como se houvesse lembrado de alguma coisa muito importante, uma expressão de profunda tristeza tomou conta de seu semblante – as orelhas despencaram por completo.
Fez-se um instante de profundo silêncio, que pareceu uma eternidade aos dois, e que foi quebrado somente com o farfalhar de asas de Edwiges, que adentrou ao cômodo pela janela, e pousou com estardalhaço em seu poleiro, visivelmente mal-humorada, dando as costas à silenciosa dupla. Então, como se neste intervalo de tempo tivesse ruminado a estranha reação da pequena criatura à sua frente, Harry disse pausadamente e com voz bastante persuasiva:
— Winky também pode vir, se ela quiser... A mesma oferta que faço a você, serve para ela também!
Foi como se a noite mais negra e fria se transformasse abruptamente no dia mais claro e ensolarado jamais visto, Dobby começou a saltitar de euforia e felicidade, dizendo entre gritinhos de alegria:
— Dobby vai agora mesmo falar com Winky! Harry Potter vai gostar dela também, ela não vive mais chorando e parou de beber! Harry Potter será um amo muito bom para nós! Dobby vai falar também com diretora de Hogwarts, falar que, com a ausência do professor Dumbledore, Dobby e Winky vão servir a Harry Potter!
— Sim, Dobby, faça isso... – disse Harry, tentando ser entendido em meio a tamanho frenesi que acometia o provável empregado – Só não diga a ela, nem a ninguém, que irá trabalhar para mim, pelo menos por enquanto.
— Sim MESTRE, nem Dobby nem Winky vão falar nada! – e desaparatou sem nenhum aviso, incapaz de controlar a ansiedade que o dominava naquele momento.
Harry levantou-se e caminhou até a janela, a manhã estava bonita e ensolarada e a rua começava a dar sinais de vida, com a movimentação dos moradores se dirigindo aos seus afazeres do dia-a-dia. O Menino-Que-Sobreviveu espreguiçou-se, visivelmente satisfeito com o rumo que seus planos estavam tomando. Neste momento, olhou para Edwiges e, num ímpeto de gratidão e afeto, disse dirigindo-se à pequena ave cor de neve:
— Edwiges, sei que você é um ser mágico e inteligente, e sei também que você entende tudo que está acontecendo à sua volta. Quero que saiba que sou muito agradecido pela sua lealdade, e que também a considero como uma amiga. Tenho que modificar minha vida daqui para frente, e conto com você para me ajudar também, naquilo que estiver ao seu alcance! – terminou de dizer aquelas palavras e achou que estivesse ficando maluco ao se dirigir desta forma a um animal, mas neste momento a coruja alçou vôo até o ombro do rapaz e passou e lhe desferir pequenas bicadas no lóbulo da orelha, num visível sinal de que entendia muito bem o seu dono.
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