capítulo 8



- Então? Pronto para começar?
A voz tranqüila do médico o despertou de seu devaneio e John assentiu com a cabeça.
Se era preciso, que fosse logo.
Sarah permaneceu do lado de fora do consultório, mas Felipe entrou, a seu pedido.]
Então, os três homens se acomodaram na sala confortável e fresca, sem exageros de decoração.
O Dr.Edmundo colocou uma música suave, bem baixinho, e diminuiu a luz do aposento.
- Você deve tentar se manter o mais tranqüilo possível. Eu vou apenas induzir sua mente a caminhar para trás, para além do que sua lembrança atual está acessando.
- Você vai perceber estas lembranças ou pensamentos? – John perguntando, lembrando-se da própria capacidade que demonstrara de perceber os pensamentos e lembranças dos outros.
- Não. Você vai nos relatar o que achar que deva. Que seja pertinente ao seu caso e possa nos ajudar a encontrar as respostas. Apenas vou ajudá-lo a relaxar e conduzi-lo inicialmente até que se concentre o suficiente.
John olhou para Felipe, que também balançou a cabeça, em silêncio. E então, eles começaram.
Sob o comando vocal de Edmundo, ele tentou romper o véu de névoa que toldava sua mente e não o deixava perceber nada anterior ao momento em que despertara naquela sala de hospital.

Mas era tudo nebuloso e frio...

Então, depois de algum tempo, uma cena se desenhou... ele era um jovem, apontava aquele objeto de madeira para o alto, deitado em uma cama, pipocando flashs de luzes com ar entediado.
Depois, outra cena mais remota, uma tentativa de andar de bicicleta... mas a mente foi mais atrás...
Ele se viu um garoto de tenra idade, talvez um ano ou pouco menos... perto dele, um casal discutia, e ele tentou entender a discussão.
As frases pareciam soltas, estranhas:

***
"- Eu vou encontrá-la! Leve o tempo que levar! – a mulher exclamava aos prantos.
- Por que não pergunta pros seus preciosos amigos? – o homem retrucava, sarcástico
- Eles não têm nada a ver com isso! – ela reagia
- Como não? Não são amantes das tais “artes das trevas”? Vai ver usaram a criança pra alguma coisa... Você não vivia se lamentando que ela se parecia comigo, então deveria ser como eu?
- Não seja idiota!
-Pensa que não ouvi? Você dizia que esse aí – ele apontava o menino – seria grande, mas ela, você não sabia... tinha saído tão parecida comigo... um trouxa...
- Eu vou encontrá-la. Ela tem a jóia. A jóia vai trazê-la de volta.
- Bobagem. Besteira! Desde quando amuletos funcionam?"
***

E de novo a névoa envolvia tudo, e John relatou o que vira e ouvira para os dois médicos. Sem receio algum.
Enquanto Edmundo o ajudava a retornar, dizendo já ter sido bastante por um dia, Felipe permanecia pensativo.

Do lado de fora, Sarah estava ansiosa. Mas não perguntou nada, apenas se ele estava bem.
John disse que sim, agradeceu aos dois profissionais, e se prontificou a retornar na semana seguinte.
Felipe se despediu da irmã, cumprimentou Edmundo e John, e saiu, dizendo ter coisas urgentes a fazer no hospital.

John preferiu não comentar sobre a seção nada com Sarah, e ela respeitou isso, embora estivesse curiosa.
Mas algumas palavras pareciam saltar daquele diálogo mais reveladoras que outras... seriam seus pais, ou pelo menos sua mãe, algum tipo de ocultistas? De que “artes das trevas” estariam falando? Ficara claro que tratavam de outra criança, então ele deduzira não ser filho único. E isso era o que mais o surpreendia em tudo aquilo. Provavelmente, nunca reencontrara esta outra criança, pois não conseguia se imaginar com irmãos ou irmãs... era sozinho, tinha certeza.
Na quinta-feira daquela semana, Sarah trouxe para casa um dvd para assistirem.
- Lembra do filme com Alan Rickman de que falei? É uma comédia romântica, acho que vai ser bom de assistir. Este é um filme inglês, então acho que você vai gostar.

Então, à noite, eles se acomodaram para ver o filme. John cada vez se sentia mais à vontade naquelas situações, e isso parecia muito novo pra ele, mas bom. Começara a gostar até daquela coisa estranha e salgada, que fazia muito barulho ao ser preparada, e que Sarah chamava de pipoca!
No início do filme, o narrador falava de “onze de setembro”... de acontecimentos terríveis... e Sarah explicou do que se tratava, e do quanto aquilo abalara todo o mundo. E ele permaneceu pensativo, embora atento.

O filme realmente era leve, engraçado em algumas partes, sensível. E ele foi se envolvendo com a história. O tal Alan Rickman, como Sarah dissera, aparentava estar bem mais velho que no outro filme, sem a barba. E ele brincou se ela esperava que ele chegasse a ter aquela aparência em vinte anos.
- Se fôssemos um casal, o que não somos – ela se apressou em dizer – não seria nada mal. Acho ele um charme, você não?
John sorriu. Mulheres... E continuaram a ver o filme.
Em dado instante, o discurso inflamado do Ministro inglês. E ele falava das coisas que os ingleses tinham, e a audiência aplaudia. Em dado instante, exclamou:
- “Temos Harry Potter!” – e a audiência aplaudiu ainda mais, o personagem de Alan Rickman focalizado diretamente.
Mas John pulou do sofá.
- O que foi? – Sarah indagou, preocupada.
- O que ele disse? – ele suava, nervoso.
- Apenas o nome de um personagem de literatura, Harry Potter. Por que?
John olhou para ela como se aquele nome representasse um perigo.
- Você... o conhece? Esse Harry Potter?
- Não exatamente. Não li os livros. Mas meus sobrinhos sim, e falam nisso o tempo todo, se a gente deixar. Fizeram até filmes, acho que o Alan Rickman trabalha neles... – mas Sarah viu o quanto ele estava transtornado – Homem, o que foi? O que tem esse nome?
- Eu...não sei. – John pareceu mais confuso – Foi como um estalo na minha cabeça. Vi alguma coisa, um garoto, mas tudo sumiu de novo.
Sarah parou o dvd. Então, buscou um copo de água para John e o fez se sentar de volta, pois ele andava nervoso de um lado para outro.
- Olha, talvez você conheça alguém com o nome parecido, porque esse menino não existe. É só um personagem de literatura infantil. Relaxe.
John olhou para ela, como se nunca a tivesse visto, e em seu olhar havia um brilho diferente. De ódio e rancor.
- John... você está me assustando. O que está acontecendo de verdade?
- Não sei – ele respondeu, ríspido e nervoso como ela nunca tinha visto antes, e se deixou cair de novo no sofá. Fechou os olhos, tentando recuperar as memórias que teimavam em se esconder dele. Mas tinha certeza de que Harry Potter era algo concreto em sua vida, Algo, ou alguém, de que não gostava nem um pouco.

Sarah não insistiu. Sabia que as memórias dele podiam brotar de uma hora para outra, por qualquer motivo. Qualquer coisa poderia servir de gatilho, Edmundo a tinha prevenido para ficar atenta a tudo. E agora, eles tinham encontrado um gatilho e tanto: a simples menção do nome Harry Potter o havia deixado naquele estado!
Estava claro que tinha a ver com algo muito grave em sua vida. Mas Sarah teria que esperar que ele descobrisse, e ainda, que se decidisse por compartilhar tudo aquilo com ela.
John permaneceu em silêncio. Uma única frase surgira em sua mente. Ele gritava para alguém: “Não me chame de covarde!”

Nem ele nem Sarah disseram algo por um bom tempo. Até que ele se ergueu, pediu a ela desculpas e foi para o seu quarto.

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