Parte III - De volta à terra d

Parte III - De volta à terra d



Na manhã seguinte, Sarah tentou agir como se nada tivesse acontecido. Era o dia da festa de Natal das crianças da Fundação em que ela trabalhava. Por isso, logo cedo, a campainha disparou.
Os Laurent vinham participar da festa, trazendo consigo muito mais que animação, foi o que John logo percebeu. Cheios de sacolas em embrulhos, isso sem falar nos bolos e doces que estavam no carro lá embaixo... Porque Beatriz ainda trouxera “um petisco” para o almoço de todos, que alimentaria a um batalhão inteiro, nos dizeres de Sarah.
- A senhora é mesmo exagerada, mamãe! – ela ria, enquanto colocava à mesa o que fora trazido.
- Eu não vou reclamar – John comentou, beliscando um dos pratos e recebendo de Beatriz um tapinha na mão, enquanto notava a sutil observação de Martinho quanto ao quarto ocupado pelo hóspede da filha. Mas não deu a perceber que vira seu gesto de pai preocupado.
Após o almoço rápido, um pouco mais cedo que o de costume, para não se atrasarem, depois de muitos risos e conversas, eles partiram para o local da festa.

John estava curioso a respeito desta instituição. No caminho, Sarah descrevera, entusiasmada, o seu funcionamento. Duas freiras, Sofia e Bernadete, tomavam conta de tudo, mas há muito, a casa deixara de ser administrada pela Igreja. Uma “ONG” (e ele deixou para depois as indagações sobre o que seria isso) administrava as finanças, o recrutamento de pessoal, as campanhas para arrecadar mais fundos...
Sarah fazia parte de uma equipe de voluntários, que atuava diretamente na parte pedagógica e de acompanhamento das crianças.
- São todos órfãos? – John perguntou.
- Não. Temos também uma creche casulo. Você sabe o que é, não? Um lugar para as mães deixarem as crianças, enquanto trabalham. Mas não se preocupe, nada a ver com Oliver Twist.
- Oliver... o que?
- Deculpe... às vezes esqueço de sua amnésia. – ela lhe sorriu – Um clássico da literatura inglesa, talvez depois você se lembre de ter lido.
John pensou por um minuto que duvidava que conhecesse algum título semelhante, mas não disse nada.
Sarah já passava por um portão largo, estacionando em um pátio rodeado por um jardim florido.
Logo, foram rodeados por crianças de todas as idades, que falavam sem parar, e era quase impossível caminhar. Uma garota de presumíveis 8 anos de idade abraçou Sarah pelas pernas.
Sarah, ao invés de se sentir tolhida, riu com vontade e se abaixou para abraçá-la direito.
- Então, mocinha. Quais as novidades? – ela perguntava, dando um peteleco no nariz da garotinha morena e franzina.
- Ah, tia! O Leo aprontou de novo, acredita? Foi parar em cima do telhado. Irmã Sofia pensou que ia ter de chamar os bombeiros pra tirar ele de lá...
- Verdade? – ela se voltou para um garoto um pouco menor, de cabelos castanhos e levemente cacheados, que sorria com cara de inocente, mas era notório seu jeito sapeca de quem se finge de santo – E como o senhor me explica isso, senhor Leonardo?
- Num sei... – o garoto deu de ombros num gesto gracioso – Só sei que queria pegar o papagaio e... subi lá.
- E depois não sabia como descer, hein? Que nem aqueles gatinhos de desenho animado, não é?
Sarah se divertia com o relato das travessuras do pequeno Leo, que John descobriu ser o irmão mais novo da garota, chamada Aline. Os dois eram tão diferentes!
- São filhos de pais diferentes – Sarah explicou, depois que a garotada correu para recepcionar quem chegava no outro carro – A mãe leva uma vida que até Deus duvida... Tem mais três filhos, já bem maiores. Mas que não estão mais com ela, também. Uma filha se casou, ainda adolescente... Os dois garotos, não sabemos. Mas, estes dois – ela tinha um ar triste e preocupado – não vamos deixar soltos por aí não!
Seu tom determinado fez com que John a encarasse, ainda mais curioso. Viu que ela claramente pretendia tomar os garotos sob sua responsabilidade, e até já movimentava os recursos para isso, sem dizer nada a eles, evidentemente, para não gerar uma expectativa prematura.
Mas já estavam de novo dentro daquela roda de crianças, que o incomodava ligeiramente. De uma coisa tinha certeza: não gostava de crianças, pelo menos não de tantas assim, juntas no mesmo lugar e ao mesmo tempo.
Enquanto tudo era ajeitado, as crianças já mais calmas – como se fosse possível chamar aquele alarido de calma – ele observava Sarah e seus familiares, que agora se juntavam também a um outro grupo já presente no grande salão cheio de mesas e cadeiras coloridas.
Por um momento, pensou estar vendo outro salão, maior e imponente, com mesas muito compridas e velas suspensas e teto transparente... mas aquilo era loucura. Então, concentrou-se em observar o ambiente real, à sua volta. Mesas eram tiradas do lugar, cadeiras colocadas em fileira, um palco era ajeitado. A um canto, uma grande poltrona, ladeada por embrulhos de presentes, aguardava o visitante mais esperado do dia: Papai Noel. Claro, papel destinado a ninguém menos que Martinho Laurent, que já se vestia numa salinha anexa.
- Estou ficando um autêntico São Nicolau – ele dizia, enquanto treinava um alegre “hohoho”.
John tinha a impressão de nunca ter trabalhado tanto, tinha a nítida impressão de que havia um modo mais fácil de fazer aquilo, embora o método “formiguinha” funcionasse muito bem... mas ajudou sem reclamar a arrumar a mesa do jantar especial das crianças, que seria no jardim.
- Ainda bem que o tempo está bom, sem chuva, ou teríamos que mudar nossos planos – foi o comentário de Paula, a pedagoga responsável, uma mulher jovem, de no máximo uns vinte e cinco anos, pelos cálculos de John.
- Você está certa, Paulinha. Ia ser um estrago... – Berê ria, feliz, enquanto arrumava uma penca de balões numa pilastra – Seus meninos estão aí?
- Não. Deixei com mamãe, ou eles não iam me dar sossego. Mas ela chega com eles mais pra hora da festa.
- Que legal. Eles são uma gracinha!
- Ah, e estão loucos pra ver o “Papai Noel da creche”. O do shopping, eles disseram que era falso, acredita nisso?
Enquanto as mulheres riam, John notou que uma ou outra criança tentava escapulir das salas de aula ou de brinquedos em que estavam, para espiar os preparativos.
Mas Sarah resolveu lhe mostrar todo o lugar. Começou pelos quartos, a essa hora vazios, onde beliches bem arrumados e paredes enfeitadas lhe chamaram a atenção. Os maiores, os “internos”, logo chegariam da escola pública em que estudavam, nas proximidades. Aí, sim, começaria a festa.
As irmãs de caridade, já bem idosas, mas nem por isso menos animadas que as “jovens voluntárias”, sorriam com alegria e orgulho ao lhe mostrar a cozinha, lavanderia, tudo limpo e organizado ao extremo.
Depois, passaram pelas salas dos pequenos, e na sala de estudos onde estavam os que tinham aula pela manhã. Lá, encontraram Aline, que fizera um desenho de sua família, e mostrou alegre para Sarah.
John ficou em silêncio, notando as lágrimas que se formaram rapidamente, quando ela percebeu que fora retratada pela garota, no lugar da mãe. O desenho mostrava Sarah, ladeada por Aline e Leonardo, num parque todo florido e cheio de animais, alguns exóticos e estranhos. Ela se recompôs logo, conversando com as outras crianças, e neste meio tempo, Berenice apareceu, chamando-os para o salão.
Lá, tudo já estava pronto. No palco enfeitado com faixas e balões coloridos, alguém já estava a postos com um violão, tocando e cantando, enquanto as crianças tomavam seus lugares, orientadas pelas professoras e outros voluntários que, vestidos de palhaços e outros personagens infantis, cantavam e faziam gestos acompanhando a letra da música.
E a festa começou, afinal. Músicas, encenações, poesias... e o fecho com a entrada do tão esperado Papai Noel. Martinho estave irreconhecível, sacudindo uma barriga aumentada por almofadas e dando risadas bem-humoradas.
A gritaria foi geral, mas logo todos se aquietavam, esperando que o nome de cada um fosse pronunciado pelo “bom velhinho”, para ir receber o seu presente.
Sarah, radiante de alegria, ajudava ao pai, junto com Berenice.
Depois, o jantar, mais festa, mais alegria, e quando partiram dali, estavam todos cansados, mas felizes.
No carro, dirigindo em silêncio, Sarah estava mais pensativa do que o de costume, e John perguntou o que a preocupava.
- Ah, aqueles dois... Eu queria conseguir logo a adoção definitiva, ou pelo menos a guarda provisória, enquanto espero... assim, poderia levá-los pra casa.
- E isso é muito difícil? – John perguntou.
- Mais ou menos. A burocracia é muito grande, a Justiça muito morosa... e ainda tem o fato de os dois terem mãe viva... embora de vida completamente irregular. Claro que ela os abandonou completamente, além do histórico de maus tratos. Mas estou mais preocupada, porque eles têm apresentado algumas dificuldades... essa história do Leo ir pra cima do telhado, por exemplo... e a Aline também faz coisas estranhas, às vezes. Parece que atrai acidentes...
- Acidentes? – John ficou curioso e inquieto, sem saber porque.
- Sim. Com fogo, principalmente. Se bem que... eu também era assim, quando criança. Minhas professoras costumavam brincar que ainda bem que meu pai era bombeiro.
O tom de brincadeira não enganou John, ela realmente estava preocupada.
- O Leonardo, tudo bem, eu entendo em parte. Ele está com um acompanhamento especial agora, tem diagnóstico de hiperatividade... Mas a Aline é tão tranqüila, e ainda assim...
Mas ela interrompeu a conversa, a estrada estava movimentada, exigindo sua atenção. E estavam todos loucos pra chegar em casa... Seus pais estavam no carro à frente, de vez em quando Berenice mexia com eles pelo vidro traseiro, como uma criança.

Chegando em casa, Martinho logo arrastou John para a biblioteca, e Sarah se despreocupou dele. Nem se lembrava mais do ocorrido na véspera.
No dia seguinte, porém, Berenice sem querer tocou num assunto que despertou a inquietação de ambos novamente.
- Sabe, amanhã vai passar um filme com Alan Rickman na tv. Ele está sem a barba, mas mesmo assim ainda está parecido com você, acredita? Ah, e tem uma porção de gente na cidade querendo te conhecer...
- Por uma porção de gente... – Sarah comentou, tentando parecer despreocupada – Devemos entender algumas assanhadas que ficaram curiosas porque minha irmã querida falou mais do que devia...
- Bem... – Berenice riu, meio sem jeito – Você sabe como são essas coisas... saiu sem querer...
- Sei... “sem querer querendo”....
A outra piscou, mas John estava sério, embora tranqüilo, aparentemente. Em algum lugar de sua mente havia o registro de que dissimular as emoções era coisa natural para ele.
- E, voltando à vaca fria... que filme é esse?
- Ah, o primeiro da série Harry Potter. Os meninos da Helena estão loucos pra ver, só falam nisso. Como se já não tivessem assistido um zilhão de vezes....
- O... primeiro? – ele conseguiu perguntar.
- Sim.”Harry Potter e a Pedra Filosofal.” Vocês nunca ouviram falar? Onde vocês dois estavam nos últimos anos? Em Marte?
John e Sarah trocaram um olhar de mútuo entendimento. Não perderiam aquele filme de jeito nenhum!

À tarde, como Berenice previra, a toda hora tinha uma antiga colega ou amiga de Sarah querendo “revê-la”, mas na verdade, já corria pela cidade o boato de que ela tinha trazido um “namorado estrangeiro” para casa, que era “a cara do Alan Rickman”.
Ele estava quase se divertindo com a situação, só por vê-la tentando explicar que eles não eram namorados nem “nada parecido” para se arrepender em seguida porque as tais amigas não paravam de “assediá-lo”.
Martinho acabava por dar grandes risadas a cada vez que uma das tais amigas ia embora, deixando Sarah bufando de raiva. E John se deixava contagiar por sua risada aberta. Sarah, então, não tinha remédio senão rir também.
- Sabe de uma coisa? – ela disse por fim, depois da quinta ou sexta “colega de escola” ter se despedido relutante – daqui por diante, Sr. John Smith, temos compromisso sim, ou você não vai conseguir sobreviver a esse bando de sirigaitas metidas....
A risada de Martinho soou mais forte ainda, fazendo até com que Beatriz viesse correndo da cozinha pra saber o que estava acontecendo.
E Berenice foi jurada de morte pela irmã adotiva pela décima vez no mesmo dia, coisa que não acontecia desde os tempos em que ambas cursavam o ensino médio.

No dia seguinte, além de Neuza, marido e filhos, Felipe também chegou para o almoço, fazendo a velha Beatriz exultar por ver a família quase toda na mesa outra vez.... e nem era Natal, ainda.
Felipe e Sarah se fitaram em silêncio, como que se perguntando quem contaria que André não viria afinal...
Após o almoço, os homens conversavam na varanda favorecida pela sombra de uma trepadeira florida. Sarah se aproximou, sentando-se, como sempre fazia, no braço da cadeira de seu pai. Ele resolvera contar sobre o dia em que a encontrara.
- Foi um dia difícil aquele. Trabalhamos demais para conter aquele incêndio. Ele parecia sobrenatural, não apagava nunca. Acreditávamos, pelo menos, que não havia ninguém no local, não havia vítimas. Então, do nada, comecei a ouvir um choro forte de criança. Parecia que só eu ouvia, talvez favorecido pela posição em que estava e pela direção do vento. Vinha da lateral do terreno, quase no meio do foco do fogo. Fui até lá, meio receoso até de estar imaginando coisas... e então a encontrei.
Ele olhou para Sarah, os olhos se enchendo de lágrimas.
- Lá estava ela, pequenina, envolta numa manta preta, nunca vi uma criança em algo assim. Estava nos braços de uma mulher estranha, roupas esquisitas, parecia uma dessas mendigas de rua. Se era sua mãe,nunca soubemos, mas duvido sinceramente que fosse. Estava morta, e não trazia nenhuma identificação.
- Por que está lembrando disso agora, pai? – Sarah perguntou num sussurro.
- Estávamos comentando sobre o fato de John ter sido salvo de um incêndio, e achei uma coincidência muito grande. Como se você tivesse essa dívida para com ele: foi salva de um incêndio, então tinha que salvar alguém. Ação e reação, carma, coisas assim...
- Mas não fui eu que o tirei do incêndio, pai, não sou do Corpo de Bombeiros.
- Mas é você que o está acolhendo, enquanto ele não encontra seu lar verdadeiro, não é? – Martinho exclamou com veemência, e Sarah reconheceu que não adiantava discutir com ele quando falava daquele jeito.
Martinho continuou:
- Pois é, meu caro. Quase não conseguimos salvá-la. Naquela época, era mais fácil ficar com uma criança. Hoje, a burocracia é bem maior. Mas tínhamos Berenice praticamente da mesma idade, e peito que amamenta uma, amamenta duas, não é, minha velha?
Beatriz, que também viera para a varanda, concordou com um sorriso enlevado, como se recordasse as crianças aninhadas em seu colo, mamando sossegadas.
John os fitou com curiosidade. Para eles, era natural acolher, aconchegar, socorrer. Que gente singular!
- Sabem? Vou falar a respeito com o Antônio, quando for à Associação. Ver com o pessoal da Prefeitura. Aquele lugar deveria ser condenado e interditado permanentemente. Vira e mexe tem um incêndio ali, que coisa esquisita – Martinho comentou, meio alheio.
- Como assim, pai? – Felipe indagou, curioso – Que lugar?
- Ora, não foi naquele incêndio da fábrica de fogos que vocês acharam nosso amigo aqui? No final de outubro? – ele bateu no ombro de John - pois então! Enquanto estava de serviço, vi muitos incêndios naquele lugar, sempre longos e difíceis de apagar. Inclusive, foi lá que encontrei Sarah. Vocês não sabiam? Que foi no mesmo lugar?
Todos os presentes se olharam, cada qual tomado por uma impressão diferente e estranha. Aquela revelação era a mais surpreendente que poderiam escutar. Claro que os filhos já estavam acostumados com os casos mirabolantes, alguns verdadeiramente engraçados, outros dramáticos, que o pai contava de seu tempo como oficial do Corpo de Bombeiros. Mas essa... ninguém esperava.
Ver juntos dois sobreviventes de incêndios diferentes ocorridos num mesmo local, era muito pra qualquer um.
- Parece... magia – Berenice comentou, depois de algum tempo – Eu, hein? Que coisa esquisita. O senhor fica contando essas histórias, e depois reclama que o povo o chama de “macumbeiro”...
- Mas é verdade! Foi no mesmo lugar! Volta e meia, tem incêndio ali, se você quiser confirmar é só ir à associação pra consultar os arquivos....Eles guardam até fotos, para comparação dos casos.
- Não precisa, pai. Nós sabemos que é verdade. Eu já tinha percebido a coincidência, só não comentei com a Sarah porque não houve oportunidade.
John olhou para Felipe e teve a nítida impressão de que havia mais alguma coisa que o médico ainda não tinha revelado para a irmã sobre seu caso. Mas evitou sondar sua mente, não queria fazer disso um hábito.
Beatriz, com sua sabedoria maternal, conduziu a conversa para outros assuntos, e aquilo foi esquecido por enquanto.
Felipe também se admirou quando,na biblioteca, viu como John e seu pai conversavam sobre as plantas e suas propriedades. O inglês desmemoriado era profundo conhecedor de farmacologia e botânica. Ele e Martinho chegavam a discutir sobre alguns efeitos de certos espécimes, como se fossem dois farmacêuticos em um laboratório de testes.
Sarah ria da reação do irmão, mas por fim comentou que estava achando aquilo ótimo, pois forçava a memória de John a se revelar naturalmente. E que Edmundo na certa gostaria de saber disso.

Mas chegou a hora do tal filme na tv. Os filhos de Neuza haviam teimado em assistir na casa do avô, o que inquietou Sarah um pouco.
Estava desconfiada de que o filme realmente abalaria John de alguma forma, e temia que ele tivesse alguma reação estranha que assustasse sua família. Comentara o mais sutilmente possível com Felipe sobre a reação dele ao nome Harry Potter, e o médico lhe prometera ficar atento para qualquer situação que pudesse fugir do controle.
Então, o filme começou.
John permanecia calado, atento à tela, já tranqüilo para acompanhar a dublagem, pois aprendera o português inteiramente com rapidez impressionante.
Sarah mais olhava para ele do que para o filme em si, tentando estudar cada uma de suas reações.
Então, aconteceu. Harry perguntava ao colega do lado quem era aquele professor... que o encarava de volta... o ator Alan Rickman, Sarah reconheceu de pronto, mas...
- Nossa, se o “seu” John tirar a barba, fica mesmo a cara do Professor Snape, não é, tia Sarah?
A fala do filho de Neuza teve o efeito de uma bomba para o homem sentado no sofá atrás do garoto.
Sarah respondeu qualquer coisa para o garoto, olhando da tela para o rosto de John. Mas este estava impassível, fixo na tela.
Na seqüência das cenas, a primeira aula de poções de Harry Potter... e John praticamente balbuciou todas as palavras da fala do tal professor Snape...como se já as conhecesse de cor e salteado.
Sarah, atenta a ele, percebeu, mas não disse nada.
Ao final do filme, com todos comentando a mesma coisa, John sorriu dizendo que iria distribuir... como eles chamavam mesmo? Autógrafos, isso, depois do lanche que a “Vó” Beatriz preparara.
E acabara por arrancar dos garotos a promessa de que eles levariam os livros para ele no dia seguinte, sim, eles tinham todos os seis, Neuza comprara o último naquela semana mesmo.
- Você vai ter uma semana cheia, meu amigo – Martinho bateu em seu ombro – seis livros para ler.
- Acho que vai ser uma experiência... esclarecedora – ele comentou apenas.
E não deu mais nenhum sinal de que havia sofrido algum abalo com o filme.

Na manhã seguinte, ele se mantinha tranqüilo. Por nada no mundo diria a Sarah que passara a noite praticamente em claro, relembrando cada cena do filme, tentando puxar mais alguma coisa da memória, em vão.
Quando Eduardo, o sobrinho de Sarah de dez anos, chegou lhe trazendo os livros como prometera, ele teve que se conter para não se retirar para o quarto no mesmo instante, tão ansioso estava por conferir a história escrita.
E a semana inteira, ele se dedicou a ler os livros, um por um. Sarah resolveu acompanhar sua leitura, e conseguiu de um amigo dos sobrinhos os livros emprestados. Queria ler ao mesmo tempo que John, sem ter que lhe pedir os livros. Então, na sexta-feira, eles se sentaram sozinhos na varanda, e ele finalmente falou a respeito.
- Você leu também, não foi? – e ao sinal afirmativo, indagou – E então? O que achou?
- Bem... gostei dos livros, mas... aonde exatamente você quer chegar?
- Você pode achar que estou louco, mas cheguei a uma conclusão: Sou Severus Snape, o antigo mestre de poções da escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.
- John... isso não tem cabimento! Esses livros são obras de ficção!
- Como você pode ter certeza? – ele a fitou com profundidade – Seu pai repete sempre que “há mais...
- ... mistérios entre o céu e a terra do que pode prever a vossa vã filosofia”... eu sei, mas...
- Quer que eu prove?
Então, sem que ela imaginasse o que faria, ele retirou a varinha, pois agora sabia, aquilo era uma varinha, a SUA varinha, e exclamou:
- Lumus!
A ponta da mesma se acendeu.
Ele exclamou: “Nox” e ela se apagou, e ele fitou Sarah.
- Este é o feitiço mais simples que eu posso fazer, mas se você quiser, faço um de transfiguração... deixe-me ver...
Ele apontou para as graciosas pantufas que ela usava e as transformou em dois coelhos rosados que começaram a correr pela varanda.
Sem saber o que dizer, Sarah o fitava, completamente aparvalhada.
- Eu também posso fazer você flutuar de ponta-cabeça, quer ver? Levita...
- Não! Chega, já entendi. – ela segurou seu braço – Por mais que possa parecer loucura, eu acredito em você mas... duas perguntas.
- Sim?
- Sua memória. Voltou, ou você apenas concluiu pelos livros?
- As duas coisas. As lembranças foram voltando à medida que eu lia, e confesso que foi interessante saber de mim mesmo por outro prisma, me ajudou a entender certas... coisas. Mas minha memória ainda não voltou integralmente. E qual a outra pergunta?
- Como você veio para aqui, se é mesmo um bruxo?
- Isso, realmente, não sei. Esta parte da memória teima em não voltar. Lembro-me da fuga de Hogwarts, como está no último livro – ele silenciou um tempo – Sei que sou considerado traidor e assassino e que aqui – ele apontou para o braço onde a leve mancha persistia – existia mesmo aquela tatuagem que você viu no tal site, a “marca negra”. Mas como ela saiu daqui e o que aconteceu depois, não me recordo bem ainda. Apenas fragmentos. Não sei também como fui parar no meio daquele incêndio... ainda.
- Entendo... – Sarah murmurou
- O mais surpreendente – ele continuou – é que parece existir um lapso de pelo menos 8 anos entre estes acontecimentos e o momento em que estamos... e isso é o mais difícil de entender...
De repente, ele riu. Então, olhou pra ela com expressão estranha e perguntou:
- Eu sou tão feio como a tal de JK descreve?
- Claro que não! – Sarah respondeu de pronto. Depois, estendeu a mão, brincando com os cabelos dele que haviam crescido mais um pouco e já batiam nos ombros – Pode ser por estar lavando-os com mais freqüência, mas seus cabelos não são tão oleosos, sua pele não está mais tão... branca, você está meio rosado pelo sol e não acho que seja macilento... e... nem seu nariz é tão grande! Isso é excesso de liberdade literária da parte dela!
A risada dele cortou o ar, mas ele logo ficou sério.
- E você me acha tão mesquinho e rancoroso como diz nos livros?
- Bom... você tirava mesmo pontos da Grifinória, assim, por nada?
Ele a fitou de um jeito estranho... e Sarah achou melhor nem saber a resposta, mas continuou:
- Bem... digamos que o Snape dos livros precisa mesmo de um bom terapeuta! Mas os livros são escritos pelo prisma de um garoto que antagoniza com o professor desde o primeiro instante... Claro que a relação entre eles é meio tumultuada, me parece que o Snape... – ela olhou para ele – não enxerga o garoto exatamente como um garoto.
- Você ainda não acredita que eu sou Severo Snape... – ele constatou – ainda acha que é loucura minha afirmar isso...
Sarah ia responder, mas a voz de sua mãe se fez ouvir, vinda do outro lado da casa:
- Martinho, tem um par de coelhos correndo pelo quintal! Olha lá, eles vão pra minha horta! Vão comer tudo!
Dali a pouco, a voz de Martinho dizendo que ela devia estar sonhando, que não existiam coelhos soltos pela cidade, e ela insistindo, mesmo não conseguindo mais ver os bichinhos.
- Acho melhor dar um jeito nisso – “Snape” comentou, antes de erguer a varinha e exclamar – Accio coelhos!
No mesmo instante, os coelhos estavam no colo da Sarah. Ele apontou novamente a varinha, e eles voltaram a ser um inocente par de pantufas rosadas, embora agora ostentassem um par de orelhas.
- Assim fica mais... fofinho. – ele disse, rindo.
- Bom, duvido que o Snape dos livros fizesse algo parecido... – Sarah comentou – Se você é ele, então mudou sensivelmente... e pra melhor – apressou-se em completar.
- Realmente. – ele sorriu – Mas acho que a dose maciça de “família” que tive convivendo com vocês mexeu mais comigo do que se tivesse ficado um ano agüentando os Weasley...
- Os ruivos... a família de cabeleiras flamejantes que você falou!
- Sim. – ele suspirou – Arthur sempre me pareceu um louco... Sete filhos! Na condição dele!..
- E... agora? – ela se forçou a perguntar – O que você pretende fazer?
- Esperar. – ele disse por fim – Manter posição e aguardar os acontecimentos, pelo menos até conseguir me lembrar do que falta. Não sei exatamente qual minha posição atual, embora tenha a impressão de que o Lord das Trevas foi destruído, ou esta história não teria vazado para o mundo trouxa como vazou, através desses livros... Não sei se ainda sou procurado pelo assassinato de Dumbledore...ou se já fui condenado e estou fugido... não consigo me lembrar de coisas excepcionalmente importantes.
- Mas... – Sarah soltou um longo suspiro – a mim pareceu que era tudo um plano... quer dizer, pelo desenrolar dos livros, o Snape... você... me pareceu um agente, um espião sempre colocado ao lado do inimigo em situação estratégica.
- Mas de qual lado eu estaria realmente? Você conseguiu concluir?
- Bom... isso só você pode me dizer mas... entrei hoje na Internet, fiz umas pesquisas...
- E...?
- Encontrei um fórum sobre... Harry Potter... onde muitos questionam isso e consideram que você agiu o tempo todo sob as ordens de Dumbledore. Vi tópicos com títulos como “Prova definitiva da inocência de Snape”...
- É mesmo? – ele sorriu – Isso me faz sentir melhor. Parece que os trouxas vêem coisas que os bruxos não enxergam nem debaixo do próprio nariz – e olhou para a ponta do seu nariz, por um momento pensando que aquela tal de JK tinha exagerado sobre o seu tamanho...
Sarah o observou com certa tristeza. Não queria pensar muito no assunto, mas aquilo tudo ainda parecia loucura, mesmo ainda segurando suas pantufas, com o receio tolo de calçá-las e levar uma mordida.
- Garanto que não há perigo. São apenas pantufas agora. – ele a tranqüilizou, e Sarah reagiu.
- Você podia pelo menos deixar de usar essa... legilimência, é isso? Pois é, você podia parar de usá-la em mim, por favor?
- Tudo bem, eu prometo. – ele ergueu a mão, intimamente se divertindo com isso – Ah, e acho que não precisa continuar a me chamar de John. Pode ser Severus, daqui pra frente.
- Está bem. Eu vou tentar... mas isso vai ficar esquisito...
- Ah, diz que é só uma brincadeira, porque eu pareço com o tal de... Alan Rickman...
- É, vamos ver no que dá.

No dia seguinte, ele comentava risonho à mesa do café que Sarah o achara tão parecido com o cara do filme, que ele agora atenderia pelo nome de Severus Snape. Que, sinceramente, soava bem melhor do que “John Smith”, concluiu.
A explicação pareceu agradar aos outros, e ficou por isso mesmo, para alívio de Sarah. Martinho chegou a afirmar contente que então poderiam conversar muito mais sobre as plantas medicinais e suas propriedades, já que ele era mesmo um expert em poções... mas passou a chamá-lo simplesmente de “Professor”.
Seus sobrinhos, quando eles foram pessoalmente devolver os livros, é que gostaram da novidade. Iriam dizer aos amigos que conheciam o Snape de verdade. Mas queriam saber dele o que aconteceria no próximo livro.
- Isso, eu sei tanto quanto vocês. – ele respondera, dando uma piscada misteriosa.
À tarde, fez Sarah entrar no tal de fórum, ficara curioso com o que os “trouxas” diziam sobre tudo aquilo. Também descobriu que havia fóruns específicos para o “seu personagem”, e muitas fãs femininas, algumas pródigas em escrever histórias românticas e até... ousadas a seu respeito.
- Está vendo? – Sarah rira ao comentar – O Professor Snape, inocente ou não, só fica sozinho porque quer. Embora eu continue achando que isso é mérito do ator... O Alan Rickman é bem mais charmoso que você.
- E tem alguém aqui querendo descobrir o efeito de uma maldição imperdoável ou coisa parecida...
- Você não teria coragem... Sua assistente social favorita... sua “irmã de sangue”!
Sarah fazia alusão pela primeira vez à doação de sangue que lhe fizera, mas ele parou e a fitou, subitamente sério.
- O que foi? – ela já aprendera a reconhecer naquela expressão uma preocupação a mais.
- Isso ainda está estranho pra mim... No mundo bruxo, não existem intervenções como esta. Eu teria tomado uma poção revitalizadora, apenas isso.
Sarah não disse nada. Algo lhe dizia que a preocupação dele não era exatamente esta.


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(pequeno parênteses: a instituição e os acontecimentos descritos neste capítulo são ficção, mas baseados, estes sim, em fatos reais. não é, repito, não é nenhuma tentativa de transformar a personagem em madre tereza de calcutá. todos os personagens estão agindo como as pessoas normais e acontecimentos verdadeiros que inspiraram a construção deste capítulo)


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