capítulo 5



Sexta-feira. Duas da tarde. Depois de uma sessão de burocracia que pareceu interminável, John Smith, o paciente inglês misterioso que nunca seria esquecido, deixou a enfermaria “E” e caminhou pelos jardins do hospital até a rua, acompanhando Sarah. Vestia uma camisa azul e calça jeans, calçava um par de tênis novos, que a Assistente Social lhe trouxera naquela manhã. Os cabelos negros, que geralmente caíam-lhe até os ombros, estavam presos na nuca por um elástico negro. Acatara a sugestão de um médico jovem, que fazia o mesmo, porque o calor estava insuportável. Mas a barba fechada estava aparada bem curta, não lhe parecia usual mas resolvera conservar por mais algum tempo. A frase “é um bom disfarce” não deixava de dançar em sua mente.

Acompanhou a mulher, com passos seguros. Dissera estar sempre pronto, e estava. Não era homem de se intimidar com pouca ou muita coisa, disso tinha certeza.
Enquanto a seguia pela rua, não se preocupava muito em prestar atenção a tudo aquilo. Ela lhe informara em tom ameno que residia a apenas algumas quadras de distância, e a tarde estava fresca, o verão ainda não chegara, e por isso seria bom ir caminhando.
Fresca? Ele tentara entender este conceito. Para ele, estava quente como jamais vira... ou será que vira? Não. Tinha certeza de que nunca estivera numa terra tão quente em pleno dezembro. Isso também o confundia. Tinha que se lembrar o tempo todo de que estava no hemisfério sul. Ainda não assimilara totalmente a inversão das estações, talvez pelo fato de estar com amnésia. Não registrara conscientemente a mudança, acordara dentro dela.
- Chegamos. – Ela apontou para um prédio de poucos andares, uma construção antiga, segundo ela, algo de que ele também discordou.
- Pra mim, construções antigas têm torres e pontes, um lago e uma floresta ao fundo, talvez.
- E carruagens e cavalos mágicos – ela brincou, sem ver a expressão de seu rosto, enquanto abria o portão eletrônico com sua chave e o convidava a entrar.

Ele a seguiu em silêncio pelo corredor até a escada, da qual subiram dois lances. Ela residia no segundo andar. Ao abrir a porta, Sarah sorriu e se desculpou antecipadamente pelas acomodações modestas.
A sala espaçosa era decorada com móveis de bambu e almofadas em tons de verde, aconchegante e serena. Na infalível estante os aparelhos que já aprendera a reconhecer. Televisão, telefone, um outro que ela informou ser um “dvd”, um aparelho “de som” e “cd’s”.
Quadros na parede retratavam figuras da cultura indiana, segundo a própria Sarah explicou.
- Não se movem? – ele apontou as figuras
- Claro que não! É apenas uma pintura.
Ainda achando isso estranho, mesmo sem entender o motivo, ele a seguiu enquanto Sarah lhe mostrava o banheiro, a cozinha, e finalmente, os quartos.
- Este é o meu – ela mostrou rapidamente o quarto que acompanhava o estilo da sala e já abria a porta do cômodo seguinte – E este é o seu. Meus irmãos o usaram, quando fizeram faculdade. André só mudou-se daqui há seis meses. Mas quase não tem muita coisa deles, não se preocupe. Aproveitei pra juntar um monte de coisas que eles deixaram pra trás, com a desculpa de que teria um hóspede. Você não vai acreditar na quantidade de tralhas que ainda estava por aqui... Vou levar pra casa da mamãe amanhã, vamos pra lá no fim de semana, você se importa?
- Não, claro que não. – ele respondeu, sem emoção.
Ela ria, enquanto puxava as cortinas de um azul suave e abria as janelas, deixando o ar fresco entrar. O quarto tinha duas camas, uma de cada lado da janela. Um armário embutido de madeira clara como todos os móveis, que incluíam também uma mesa com um computador ao centro, alguns livros e porta-objetos com lápis, canetas e outras miudezas.
- Vou te dar um cursinho básico de computação. Assim, poderemos trabalhar juntos na busca. Não se preocupe, não vou precisar te incomodar, tem outro no meu quarto.
- Não estou preocupado.
- Bem. Vou deixar você se ambientar um pouco, enquanto ajeito algumas coisas. Mas vamos sair pra comprar o que você vai precisar. Ah, isso me lembra...
Ela saiu, foi ao outro quarto e voltou. Ele estava à janela, olhando o movimento lá fora, quando ela voltou carregando uma pequena caixa de papelão.
- Eu quase me esqueci de que essas coisas estavam comigo. Busquei no Pronto Socorro, o pessoal tinha esquecido isso lá, quando transferiram você, e eu trouxe pra cá, há alguns dias, quando fui de carro para o trabalho.
Ela pôs a caixa sobre a mesa.
- Espero que não faça sujeira, está esfarelando um pouco onde ficou chamuscado.
Ela abria a caixa e tirava de dentro um saco plástico, que continha roupas negras, as roupas dele, rasgadas em alguns pontos, queimadas em outros, e muito sujas. Muitas manchas, John constatou, eram de sangue.
Ele as pegou com cuidado, erguendo-as e examinando-as coma tenção.
- Elas lhe dizem alguma coisa? – Sarah perguntou, contendo a custo a própria ansiedade.
- Talvez... mas com certeza, as reconheço como minhas – ele disse simplesmente – O negro me parece familiar e... confortável.
- Mais alguma coisa?
- Não.
No fundo da caixa, outro saco plástico continha um estranho objeto. Os socorristas haviam dito em seu relatório que ele o segurava com firmeza, e que dera trabalho tirá-lo de sua mão. Sarah comentou isso com ele.
Ele tirou do plástico o objeto comprido de madeira, como uma baqueta de bateria, o cabo entalhado, com duas letras “S” na base.
- Será que Smith foi mais que um tiro no escuro? – Sarah comentou – Podem ser suas iniciais.
- Acho que sim, ...embora Smith continue não sendo minha melhor escolha, acho que não combina comigo, prefiro continuar sendo apenas “John”, mas enfim... – ele a empunhou, e sentiu uma estranha energia, como se a vara de madeira vibrasse ao seu toque. Mas alguma coisa lhe disse que não devia experimentar nada na frente de Sarah, que isso representava perigo. Mais uma vez, calou-se.
Sarah percebeu por sua expressão que aquilo lhe trouxera alguma lembrança. Ele franzira o cenho, parecera tentar se decidir sobre algo importante, e novamente seu semblante estava neutro como sempre, mas não tão vazio de expressão como ela se acostumara a ver. Ele lembrara-se de algo, mas não estava preparado pra dizer, disso ela tinha certeza.
Ele a fitou, por um instante. Então disse:
- Realmente. Não posso dizer nada, por enquanto. Não sei como, mas parece perigoso... pra você.
Era o máximo que ele podia dizer, já que percebera com ainda mais facilidade os pensamentos dela, e vira que ela sabia que mais alguma coisa aflorava em sua memória.

Sarah ficou um pouco apreensiva. Ele pareceu um pouco mais estranho, mais misterioso, por alguns instantes. E todos os temores voltaram por um segundo. Os ecos das preocupações da equipe do hospital, as perguntas que sua mãe lhe fizera. E a resposta que dera a ela também, na noite anterior, por telefone:

- Você sabe como eu sou, mãe. Achei mais um garoto perdido pra adotar...
- Mas pelo que você disse, deve ter quase uns 40 anos!
- Sim, eu sei, ele não é nenhum garoto e ainda vou me dar mal com isso um dia, mas por enquanto é o que sinto que devo fazer, não me pergunte porque”.
- Então vou pedir a Deus que você esteja certa em sua intuição sobre este moço.
- Estou, mãe. Tenho certeza.

Sarah se perdera em suas lembranças por alguns segundos, sem saber que John as acompanhara, e se surpreendera mais uma vez com a confiança que ela demonstrava em alguém que nem sabia quem era.
Será que ela era mesmo assim tão imprudente? Levando um completo desconhecido, desmemoriado, para dentro de casa, apenas por intuição? E se ele fosse um criminoso, realmente? John sentiu algo dentro de si se contorcer e revirar. Ele tinha algo terrível trancado em sua mente, a certeza disso era cada vez maior.
Ele fingiu não ter percebido nada, quando ela pareceu cair em si e disse que era melhor se apressar ou não daria tempo de ir com ele ao “shopping”.
Enquanto ele tentava imaginar do que ela estaria falando, Sarah já tinha ido para o próprio quarto, voltando em pouco mais de dez minutos.
- Vamos? A gente aproveita e lancha por lá, antes de voltar... espero que você não se incomode muito com o barulho... estamos perto do Natal. O movimento deve estar terrível, mas como ainda é cedo, acredito que não teremos problemas.

Ela já estava com bolsa e chaves na mão, e ele nem tivera tempo de pensar a respeito. Mas observou-a com atenção, pois estava diferente do que se acostumara a ver todos os dias. Ao invés do terninho claro bem comportado, sua habitual “roupa de trabalho” sob o jaleco branco, ela vestia uma calça jeans, bordada na barra, uma blusa leve e sem mangas, que explicou ser “uma batinha” quando ele perguntou que tipo de roupa era aquela, e uma porção de coisas extras: no pescoço, nos pulsos, nas orelhas. Brincos e pulseiras combinando com a cor da tal batinha, o cabelo longo preso num rabo de cavalo alto, óculos escuros pendurados no decote da blusa.
- Mas você tem certeza de que vai sair assim?
- Claro. Qual o problema? – ela examinou a si mesma com olhar crítico e não encontrou nada em desacordo. Olhou para ele e desatou a rir.
Sua cara de espanto e assombro era digna de uma foto.
- Esqueci que você é um velho professor inglês empoeirado até os ossos... – ao ver a expressão dele, atalhou – Desculpe, brincadeirinha... não resisti.
John não sabia o que pensar. A ele parecia que faltava uma capa, talvez, por cima de tudo aquilo, mas lembrou-se do calor que ele mesmo experimentava, e de que não estava na Inglaterra, afinal.
Enquanto pensava a respeito, ela já o puxava pela mão, falando sem parar enquanto desciam as escadas em direção à garagem.
O que será que dera naquela mulher? Uma agitação febril parecia ter, de repente, tomado conta dela.

Mas, assim que ela ligou o carro, John silencioso e apreensivo ao seu lado, pela primeira vez - com certeza - às voltas com cinto de segurança, trava de porta, janela, etc, sua postura mudou.
Atenta e concentrada, após ligar uma música em volume baixo, ela dirigiu sem conversar muito, apenas se preocupando em ir identificando para ele algumas referências pelos lugares que passavam, até que chegaram ao shopping center. Realmente, o movimento era grande, mas o horário – apenas quatro da tarde – fora vantajoso.
Estacionaram sem dificuldade e ela esperou que John chegasse até ela. Então, em um novo gesto espontâneo que o surpreendeu como sempre, ela pegou seu braço, pousou a mão sobre ele, entrelaçou seu próprio braço, e assim o fez caminhar para dentro.
Ao encará-la, ela apenas lhe sorriu, dando de ombros. Ele teve que aceitar isso como explicação, evitando sondar novamente seus pensamentos, esse era um hábito que não podia adquirir. Tinha que respeitar sua privacidade, afinal.
Depois de caminhar alguns metros, ele entendeu. Se não estivesse colado a ela, ia se perder naquela multidão, ou então ficar maluco, embora ela comentasse que estava até vazio.
- Então não me traga aqui quando estiver cheio – foi seu único comentário, que ela respondeu com uma gargalhada.

Para todos os lados, gente andando, falando, rindo. Músicas diferentes saindo de cada loja, e uma outra tentando se sobrepor nos alto falantes. Enfeites de Natal e luzes coloridas para todos os lados.
Sarah parava de vez em quando, mostrando-lhe algo e comentando. E ele percebia o quanto ela estava à vontade e tranqüila, como se passeasse com seu melhor amigo e não tivessem nenhum problema na vida...
Sem precisar observar muito, John constatou que ambos chamavam atenção, mas não entendeu muito bem o motivo. Não era por ostentarem algo impróprio, pois logo percebeu que estavam dentro de um padrão descontraído e simples comum por ali, embora de bom gosto e qualidade. Mesmo achando que se sentiria melhor naquelas vestes negras que haviam ficado dentro da caixa, ele concluiu que ali estaria completamente fora de lugar com elas.
Prestando atenção na mulher ao seu lado, pela primeira vez, John reconheceu que ela era bonita. Os cabelos negros desciam escorridos pelas costas, a pele era suave e bem tratada e tinha um tom bronzeado que lhe emprestava mais juventude, embora John tivesse certeza de que ela já teria mais de 30, e percebeu que nunca perguntara isso a ela. Presumiu que talvez até fossem da mesma idade, mas, droga, ele nem sabia ao certo a própria idade... Seu corpo era esguio, mas não magro demais, tinha curvas bem distribuídas e um jeito diferente de andar. Pelo que vira até agora, para o padrão do lugar, ela até seria considerada magra. Mesmo assim, chamava a atenção, e já por várias vezes percebera por seus olhares e expressões que alguns homens o invejavam por estar com ela.

Mas ela caminhava pelo shopping, indiferente a isso. Ou, pelo menos, não demonstrava vaidade em momento algum. Apenas uma vez, murmurara algo como querer ser a “Serena de verdade”... Ele percebeu que o motivo fora um jovem que sussurrara alguma coisa perto de seu ouvido ao passar, obviamente completamente despreocupado dela estar acompanhada de outro homem. Será que os brasileiros eram tão atrevidos assim? Não temiam a morte ou um...
De novo, a palavra fugiu, e ele praguejou baixinho.
- O que foi? – ela perguntou.
- Nada demais – ele respondeu seco, enquanto entravam em uma loja maior.
Ela deu de ombros num gesto que ele aprendera a reconhecer, e o conduziu até a seção masculina.

John não se sentia bem em saber que ela lhe pagaria as compras, mas Sarah lhe sussurrou um “não seja machão” e partiu para a escolha dos artigos.
Ela logo percebeu, divertida, que se deixasse por conta dele, só comprariam peças de uma única cor: preto. Mas foi trocando uma e outra, e outra, até “clarear” um pouco suas escolhas. Provar as peças já foi complicado, pois ela não poderia entrar no provador masculino, mas queria ter certeza do caimento das peças.
Acabou por ficar na porta, pedindo a ele que lhe mostrasse as peças que ficasse em dúvida.
- Mas, “pelamordedeus”! Não venha aqui fora só com a camisa ou só com a calça, ouviu? Não queremos matar nenhuma cliente de susto.
Ele a fitara furioso – será que pensava que ele era um completo idiota? - mas notou seu ar de riso e lhe fez uma mesura engraçada.
Funcionários e clientes próximos ficaram curiosos com o casal, ainda mais que conversavam em inglês praticamente o tempo todo.
Mas quando saíram, Sarah estava satisfeita. Sacolas e mais sacolas com camisas, calças de modelo social e jeans, cuecas, meias e pijamas, além de um elegante blazer preto, e agora só faltavam sapatos.
Foi a próxima parada. Sapatos e cintos escolhidos, John já estava louco para ficar em algum lugar onde não visse mais nenhuma caixa, nem vendedores ou qualquer outro tipo de pessoa barulhenta.

Mas, de novo, Sarah o arrastava para dentro de outro daqueles cubículos que chamara de loja...
Desta vez, porém, ele sentiu-se em alerta assim que ultrapassou a soleira de vidro. Não soube dizer se era pela atmosfera do lugar, meio em penumbra e decorado em tons diferentes de lilás, ou pela mistura de aromas e essências que chegava às suas narinas sensíveis.
Da conversa entre Sarah e a balconista, uma mulher clara e esguia, de olhos atentos escondidos por trás de óculos de armação um pouco exagerada para seu rosto magro, toda sorrisos enquanto ouvia a mulher e o examinava com olhar profissional. Apenas a palavra “cabelos” lhe foi perceptível, enquanto permanecia estático, sentindo-se um pouco zonzo com a descoberta de que aquelas prateleiras cheias de frascos e vidros não lhe eram de todo estranhas. Apenas tinha a impressão de não estar acostumado a odores tão agradáveis, embora muito diversos e misturados. Uma rápida visão de caldeirões fumegando em fogo brando passou por sua mente, mas Sarah tocou seu braço, e a visão se foi.
- John, não me ouviu? Adalgisa precisa examinar seu cabelo, para definir qual o melhor produto... Você poderia vir até aqui?
Ele aquiesceu e a seguiu até uma cadeira próxima, onde sentou-se e esperou, armando-se da máxima paciência, para suportar os toques nos cabelos e comentários bem-humorados das duas. Segundo a tal Adalgisa, ele era quase um caso perdido, mas ela tinha a solução, com certeza.
A mulher pediu licença e foi para os fundos da loja, onde sumiu por uma porta que John nem notara antes. Voltou minutos depois com alguns frascos coloridos.
- Escolhi uma fragrância amadeirada, mas suave. Encontrei uma que combina com este ar de mistério dele...Essa cara esfíngica de “decifra-me ou devoro-te”!
John ergueu as sobrancelhas, observando-a intrigado, mas a mulher já mudava de assunto, perguntando a Sarah se não levaria nada para si desta vez.
Enquanto ela respondia que não e se encarregava de pagar as compras, John experimentava uma sensação nova, uma leve desconfiança de que aquela mulher não fosse o que parecia.
Desconfiança que se transformaria em preocupação, se ele tivesse ouvido seus murmúrios, assim que Sarah o puxou para fora e os dois seguiram pelo corredor.
- Não pode ser... como teria vindo parar tão longe? – ela os observava se distanciando – Talvez eu deva contar para alguém... de lá – ela entrou de novo para o balcão, procurando algo, meio aflita – Deixe-me ver, onde deixei? Ah, sim! – ela encontrou um cartão em seu arquivo - Aqui está! Vou enviar uma mensagem pra Ana agora mesmo, ela precisa saber disso...

Sem saber o que haviam provocado à vendedora de perfumes, Sarah olhou o relógio e se assustou com a hora. Sugeriu então que fossem comer alguma coisa.
- Será que existe a possibilidade de ser em um local quieto, silencioso, sem confusão?
- Claro, mas não aqui no shopping. Vamos. Sei de um lugar que é a sua cara.
Depois de atravessar novamente os corredores para chegar ao estacionamento, John sentiu um grande alívio no interior do veículo, embora os sons lá de fora não estivessem totalmente abafados pelo isolamento dos vidros.
Sarah riu de sua expressão, mas depois comentou, solidária:
- Eu, sei que não é fácil. Desculpe-me por fazê-lo passar por isso sem nem ao menos ter se acostumado ainda com a cidade, o jeito das coisas aqui. Mas Londres é uma metrópole bem maior, e talvez não exista tanta diferença assim...
- Mas eu não vivia em Londres... Só ia até lá em caso de...
De novo, aquele branco incômodo. Ele praguejou de novo, baixinho.
- Pelo menos você se lembra de como xingar à moda inglesa – ela riu – Mas olha só, já veio mais uma coisa, não é? De alguma forma, você sabe que não vivia na cidade. Isso é importante.
Ele ficou calado, pensando nisso. Realmente, não conseguia se imaginar circulando entre tantos carros e pessoas. Tudo aquilo ainda lhe parecia... antinatural. Como se existisse forma melhor de se locomover.

O restaurante fora, realmente, uma surpresa para ele. Um lugar sossegado, com música suave e luzes fracas, sugestivamente romântico, ele notou, mas Sarah parecia não se dar conta disso. Atendera ao seu pedido de um lugar quieto, apenas isso. Ao fundo, um piano suave dava ainda mais intimidade ao ambiente.
O garçom os atendeu, solícito. Pelo menos, falava inglês, John percebeu logo e se sentiu mais à vontade para fazer perguntas até se decidir pelo que gostaria de comer. Pediu também um vinho, mas Sarah se limitou a um refrigerante com limão. Ante sua muda interrogação, respondera simplesmente que era a motorista da noite.
Comeram em silêncio, saindo sem muita demora, o que pareceu ter frustrado o garçom, que pensara ser um casal enamorado que ficaria ali por longo tempo consumindo o melhor vinho da casa...
O caminho até o prédio de Sarah foi tranqüilo, mas ela realmente não conversava enquanto dirigia, John percebeu e agradeceu mentalmente por isso. Seu ouvido ainda zumbia do barulho do shopping...

Ao entrarem, ele a ajudou a levar as sacolas para o quarto, e Sarah comentou, com um suspiro cansado.
- Se você quiser tomar um banho, fique à vontade, pode ir primeiro. Sei que maltratei você hoje... Amanhã, vamos deixar pra viajar depois do almoço, assim de manhã podemos aproveitar pra pesquisar um pouco na net.
Ela foi para o próprio quarto e John resolveu aceitar sua sugestão. Encontrou naquela imensidão de coisas o pijama e o robe que haviam comprado, ainda estranhando o fato de ser curto para “seus padrões”, e foi para o banheiro. Depois, voltou ao quarto, fechou a porta silenciosamente, e se deitou, embora não sentisse sono algum. Ficou ouvindo Sarah se mover pelos cômodos: ir para o banho, sair, ir ao quarto, voltar até a cozinha... A intimidade daquilo lhe soava estranho, como se não estivesse acostumado a dividir algum espaço com alguém. Não assim, tão próximo, concluiu. A impressão nítida que lhe vinha é de que família era algo que não existia em sua “vida anterior”. Que era um homem só. Disso já tinha certeza absoluta. Tampouco teria muitos amigos, pensou, mas com resignação. A ausência de tristeza nesta constatação não lhe passou despercebida. Isso já era questão fechada pra ele. Há muito tempo.

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