-Da lareira ao caldeirão-
-Capítulo VII-
-Da lareira ao caldeirão-
Silêncio era pouco para descrever o que pretendiam.
-Cuidado com...!-Juliana num cuidado estridente- Ahn... Deixa pra lá...-continuou, enquanto o garoto tentava se desenrolar de um mensageiro dos ventos particularmente grande, calculado nas dimensões de um hipopótamo. Edição de colecionador.
-...socorro...?- começou Lilo, temeroso por si mesmo, quase ao chão na sala escura.
-Uhn... Esse deve ser novo...-se lembrou a menina de não ter se lembrado antes, desenroscando o garoto calmamente, se perguntando se era possível não tê-lo notado ao abandonar a sala pela manhã- Espero que mamãe não tenha acordado.
-Mas são nove da noite.- veio o garoto, enquanto Juliana desenrolava um sino particularmente agressivo de seu pescoço.
-Ela costuma dormir cedo e acordar tarde.- explicou ao som dos sons que se libertavam- Acho que não tem muito o que fazer...-considerou, buscando calar os sinos, Lilo lutando por seu calcanhar sitiado- E não costuma ficar muito feliz quando é acordada no meio da noite...- voltou, desconsiderando que só era noite a poucas três horas- Nem triste... fica meio, ahn... hipnotizada...? Diz que interrompe o fluxo de visões dos sonhos ou algo assim...- considerou, num volume preocupado e quase carinhoso.
-Ahn...- não achou nada para completar, passando a cabeça por baixo de um dos fios que a garota levantava.
Viu-se livre finalmente, com medo das próximas possibilidades. Muitos fios pra pouca sala.
-Não erra melhor acender a luz?- as escadas pareciam a muitos cordões de distância, como demonstrava a vaga luz da lua que se perdia aos enfeites infinitamente presos ao teto.
-É... acho que sim.- observou o teto a qual não parecia acostumada- Fique aqui.
Tudo o que Lilo pode ouvir foi o esforço comedido da garota à desviar dos objetos virtualmente invisíveis mapeados na memória.
-Pronto...- a menina fez a luz que acendeu a grande maioria dos objetos confundidos, apagando os demônios que o garoto cogitava existir.
Bem, concluiu, isso não facilitaria tanto assim. Não mais.
Das poucas horas que vazaram desde a manhã abandonada à tarde ocupada, o suficiente para não se divertir o bastante, garantiu a sua mãe o tempo suficiente para transformar a sala de visitas num apinhado de antiquários desdenhosos, passando em longe o seu recorde costumeiro de excessos mobiliários que sempre teve.
Pasma, continuou traçando tudo com os olhos, procurando o que pudesse tentar reconhecer, temendo ter praticado uma invasão a propriedade privada do vizinho.
-Ahn... Ju?- Lilo continuava paralisado no lugar em que o mandaram aguardar.
-É... eu vou ter que conversar com ela de manhã...- voltou Ju, se entregando a si mesma, nesse labirinto que confundia com sua casa.
Sempre teve a impressão que já tinham mensageiros demais. Com certeza não a mesma impressão que a de sua mãe.
Taças, pequenos bustos, abajures de peles de animais incadastráveis, sustentáculos de mármore e o teto infindável de fios que se seguravam uns aos outros.
-Isso já aconteceu antes.- informou Ju com naturalidade excessiva, enquanto escalavam os degraus em ziguezague, conforme orientavam os novos pedestais, depois de atravessarem com a calma que não tinham o tráfego impedido do aposento anterior.
-Bem, não é tão ruim assim...- veio Lilo, procurando um certo conceito de consolo.
-Não disse que era.- continuou Juliana, guiando-o a frente- Mas é meio...
-Estranho?
-Confuso.- suspirou ao alcançar o patamar do corredor- Da última vez ela tentou colar um papagaio de verdade no teto da cozinha... foi horrível...- concluiu, lembrando do coitado, implorando todo dia de manhã por um biscoito na hora do café.
Levaram-se ao corredor, esperando por o que esperar, surpreendidos por não terem se surpreendidos.
-Acho que está tudo o.k- avançou o garoto corajoso, perscrutando o corredor até o interruptor desligado que não funcionava, pronto a descobrir isso.
-Lilo, esse ai ta quebr...-avisou tarde demais para um Lilo chocado.
-Ta dando choque!
-É, agora você sabe.
Entrementes a parte, alcançaram a porta do escritório, perdendo o corredor.
-Ahn...- acendeu as lâmpadas temeroso- Ótimo. Tudo parece em ordem.- concluiu o garoto, perguntando que ordem era essa.
-É, ela não mexe muito por aqui.- voltou a garota, indo se jogar em uma das poltronas que despencaram mais cedo- Não sei bem se gosta da decoração, mas acho que acha que é assim que meu pai achava que gostava...-continuou, confundindo a mente em palavras.
-Ah.
A persiana ao fundo da escrivaninha sacudia ao vento que trazia a noite.
Sem achar nada para achar, Lilo resolveu facilitar as coisas, sem esperar pelo cordial, típico e tradicional oferecimento pelo Flu. Não se entra, abusa ou sai da casa dos outros sem um polido consentimento.
-Acho que ainda deve funcionar...-come;ou o garoto, chamuscando a mão em cinzas esverdeadas, ao topo da abertura da lareira, em uma das meias de natal.
-Você tem certeza que não é melhor chamar um táxi...?- veio Ju, despertando do silêncio, temerosa pelos acontecimentos que poderiam acontcer.
-Uhn... Eu não entendi bem como se atrai um deles... Seria um tanto idiota gastar marshmelons só para chegar em casa...-raciocinou Lilo, tentando pescar um monstro amarelo com listrinhas brancas de cima de um precipício de sua imaginação- É só um pouco de Flu e... Se não esquecer de acender o fogo.
Não foi bem uma ofensa, mas um aviso cuidadosamente ironizado aos tombos da manhã.
-E como você espera que eu bote fogo nisso...?- voltou a garota, entendendo a mensagem, rabugenta por estar, procurando o galo na cabeça enquanto vasculhava o aposento em busca de dinamites, ou coisas com poder de fogo similar para acender toda aquela lenha, desanimando ao reparar a madeira podre confortável no suporte da lareira.
Lilo hesitou na boca ao falar.
-É, assim as coisas ficam mais difíceis...- voltou desanimado, as cinzas escorrendo de seus dedos no compasso da frustração- Poxa... Eu queria minha varinha...- reclamou indignado, resolvendo contornar o problema num chute mal humorado- O que!?
As chamas romperam furiosas, rindo em doses altas do espanto desesperado do garoto. Mesmo antes que Juliana cogitasse socorrer, Lilo já buscava a saltos rápidos o abrigo da poltrona.
-Ah! Ela me mordeu!- rompeu um Lilo branco lívido encima da cadeira acolchoa, procurando o inimigo, numa torre de vigia.
-Lilo! O fogo acendeu...!- ignorou Ju o garoto fugitivo.
-Que...?-demorou-se a entender seu grande feito. Da lareira, como de costume se esperam dela, um fogo seguro demonstrava grande eficiência a se fazer em suspiros corrosivos da madeira podre, agora esbelta.
Vagaroso, como quem esperava uma cilada ao anoitecer, Lilo desceu de seu degrau de segurança, caminhando pelo tapete em direção ao fogo novo.
-É...
-Um velho truque bruxo...?- confortou a garota, interrogativamente divertida.
-...Acho que sim...?
A menina pós se séria a gargalhar da cara criticamente surpreendida de um Lilo espantado.
-Bem, acho que pelo menos agora eu consigo chegar em casa...-considerou, não se entregando a covardia- E com todos os meus pedaços.
Acharam melhor desconsiderar as possibilidades, sempre tão possíveis e muitas vezes evidentes.
-Então... é... Eu vou, embora, é...-começou Lilo, desligando os olhos das chamas que enfraqueciam calorosamente, num fogo bem comportado.
Juliana, que até então tentava apagar da memória as atrocidades que imaginara até agora sobre bruxos fanhos que se perdiam em vários lugares, ao mesmo tempo, a realizarem viagens rotineiras com o Pó de Flu, voltou-se para o garoto como se o enxergasse melhor. Teria que se despedir, e tinha se esquecido disso.
-Ah...! Certo, é claro.- algo dentro dela achava impressionante esse revelador pensamento. Não era costume se despedirem antes de algumas detenções, espalhadas ocasionalmente ao ano. Era como se o ciclo normal de todas as coisas houvesse sido interrompido, recolocado de uma maneira irracional, adiantando o fim ao começo das coisas. As férias eram sempre tão trouxas que o pouco adiantamento da coalizão bruxa que reservara ao dia lhe parecera que viera para ficar o ano inteiro, como sempre (considerando a eternidade hipotética esses últimos dois anos que seguira). Sempre seguiam para suas férias saudavelmente cansados um do outro.
Era estranho por esse motivo, é claro, desconsiderando outras sensações mais profundas e escondidas com decoro na compreensiva incompreensão da pureza juvenil. Algo por amadurecer.
-Então, agente se vê... Quero dizer, em Hogwarts.- o garoto hesitou, procurando o próximo passo-...ei... quando você vai ao Beco?
-Ao beco... quer dizer, o Diagonal?- bem, qual mais poderia ser...?- Ah, acho que no último final de semana... É mais ou menos o combinado com a minha mãe- continuou, redescobrindo, como hoje de manhã que, além dos deveres que lhe faltavam, esquecera totalmente do novo material a lhe faltar- Acho...
-Você quer dizer então... No próximo?- contou nos dedos o garoto.
“Já!?” poderia ter saltado da menina, o que só suas sobrancelhas erguidas nos contava. Bem, não estava mais tão certa sobre todo aquele sentimento afetuoso e toda aquela lengalenga sobre o ano que deveria começar logo, e como regra, ininterrupto.
-Puxa... e eu ainda nem comecei o trabalho de história...- continuou Lilo, aliviando a menina parcialmente, de uma forma subconscientemente sádica.
-Eu acho que eu também não...-correspondeu a menina, num “quê” de talvez começo pela manhã que, até amanhã, já terá esquecido.
-O que eles tem na cabeça...?- continuou Lilo argumentando indignado para si mesmo, cogitando o sentido geralmente aceito de férias pelos professores.
A chama da lareira parecia concordar desanimada, diminuindo conforme o otimismo dos dois escorria pelos minutos.
-Bem, se eu não chegar em casa, nunca vou poder termina-lo- voltou o garoto, quase esperançoso- Uhn... Talvez me perder não seja algo tão ruim assim... Desde que eu faça isso longe dos professores e do dever de casa...-cogitou, banhando de novas cinzas as chamas despercebidas, quase ausentes agora.
Talvez fosse o seu dia de sorte, por mais que o resto dele insistisse em negar a sua fortuna.
-...que será que...?- comunicou, em busca de segundas opiniões, ao fogo que não se levantava tragando as cinzas, aberto para os confins do mundo- Casa dos Stoneveew, lareira da sala.-tentou, tateando entre as chamas.
O fogo parecia indisposto a responder, diminuindo gradativamente verde e preguiçoso, conforme a voz do garoto ordenava num confuso e torto tom forte.
-Lilo, a lenha!- Ju apontava para o único toco de lenha apodrecido que se esvaziava, como a quem aponta a um parafuso solto no acelerador de um carro, ou a um vazamento de óleo às asas de um avião em pleno vôo.
-Que...!?-voltou o garoto, cansado de ser surpreendido por seu próprio descuido- Droga! O fogo ta apagando!- relatou numa apreensão apressada, enquanto ordenava rouco o destino de sua sala de estar- Casa dos Stoneveew!- agora aos saltos, socando com os pés o chão da lareira.
-Ahn... Lilo, acho que isso não vai adiant...- negou suas palavras às chamas que cessaram ocas em seu fulgor.
Sempre adianta, de um jeito, e quase sempre, de outro. Mas no caso, vamos optar por um terceiro.
Lilo continuou saltando, como se quisesse forçar o chão a o levar num vácuo espaço tempo, esquecido das chamas que se afogavam no último taco que se libertava em suas cinzas.
-Lilo, pare com isso... eu já disse que não vai adiantar nad...
Disse?
Lilo desaparece com um estrondo e um rugido acirrado de pavor e incompreensão.
-Lilo!- voltou a si, a menina, numa surpresa tão cansada das aventuras ocasionais do dia.
O silêncio costumeiro que anuncia o algo errado sentenciado, fez-se longo no barulho desse fator concretizado.
-Ju...!- vagou de um túnel até seus ouvidos- Mãe...? Papai!?
Juliana se adiantou, descobrindo coisas do tipo que aprendera a se acostumar, praticando com Lilo de uma forma freqüente o bastante para a sua paciência.
-Ahn... isso não estava aqui...- avançou, agachando na nova e prolongada passagem da lareira. Ao fundo de sua fronte, um túnel seguido de perto por uma escada de pedra em caracol transformava todas as concepções de espaço em mentiras evidentes. Mentiras bruxas para verdades trouxas.
-Onde estou!? Tem alguém aonde estou?- chamou a voz, preocupada com a resposta mais do que com a vontade de receber uma.
Não sabia bem se corresponderia aos gritos do amigo, ou se deveria buscar apoio policial, mas o “algo atrás da orelha”, tão característico, que vinha se acostumando a respeitar, a tranqüilizou com uma certa segurança, a de tudo estar seguro.
A cada degrau, de uma maneira nada habitual(da mesma forma em que tudo vinha acontecendo nesse dia de receios cotidianos) sentia uma certa familiaridade angustiante, perto do esôfago, ao lado da respiração à espera.
-Lilo...?
Como poderia estar segura de tudo ser seguro...? Era como se soubesse que aquilo, o que quer que viesse a ser e a significar em sua vida, sempre estivera ali, esperando por um garoto acidental para se revelar.
Bem, conforme as pedras rústicas desenhavam um teto cada vez mais estreito, oscilou entre um desejo sempre certo de aventura, retocado em cortinas de curiosidade, para um sussurro de hesitação.
-Ju...!?- veio a voz, sustentada ao teto, percebendo a crescente aproximação.
-Lilo! O que... Onde estamos?- veio Juliana para a sala escura, quase exatamente ao vago instante em que as tochas se locomoviam vagando pelo ar, a se resvalar pelas paredes, acendendo umas as outras, ao passo que seu pé invadia a sala deixando as escadas.
-Luz!-informou Lilo, surpreso ao descobrir seu próprio estado.
A sala despertou empoeirada, vagarosa com seus anos de descanso dos costumes, relatando a Juliana seus tetos altos, sustentados por arcos e parábolas que se fundiam e chegavam até o chão, entre velas suspendidas, os archotes que corriam aos cantos, entre as estantes que se aluminavam ao movimento, dentre os acessórios curiosos, as três lunetas de latão apontadas para uma maquete perfeita de extensões ainda não descobertas do universo, entre espécies estranhas de pinicos de prata, mesas trabalhadas em madeiras raras, longos e pequenos tubos de acrílico e vidros que se conectavam, cinco quadros que se anunciavam em legendas inteligíveis de poeira, um enorme caldeirão a dar compasso a muitos outros pequenos, longos e finos e, finalmente, mas não uma peça de relativa falta de importância, Lilo pendurado entre a tapeçaria.
-...Lilo, eu... que...? Essa é a sua... casa?- voltou a menina, aceitando o cenário curioso em que cogitava uma recepção paternal a cada instante- Ahn... E por que você está pendurado ai...?-continuou, tentando enxergar pistas de um velho costume familiar. Nunca tinha visitado bruxos, em suas respectivas casas, antes. E para uma primeira vez, resolveu decidir que nunca iria se acostumar.
Lilo rabiscou as paredes com os olhos, a procura de coisas específicas que somente ele, no momento presente, poderia reconhecer. Logo descobriu, diferentemente da menina a pouco em sua sala re-mobiliada, que não seria fácil encontrar.
-Não, acho que não.- reconheceu em fim, se acostumando ao sustento misterioso na tapeçaria.
-Será que erramos de casa...? Quero dizer, será que você errou de casa...?
-Eu... você nunca usou uma lareira antes?- Lilo indignado.
-Bem, eu... já assei marshmelons, acho.
-Ainda estamos na sua casa!- veio Lilo, unindo uma certa dúvida a sua afirmação.
-Que?- pareceu surpresa por alguns segundos, como se nunca tivesse cogitado essa nada surpreendente(por motivos obscuros) conclusão. Logo se familiarizou com a idéia, como se ela sempre estivera ali, a idéia e a escada-Mas... como é... Eu não entendo.- perguntou para si mesma, discutindo com sua consciência em transformação.
-Bem, talvez não seja realmente sua casa... Não que isso mude o fato de eu estar pendurado em um candelabro...- voltou o garoto, esperando se soltar.
-AH...-socorreu a menina, lembrando com pouco caso da situação. Andou a passos cuidadosos, levando a sala piscadelas suspeitas, tão apreensiva quanto aquela sensação estranha a permitia estar.
Lilo agora agarrava suas próprias roupas, tentando de uma maneira descuidada desprende-las de sua armadilha.
-Isso aqui não sai- saiu.
-Lilo!
O garoto pousou de maneira quase eficiente, descontando as pancadas no joelho, adentrando o grande caldeirão, fazendo-o rodar como uma moeda desajeitada em sua própria dimensão, destruindo alguns objetos que não pareciam à eles estar por ali até esse momento, nem importarem tanto quanto agora.
-Lilo, você está bem?- ajudou a menina o garoto a tentar se recompor, desconcertado frente às dores esperadas, buscando seus braços à grande boca de aço.
-Vou estar quando eu acordar...- veio o garoto, desanimando na realidade de suas contusões, pedindo refúgio ao sonho- Quero dizer... Foi um dia cheio, não foi?
-É, acho que sim...
Juliana chacoalhava nas pontas dos pés na tentativa de esvaziar o garoto do enorme caldeirão. Esse, imponente, representava bem seu papel de obstáculo, tão alto quanto a menina seria daqui a anos. Suas mãos apenas roçavam a grande boca, enfraquecidas pelo esforço contundente de alcança-la.
-Não consigo sair!- deslizava o garoto, na grossa parede de lata- Ainda ta meio... molhado?
-...ainda...?- ocorreu à menina- Quer dizer, ele foi usado, para preparar... é... coisas?
-Acho que servem para isso...- voltou o garoto, realmente sincero no seu tom de dedução, incerto em certezas que muitos poderiam ter. Muitos dos quais em situações mais externas que a sua.
-Mas o que isso significa...?- voltou a menina, perdida no que perguntar, desobedecendo o instinto novo que lhe informava, na mesma apreensão relaxada.
-Que deve caber toneladas dessas coisas que o usaram para fazer...
Não agiam com naturalidade, mas era só o que eles tinham, nesse ramo de surpresas que não se explicam. Não é todo dia que se descobre algo novo na lareira. Como não se vê sempre macacos que batem carteiras. São coisas curiosas que tendem a zero em freqüência de acontecimento, mas sabemos que elas estão por ai e, virtualmente, planejamos de uma forma estrategicamente inconsciente, medidas adequadas para agir em casos extremos de ocorrências.
-Pinicos...?- voltou Lilo, minutos depois, descalçando os tênis intragáveis de um odor característico de substâncias desconhecidas(sim, cheiram todas iguais), calando um pensamento sobre pessoas infelizes com incontinência urinária.
-Uhn...- se expressou de uma forma só sua, Juliana, aceitando o fato já tão pressuposto de que seu pai, em algum momento de seu cotidiano caseiro, se dispusera a decorar o lugar. Não que soubesse de seus possíveis problemas infalíveis com líquidos, ou que acreditasse na possibilidade deles- Meu pai era saudável... Eu acho.
-Bem, os pinicos são de prata... Acho que é preciso gostar mesmo de pinicos para gastar prata com pinicos de prata.
-É, mas os pinicos não são os objetos mais interessantes que se possa encontrar por aqui.- veio a menina, em tom de censura, linguagem organizada, traindo as suas concepções de pai perfeito, substituindo-a por estranhos vislumbres de entidades paternas ninando pinicos em carrinhos de bebe, de prata.
-...bem... Não que o resto não seja interessante... mas... É, acho que você tem razão...- decidiu enfim, guiado por seu massacrado instinto de sobrevivência- mas... e agora?
Não esperava por aquela pergunta. Ninguém espera.
Já fazia um certo tempo que a menina tinha decidido se alarmar, apesar de suas evidentes tendências contra. Aceitara tudo com a naturalidade esperada de alguém que acha o tesouro com um mapa,só não aceitara bem um “porque”. Era um duelo de consciência que se estendia no sentimento de querer sentir. Bem, delongas explicações não seriam o suficiente, nesse curto prolongamento da história.
-Acho que... vamos dormir?- enfim galgou a garota, surpreendida com sua própria noção de atitude corriqueira.
-Dormir?- o garoto, esbarrando em um dos telescópios de latão- Você diz agora?
-Sim, acho que sim- consultou sua consciência- Já é tarde, acho...
Na verdade, não era.
Coisas a se esperar nem sempre são esperadas de uma maneira adequada, ou são recebidas com a devida organização de fatos que a elas se aplicam ou convergem. Pode parecer complicado, mas a essência é muito simples. E tratando disso, preferimos a prática.
-Filinha, não se esqueça, a umidade é inimiga das cartilagens e fossas nasais- reclamou cuidado, a mãe em seus olhos críticos de lente de acrílico, ao pé de alguns últimos degraus na recém aceita escada em caracol.
A menina, desconhecida de si mesmo, resenhava à pena com esforço, procurando qualquer razão(em verdade ou não) que tiveram os grandes bruxos da história para proibir o tráfego de bananas defumadas com óleo de várzea amazônica do Brasil durante tratados do século dezoito.
-Certo... então... era um atrativo para as comunidades de d-i-a-b-r-e-t-e-s migrados do norte da Cracóvia depois da guerra dos trasgos hilarianos...- soletrou a garota no pergaminho esparramado ao chão, ao lado dos livros de consulta e dos inimigos nasais, desconsiderando os avisos de sua mãe.
-Bem, eu avisei.- se não queria ouvir, não seria ela a insistir. Era assim com todas as pessoas, em termos de embates místicos, porque seria diferente com sua filha? Afinal, conhecimentos universais absolutos ou talentos extra-sensoriais não passavam de mãe para filha, não com toda aquela questão de loteria cósmica- Só não demore muito nesse lugar, vai começar a ganhar fungos.
-...tá...
-...
Juliana compassou a pena com os passos cerrados da mulher se retirando para outros aposentos.
Não houvera muita discussão, confusão, crime e nem ao menos castigo. O novo ambiente foi aceito como se já integrasse a casa há anos, o que, na verdade, realmente era o fato. Quero dizer, como já disse alguém antes de mim com palavras mais sofisticadas, não é só porque não se vê que não existe.
-...a comunidade britânica decidiu enfim que todos os esforços deveriam convergir para a situação...
A sala tornou-se parte do seu dia a dia, talvez mais do que qualquer outro compartimento da casa, ou do dia(?)nessa última semana. De uma forma curiosa e inconformada, Juliana sentia-se confortável ali, jogada ao chão, rabiscando no pergaminho o trabalho historicamente atrasado.
-...então, os diabretes foram encarcerados e mantidos sob vigília por toda a Europa...
O pai de Lilo não se mostrou surpreendido com o relato sombrio de toda a situação. Meramente acenou com interesse profissional, ao vir resgatar o filho perdido logo no dia após as descobertas, para os objetos trancafiados na lareira, parecendo particularmente interessado nos pinicos de prata(esse item curioso de mistérios e sujeição).
-...guerra dos Macabros, em 1855, na divisa com o Sudão...
Realidades a cogitar, nos resta o que nos apresenta agora.
-Bem... Acho que é isso...- concluiu, com um glorioso pingo no “i”- Afh... Tenho que começar a programar melhor meu tempo livre...
Levantou-se, esquecendo enfim o artigo no chão.
“Bem... Ainda tenho que ir ao beco...”, encontrou-se, no seu beco sem saída.
Passeou os olhos pela sala, absorvendo tudo em seu lugar. Analisara quase todo o conteúdo nos dias que passaram, sem perguntas ou respostas, estudando-os de longe, com um raciocínio perdido, nunca com as mãos. Poderia ser perigoso, e tinha muita noção disso. As lunetas que mergulhavam em galáxias desconhecidas, os pinicos que estavam ali a seu serviço, o grande caldeirão cheirando suave a frango estragado, as várias peças espalhadas pelas mesas, os tubos de ensaio, os ensaios em si, estantes com livros e ingredientes pegajosos, alguns astrolábios, uma banheira espumenta, uma porta cerrada semi-escondida que interessou a Ju tanto quanto sua vontade de abri-la(selada com esmero, ajudada por uma estante com montanhas de livros), um pôster dos Canhões de Chudle(com sua característica bala de canhão estampada com seu lema “Vamos fazer figa e esperar o melhor”) e, enfim, os cinco quadros sem recheio. Digo, entenda o que eu quero dizer, não há figuras, talvez uma pretensa cobertura marrom ao fundo, ao redor do local em que algo que nos falta deveria ser pintado. Obras inacabadas? Algo me diz que, em termos de eficiência, respondem bem a sua existência.
-Puxa...- recorreu Juliana a seu intimo, esperando algo para esperar, encafifada com o novo retorno às aulas.
Agora era mais estranho ainda voltar para a escola, quando se sentia tão em casa, no meio das pedras, no coro dos musgos.
Bem, ainda tinha mais dois dias.
Uma última olhada antes de ir, sempre a mais perigosa.
Recolheu os olhos aos quadros, indagando mais uma vez no costume dos últimos dias.
Algo se destacou, como sempre algo faz. É preciso acontecer alguma coisa, e o algo é sempre algo a calhar.
-.....?
Demorou para se reconhecer adentrando o quadro até o quadro que a adentrava, olhando direto para ela, estudando em um certo tom de espanto e incompreensão. Sobrancelhas erguidas, olhos pestanejando.
Quadros não tem sobrancelhas, é algo a se aceitar. Claro, no mundo mágico, tudo atende ao impossível.
-...o que...?- veio o quadro, descrevendo a figura que se reconstruía em tons cinzas de carvão em giz.
-Mas...!?-veio a menina, entendendo o que viria a entender.
O rosto de um garoto, no contorno de uma luz fraca, indagava em marrom acinzentado na face do segundo quadro.
-Quem é você!?- voltou Juliana, a toda, a si mesma e a perguntas mais urgentes.
-O que!? Você fal...- falhou a voz do garoto vivo em cores mortas.
Os rabiscos que o desenhavam começaram a desenquadrar seu contornos, fugindo para os confins da moldura, se pregando ao fundo marrom.
-Você!- correu a menina, ao momento que o lábio inferior do visitante escorria pela falta de grafite. Seus olhos venceram a moldura por pouco tempo, engolidos enfim por outras cores ascendentes- Eu!- parou, procurando nos outros quadros.
Nada, apenas as legendas desfareladas pela poeira.
-Mas o que... eu já vi esse rosto antes...?- quase que afirmou para o aposento.
Não conseguia recordar. Talvez realmente não tivesse o que lembrar. A maioria das coisas acontecem ou se constroem por analogias duvidosas.
Instantes à espera, paralisada, esperando por uma atitude, sua ou de outrem.
Em termos, nada aconteceu.
Voltou-se mais uma vez para os outros quadros, procurando por nada. Aproximou-se do segundo, tendo finalmente a brilhante iniciativa de limpar a legenda com a manga da blusa.
-Crowmun?
Continuou, mãos ao alto, tentando achar algum significado que coubesse a essa palavra, expressão ou quem sabe, composição artística.
E os outros...?
-Ju, telefone.
A menina voltou-se assustada, procurando nos outros quadros a voz de sua mãe. Bem, não acharia, e por instantes duvidou disso.
-Ah...!- respondeu frustrada a menina, ao reconhecer sua mãe ao pé da escada.
-É aquele seu amigo, Brunomandrigas.
-Lilomandro, mãe...!- voltou a menina, novamente aos quadros.
-Bem, acho melhor você não demorar a atender... Ele pareceu preocupado com a idéia de esperar até eu te chamar...- continuou, evidentemente em seu tom de desentendimento.
-...certo...
Juliana apalpou a tela do quadro devidamente legendado, sentindo o frescor da tinta manchando seus dedos.
-Ei... Ainda está molhado...!
-Acho que não filhinha, ele deve ter conseguido se secar, mesmo nesses tempos curiosos de agosto...- concluiu a mãe, voltando a memória a noite desastrada do caldeirão banhado a frango estragado.
-...é... acho que sim...- continuou, ignorando a mãe.
Bem, não se chega a conclusões tão fácil assim.
Por bem ou por mal, decidiu, com uma leve tendência atrás da orelha, deixar a questão para assuntos mais imediatos.
-Ah, sim, ele dizia algo sobre um cachorro diagonal...
-Beco, mãe...- recomeçou a garota, se aprumando entre os degraus e sua mãe.
-E isso não é nome de cachorro...?
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