De volta À Toca
FAZIA UMA MANHÃ CLARA E ENSOLARADA no modesto jardim, ao lado do laguinho, que compunha a paisagem simples e aconchegante d’A Toca e, exceto por uma pequena brisa gelada que soprava e levantava algumas folhas secas pelo ar, poderia se dizer que o dia era perfeito. Ali, onde um providente feitiço havia retirado todos os vestígios do chiqueiro dos porcos que antes existia, havia sido montado um pequeno tablado com base em pedras recolhidas na região ao seu redor e coberto por um florido e perfumado caramanchão de trepadeiras.
Alguns bancos haviam sido estrategicamente posicionados à frente do singelo altar e, ao centro, distinguia-se uma estreita passagem ladeada de pequenas arvoretas, também cobertas de flores, que serviria de caminho, entre os assentos dispostos dos dois lados, até o enfeitado estrado.
Em um dos quartos ali próximo, Harry ajeitava a pequena gravata borboleta defronte a um espelho enegrecido pelo tempo, durante alguns instantes ficou a observar o reflexo de seus próprios olhos: haveria como perceber, visualmente, a enorme transformação que tivera lugar em seu interior desde os últimos acontecimentos ocorridos, e que culminaram com a morte de seu grande amigo e tutor, professor Alvo Dumbledore, pelas mãos de uma das pessoas a quem ele próprio mais detestava neste mundo?
A um observador mais perspicaz, e que tivesse profundo conhecimento das batalhas interiores travadas pelo rapaz, desde que descobrira que era um bruxo e que lhe fora revelada a tragédia que envolvera a morte de seus pais, era evidente a mudança de pensamento e atitude no jovem bruxo:
Não reclamava mais da falta de sorte que o acompanhava, roubando de si e condenando à morte todos aqueles que lhe eram importantes – havia sido assim com seus pais, com seu padrinho Sirius e agora com o ex-diretor de Hogwarts.
Quantos ainda haveriam de pagar injustamente por amarem aquele menino que era destinado a enfrentar e tentar evitar que o terrível Lord Voldemort tivesse êxito em dominar toda a raça bruxa em seu reinado das trevas? Esta era uma pergunta que não existia mais nos pensamentos do garoto, sua idéia agora era voltada unicamente a crescer e se aperfeiçoar em suas habilidades mágicas de combate, uma vez que sabia que, inevitavelmente, teria que enfrentar o seu poderoso inimigo em uma mortal disputa entre o bem e o mal e, até lá, deveria encontrar e destruir as Horcruxes em que o bruxo das trevas havia abrigado e protegido fragmentos de sua alma, a fim de retirar-lhe a vantagem da imortalidade que o havia beneficiado no primeiro encontro entre os dois, há dezesseis anos atrás e, para isso, o seu conhecimento atual de feitiçaria e encantamentos era insignificante e insuficiente.
Às suas costas Rony desfilava incansável pela pequena passarela improvisada entre as duas camas, reclamando que o colega lhe atrapalhava a visão do espelho. Pela primeira vez, o jovem ruivo havia recebido vestes novas, que iria usar no casamento do irmão mais velho e, Harry tinha de concordar, lhe haviam caído muito bem. Era um traje tipicamente bruxo: um camisolão que avançava até os pés, do tipo que Dumbledore usava, de um tom azul turquesa e com finos detalhes dourados, e que contrastava muito com os cabelos longos e vermelhos do rapaz.
— Mamãe não devia ter gastado dinheiro com este traje. – disse, tentando parecer, sem sucesso, o mais sincero possível. – Ninguém vai prestar atenção ao Gui, se eu ficar muito próximo dele!
Harry imaginou, por um instante, se seria possível, em algumas pessoas, o cérebro não acompanhar o crescimento do restante do corpo, mas foi arrancado de sua teoria por leves batidas à porta.
— A Sra. Weasley pediu que nós descêssemos e nos acomodemos para a cerimô... – Hermione, que havia aberto uma pequena fresta na porta e enfiado metade de seu rosto para dentro, a fim de transmitir o recado, parou abruptamente a frase ao visualizar, no meio do aposento, a figura imponente de cabelos cor de fogo, seus olhos emitiram uma luz de profunda admiração, mesclada com uma mal disfarçada sensação de desejo –... cerimônga ... cerimôna ... CERIMÔNIA! – completou a frase, ruborizando e batendo a porta em seguida.
— Viu o que eu disse? – gabou-se novamente o jovem bruxo, alteando-se mais ainda, a ponto de ficar quase na ponta dos pés.
Harry olhou novamente para o colega, de alto a baixo, como se fosse um testrálio, procurando enxergar algo que todos, menos ele, podiam ver. Mas com o barulho que vinha do corredor, que indicava que todos os ocupantes da casa estavam cumprindo o desejo da Sra. Weasley, abriu a porta e, com uma reverência, aguardou servilmente que o companheiro de quarto passasse, todo altivo, em primeiro lugar.
— Muito, muito engraçado, Harry! – limitou-se a dizer o jovem.
Ao chegarem ao final da escada que dava acesso aos quartos, Harry deparou-se com uma visão encantadora: Gina estava parada ao lado da porta principal da casa, trajava um vestido branco que ia até a altura dos joelhos, também com delicados detalhes em dourado, trazia às mãos um pequeno buquê de maravilhosas e perfumadas flores brancas, do mesmo tipo que compunham uma espécie de tiara que adornava seus cabelos longos e ruivos.
O garoto estancou defronte aquela visão, e agora era a vez dele perder o fôlego e evidenciar um brilho de intenso desejo e profunda admiração nos olhos semi-arregalados e, a fim de evitar um constrangedor ataque de gagueira como o que havia presenciado momentos atrás, aguardou alguns instantes antes de dizer:
— Você... não vai... agora?
— Eu e Gabrielle somos damas de honra, vamos acompanhar a noiva quando chegar a hora. – respondeu Gina, com um sorriso delicioso e que, evidentemente, percebera o efeito que causara no jovem bruxo.
Só então Harry percebeu a presença da irmãzinha de Fleur Delacour, postada ao lado de Gina e com a roupa e adereços absolutamente iguais aos da primeira.
— Que flores bonitas! – deixou escapar, com sinceridade. – E têm um perfume gostoso também!
— São camélias brancas do brejo, as minhas favoritas! Consegui convencer mamãe a usá-las... – respondeu a garota, não conseguindo evitar um leve rubor, pelo olhar avassalador que o outro lhe lançava.
O Menino-Que-Sobreviveu percebeu que talvez estivesse sendo inconveniente e, sem saber mais o que dizer, abaixou a cabeça e seguiu em silêncio para o jardim.
Apressou o passo para alcançar Rony, que levantava a cabeça e girava em todas as direções, visivelmente tentando encontrar alguém em meio à pequena multidão que se formara no acanhado espaço.
Na verdade não haviam muitos convidados, a família Weasley concordou que, devido ao pouco tempo passado desde a morte do diretor de Hogwarts, aliado aos constantes ataques de Comensais da Morte ocorridos nos últimos tempos, deveriam comparecer à cerimônia somente àqueles mais chegados à família.
Era possível visualizar, na primeira fileira de bancos, uma meia dúzia de pessoas que pertenciam à família Delacour, mais atrás alguns membros da Ordem da Fênix como: Alastor Moody, Lupin, Tonks, Hagrid – acompanhado de Madame Máxime – e a professora Minerva McGonagall e, do outro lado, posicionava-se a grande família Weasley, incluindo o pródigo Percy, que estava acompanhado do Ministro Scrimgeour e, mais atrás, nesta fileira, encontrava-se um bruxo alto, de longos cabelos louros e muito imponente, que trazia o brasão do Gringotes em suas vestes, conversando com Amos Diggory. Hermione, juntamente com seus pais – os únicos trouxas convidados, estava sentada à última fileira. Rony se encaminhou diretamente a ela, parando ao seu lado. Harry o acompanhou.
— Você está linda, Hermione! – visivelmente o ruivo havia sido traído pelo seu sub-consciente e pronunciado aquelas palavras que, com toda certeza, não tencionava que evoluíssem além de um simples pensamento.
— Muito obrigado, Ronald! – respondeu a bruxinha, entre encantada e incrédula – É muita gentileza sua, você também está... muito bem! – realmente a garota estava estonteante, com os cabelos castanhos presos em um coque sobre a nuca e ornado com uma delicada orquídea, seu vestido era bege, também na altura dos joelhos, com um generoso decote às costas e um grande laço na altura da cintura.
Como que tentando consertar o mal que poderia ter feito em um momento de descuido, o atrapalhado rapaz dirigiu-se à mãe da colega e disse, em alto e bom tom:
— A senhora também está linda Sra. Granger... e... – disse, num ímpeto, dirigindo-se em seguida ao pai da garota: –... o senhor... Sr. Granger... também! – e, dito isto, sentou-se rápida e desconcertadamente, escondendo disfarçadamente a cabeça entre as mãos.
A jovem bruxa balançou a cabeça negativamente, o olhar continuando incrédulo e, em seguida, imitando o desajeitado companheiro, apoiou os cotovelos sobre os joelhos e também escondeu a cabeça entre as mãos. Harry não conseguiu conter uma sonora risada pela cena que acabara de presenciar, mas, tentando não demonstrar inconveniência com este ato, fingiu que esta fazia parte de um cumprimento, que completou com um aceno, destinada aos Granger, e sentou-se rapidamente também, avaliando se deveria ou não imitar o gesto de esconder a cabeça, realizado pelos dois amigos.
Harry nunca havia presenciado um casamento, fosse bruxo ou fosse trouxa, mas acreditava que houvesse poucas diferenças entre ambos. Violinos enfeitiçados entoaram uma bonita marcha nupcial, enquanto adentravam pelo corredor central, primeiro Gabrielle – disparando pequenas fadinhas em todas as direções, e que soltavam pequeninas flores à sua passagem – seguida de Gina – que traçava pequenos arco-íris com sua varinha, e que iam ornamentando a estreita passagem e, finalmente, Fleur de braços dados a Gui – que usava uma bandagem a lhe cobrir o rosto.
Desde sua entrada no ambiente da cerimônia, Gina, que permaneceu durante todo o tempo próxima ao altar, sentiu que a visão de Harry estava fixa nela. De tempos em tempos, ela buscava o rapaz com os olhos e seus olhares se encontravam, no que o garoto disfarçava constrangido, mas logo em seguida, o mesmo tornava a ocorrer. Este, na verdade, não conseguiu prestar atenção em nenhuma parte do evento que, quando deu por si, já havia terminado e todos se dirigiam à cozinha d’A Toca para o almoço.
Durante quase toda a refeição, “o Eleito” e Hagrid permaneceram juntos (Madame Máxime ficou a maior parte do tempo cochichando com a professora McGonagall), aparentemente um se encontrava muito preocupado com o outro, e vice-versa, em como estavam se comportando com a sentida ausência de Dumbledore.
— Independente de qual for o futuro de Hogwarts – dizia o meio-gigante entre uma garfada e outra –, quero que me procure se precisar de alguma coisa!
— E vou procurá-lo Hagrid, bem antes do que imagina! – respondeu o garoto, como se já existisse um motivo escondido em suas palavras.
O guarda-caça mirou por um instante o semblante do rapaz, tentando perceber alguma frase que perdera durante o diálogo, mas, como não conseguira dar um sentido diferente, daquele que ouvira, às palavras do amigo, concordou satisfeito.
— Posso lhe dar uma palavrinha, Potter? – a voz da professora McGonagall, que havia terminado sua sobremesa, se fez ouvir do outro lado da mesa.
— Claro. – disse levantando-se, uma vez que também terminara de comer.
A nova diretora de Hogwarts se levantou e dirigiu-se à porta principal, saindo ao quintal da casa, no que foi seguida de perto pelo rapaz.
— Harry – disse ela virando-se, assim que haviam se afastado um pouco do edifício –, como bem sabe, você deve voltar para a casa de seus tios e lá permanecer até completar a maioridade. – fitou os olhos do rapaz aguardando, talvez, algum sinal de rebeldia.
— Hum-hum... – concordou o jovem, aparentemente resignado.
— Quando chegar a hora, alguém deverá buscá-lo, por favor, permaneça em segurança até lá.
— E para onde vão me levar, para a sede da Ordem?
— Acredito que sim, Harry. Provavelmente será o lugar mais seguro para você. – concordou a velha bruxa.
— No Largo Grimmauld? – quis se certificar o rapaz.
— Não! – a mulher levantou uma sobrancelha, em discordância. – Na verdade, Harry, desde o... ocorrido... com Alvo, nós retiramos a sede da Ordem da mansão dos Black, visto que... Snape... tinha conhecimento do segredo do fiel...
— Entendo... – limitou-se a dizer, mas seu pensamento voava longe.
— Tem uma outra coisa que quero lhe dizer, Harry. – pela segunda vez a professora o tratava pelo primeiro nome – Existem alguns objetos pessoais de Alvo, que achamos que seria o mais correto distribuí-los entre seus amigos, como uma forma de lembrança.
— E... – respondeu, monossilábico.
— Bem, como vocês dois eram muito próximos, principalmente no último ano, gostaria que você fosse o primeiro a escolher alguma coisa, não tenha pressa, depois distribuiremos o restante entre os demais.
— Muito obrigado, professora Minerva, assim que pensar em algo eu lhe procurarei. – esforçou-se para não demonstrar muita emoção.
— Excelente, Potter! – exclamou a nova diretora, visivelmente satisfeita com o ar de tranqüilidade da conversa. – Ao amanhecer alguém virá buscá-lo para seu retorno à casa dos Dursley. – e, dito isto, retornou para o interior da casa.
Harry permaneceu parado ali, repassando a conversa que acabara de ter com a professora McGonagall, quando sentiu um delicioso perfume de... camélias. Pensou que estava imaginando coisas e, preparava-se para olhar ao seu redor quando ouviu uma voz muito conhecida dizer:
— Você pode enganar muita gente com este seu jeitinho resignado, mas não a mim!
Ele se virou e deparou-se com a caçulinha Weasley, que ainda mantinha a bela tiara de flores envolvendo os cabelos, e um certo ar de desafio no olhar.
— Não tenho nenhuma intenção de te enganar, Gina. – sua voz tremia, tinha receio de não conseguir sustentar o que dissera à ruivinha no funeral de Dumbledore.
A pequena desmontou a pose ao ouvir aquela resposta tão sincera, aproximou-se rápido e abraçou-o com força, apertando sua cabeça contra o peito dele.
— Eu sei, Harry, e quero que você saiba que não preciso ser sua namorada para querer estar ao seu lado neste momento que se aproxima. – desabafou, meio que choramingando – Quero que saiba que pode contar comigo da mesma forma que conta com o Rony e a Hermione. – virou a cabeça e fitou-o nos olhos – Vou ficar muito triste se me deixar de lado nisto também! – sua voz, nesta última frase, já não mostrava o ar de choro e acentuava o temperamento forte da menina.
— Pode ficar tranqüila. – respondeu apertando, com uma das mãos, novamente a cabeça dela contra seu peito e depositando-lhe um leve beijo na testa – Se existe alguém neste mundo que eu sei que posso contar, é com você!
— Você não pretende realmente ir para a nova sede da Ordem não é? Sabe o que vai fazer? – continuou, aproveitando o aconchego dos braços do bruxinho.
— Não, não pretendo ir, mas não se preocupe: manterei vocês informados e...
— Que é que está pegando? – a voz em coro dos irmãos Fred e Jorge ressoou nos ouvidos do casal, sobressaltando-os.
— Nada! – Gina apressou-se a responder – Estava me despedindo do Harry, ele vai embora amanhã cedo. – e disparou para dentro da casa.
— É mesmo Harry?... Que chato!... Pensamos que íamos poder... trocar uma idéia... sobre o seu investimento... em nossa empresa. – disseram os gêmeos, alternando a vocalização das frases entre eles.
— É... realmente... muito chato... muito chato mesmo... – concordou o rapaz, tinha acabado de se lembrar que apenas Rony, entre os integrantes da família Weasley, sabia do namoro que existira até há pouco tempo entre ele e Gina. E, deixando os gêmeos com a forte impressão de que estava realmente muito chateado por não poder conversar de negócios com eles, Harry também retornou ao interior da casa.
A manhã seguinte nasceu bem mais feia que a anterior, o céu estava encoberto e aquele vento gelado continuava a soprar. O dia ainda estava clareando, mas Harry e o Sr. Weasley já haviam tomado o café da manhã servido pela Sra. Weasley, só os envolvidos na escolta do rapaz estavam acordados, pois Harry havia se despedido dos demais na noite anterior.
— Vamos logo, Harry! – apressou-o o Sr. Weasley, saindo em direção ao quintal – Pois teremos que viajar como os trouxas, para evitar suspeitas.
O rapaz recebeu um último e forte abraço da Sra. Weasley e saiu para o simplório hall de entrada da grande casa, procurando alcançar Arthur Weasley. Porém, assim que realizou o contorno da parede, deparou-se com Gina, de pés descalços e olhar meio sonolento e que, aparentemente, estava escondida por ali esperando uma oportunidade para falar com o garoto.
— Que? – espantou-se, apesar de ficar satisfeito por mais uma oportunidade de ter com a menina.
— Escute, Harry: ontem à noite ouvi meu pai falando com o Lupin que eu e Rony não iremos para a sede da Ordem como no ano passado, eles vão lançar o feitiço Fidelius n’A Toca para que possamos passar as férias aqui mesmo, então preciso saber como te enviar o endereço mágico, caso você saia da casa de seus tios antes de irem te buscar. – a ruivinha respirou fundo, tentando recobrar o fôlego após o pequeno discurso realizado.
Ouviu-se chamarem-no lá fora novamente, e a Sra. Weasley fez barulhos na cozinha, parecendo que se encaminhava para um último aceno.
— Hagrid! – disse rapidamente e, num rompante incontrolável, curvou-se para a menina e deu-lhe um breve beijo nos lábios, saindo correndo, em seguida, para o frio do alvorecer, onde o esperavam Tonks, que levitou seu malão e demais pertences com um toque de sua varinha, e Lupin, que olhava o céu ao redor, procurando por algum perigo invisível.
O pequeno grupo já se encontrava a uma considerável distância d’A Toca, quando Harry se virou para dar uma última olhada naquele local que tantas vezes o acolhera, na porta de entrada viu a silhueta de Molly Weasley acenando e, um pouco mais além, atrás de uns arbustos, reconheceu um vulto de cabelos cor de fogo que, aparentemente, mantinha uma das mãos sobre os lábios.
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