-As cinzas do dia- -II-



-Capítulo V-
-As cinzas do dia-
Parte II



Quando me refiro à sorte, entenda, não me refiro ao que entendemos por ela. Tudo fazia parte do seu talento, e esse dom, tinha aos montes.
Não era a toa que as possibilidades se encontravam gritantes em cada esquina, explícitas demais para serem ouvidas. Acontece a todo instante, mas sempre estamos ocupados demais para eles.
Praticamente do ar fez-se o chumbo. Algo não caiu na sua cabeça. Tornou-se parte dela. Algo macio como...”...as poltronas do ministério...?”, lembrou sem saber, por instantes. Se não, algo bem acostumado a elas.
O bruxo pairou despreocupado, intrigado, se perguntando se os duendes finalmente haviam quitado a sua casa ou ainda se em um súbito acesso criativo(aquele que costuma acontecer depois daquelas tacinhas de conhaque ao fim da tarde, aos domingos) havia redecorado-a de um tom sempre alegre com cortinas marrons para um papel de parede pós-moderno de cabeças flutuantes(um tanto surreal para o seu gosto, ele diria).
-Minha janela não ficava ali...creio eu...- concluiu, depois de um minucioso estudo, quase antes de ambos irem ao chão.
A vida é um acaso, um “esbarrão” na pedra certa. Muitas vezes, pedras bem vivas e inconseqüentes.
-Oras...! Alguém deve ter achado a chave reserva no javali... minhas costas...-suspirou entre hipóteses, o velho.
-Você perdeu o javali a duas décadas...-voltou Cardllock, ajudando o senhor a se levantar. Esse aceitou , indiferente a todas as pessoas, procurando as cortinas de pelúcia.
-Ah! É verdade! Fiquei trancando para fora de casa por três semanas até lembrar que ainda tinha a chave líder no meu bolso...-suspirou encantado com sua audácia, sendo levantado pela mão que o abraçava- Maldito buraco transdimensional... Eles estão por todo lugar, Gregório...
O velho virou para procurar, dando de cara com a vitrine do café, descobrindo seu reflexo descabelado(sua longa barba toda enrolada, engrolada em si mesmo, não parecendo tão longa assim) e o de Gregório Cardllock, trabalhando em seu chapéu amarrotado.
-Gragório! O que faz aqui!?- indagou o velho, olhando ao redor, decidindo-se que aquilo definitivamente não se parecia nada com sua sala de estar- Posso te oferecer um a xícara de chá?- enfiou automaticamente, obedecendo a tradição.
-Quatro blocos, meu velho- exigiu o outro, ainda remodelando seu chapéu sentado, modelado nas qualidades do amigo velho- E como vão as coisas no Ministério...?
Já se dizia em tempos ana-históricos, falando no diabo...
-Senhor Malcon! Senhor!- três vultos se distanciavam da multidão, vindos de três becos desabitados com premeditado planejamento.
-Sempre tão eficientes...-recebeu-os Cardllock.
Os três o encararam, sem uma conseqüente atenção.
Não o reconheceram. Jovens demais, não eram do seu tempo.
-Senhor Malcon! Dessa vez vai lhe custar sua habilitação!- continuou o do meio, de óculos e franjinhas repartidas, tentando mostrar autoridade.
Dorbert Malcon se virou, notando os três, confuso, tendo um vislumbro da situação, enfim.
-Minha habilitação! Como ousa!? Esta dizendo que eu não sei aparatar!?- voltou, se pondo imponente em seus ombros doidos, velhos e cansados.
O jovem hesitou nas palavras, tremendo os lábios, possivelmente amedrontado. Os outros dois mal respiravam, atuando apenas como apoio burocrático.
-Bem senhor, não exatamente... é... Nos o advertimos da última vez!- virou os olhos para cima, concluindo, lembrando-se da confusão- Aquela do banquete natalino...
-Oras! Eu estava bêbado!- voltou o velho, jogando a culpa no algo mais, como todos fazem- E agora eu apenas senti vontade de visitar o meu amigo Gregório aqui! -deu tapinhas nas costas do outro, que ria solitário da situação- em sua, ahn... casa?
As pessoas passavam distraídas. Algumas delas até se importavam com a reunião, achando graça dos artistas de rua, depositando moedas no chapéu em mãos, ao que Cardllock agradecia.
-Senhor! O Senhor sabe que não deve aparatar na frente dos trouxas desse jeito... ainda mais o senhor em sua posição no Ministério...
-Eu sei exatamente o que deve e não devo fazer meu rapaz! E não preciso que ninguém fique me lembrando!- continuou o velho em resposta, fingindo um real zango- Agora vão vocês três, voltem ao trabalho! Está tudo em ordem. Vamos!
-Mas senhor, estamos apenas cumprindo nossa função e...
Mas se calaram ao olhar inquisidor do homem velho. Afogaram suas preocupações, mas não se dispersaram, apenas se afastaram alguns passos, em observação.
-Oras... Eu criei suas funções...- voltou, indignado, falando baixo para o amigo que aguardava- Você tinha me perguntado sobre o Ministério, não é? Bem, cada vez mais inconseqüentes! Não somam mais dois menos dois!
-Já me esqueci de me preocupar com isso- lembrou Cardllock- E as meninas, como estão?- voltou, enfim recolhendo o chapéu a cabeça, sem se importar muito com a moedas batucando em seu cocuruto.
-Ah! Moças já, sabe? Casadas, as três! E com bruxos de verdade, não com essas imitações que se fazem hoje em dia...!- Cardllock notou um olhar severo ao grupo escondido um pouco atrás- Mas, me diga, o que trás você a esses lados?
-Foi você que aparatou na minha cabeça.
-Ah... Bem...
-De qualquer jeito, procuro um funeral...
-Crowmun?
Os três no canto perderam a distração ao ouvir o nome, prestando mais atenção agora, em seus respectivos níveis de curiosidade.
-É.
-Bem, não fica longe daqui. Acabei de chegar de lá- cogitou “chegar para onde?”- Mas não é possível aparatar por lá, entende? Apenas de lareira ou andando. Stuart tentou desaparatar na cozinha e ninguém sabe dele há horas.
-Lembra do endereço?
-Ah! Sim, claro, é... Minha memória continua infalível, sou famoso por isso, lembra?
Gregório cogitou, analisando criticamente se o velho Dorbert era uma referência confiável. Decidiu arriscar. Sempre ganhava algo com isso. Inclusive aquela cicatriz no lombo esquerdo(ainda doem com a umidade). Ossos do ofício.
Despediu-se do amigo com um abraço caloroso de tempos antigos.
-Como era mesmo os três Ds...?
Ouviu o velho indagar confuso, enquanto se distanciava a passos costumeiros.



O sol já ganhava o meio dia, adiantando-se enquanto ele adiantava pelo beco disforme, hora se estreitando pelas paredes comoventes, hora se esquivando das latas de lixo suntuosas em sua essência.
Todas as portas que encontrava pareciam seladas, sem dar acesso aos prédios que se erguiam, fugindo ao céu de sua visão.
A luz do quase tarde se configurava estranha, refletindo no concreto cinza, dando uma tonalidade mórbida para a confusão que avançava. Deduziu ser o único horário em que a claridade conseguia se embrenhar nesse estreito, menos pela lógica das sombras, mais pela disfunção visual de tudo ocasionava. Aquilo não parecia combinar com o resto do mundo diurno, parecia uma realidade própria e conveniente(para tramóias universais e assassinatos). Posso estar exagerando, mas o que não é exagero?
Atravessava já os minutos, sempre seguindo o que julgava ser o caminho, sem questionar as probabilidades e a famosa memória de Dorbert.
Em anos, nunca visitara o aluno no subúrbio, era sempre o costumeiro bar. Na verdade, de tempos em tempos, se encontravam na outra propriedade, mais afastada da cidade.
Bem, em relação ao ambiente, pensou, parecia mesmo a decoração que Vincent gostaria em seu jardim, sem pecar no paisagismo.
Então, depois de um trecho estreito particularmente longo e cansativo, o espaço se abriu brando e brusco.
Rodeados por paredes imensas de construções provavelmente abandonadas, o jardim morto era a coisa mais viva que pensou poder encontrar por ali. A casa se encravava à frente, janelas fechadas, imitando a porta de madeira cinza-castigada com pequenos vitros embaçados de sujeira ao seu redor. Desenhada num estilo aristocrático tradicional, seria uma peça rara aqui nos subúrbios de Londres, se de fácil vista aos trouxas.
Pensou ter visto um gato patinar pela grama escurecida, mas recordava mais uma bola de feno.
Adiantou-se então, pisando pelas pedras incrustadas na grama seca, se desviando dos galhos sem folhas que impediam o caminho sem incomodo, tropeçando nas raízes mal cuidadas que escapavam ao passo.
Hesitou no primeiro dos três degraus até a porta. Não se ouvia nenhum ruído dentro da casa, a não ser o ranger estéril da morte que vivia no jardim.
Bem, talvez um feitiço abafador...?
Tocou a porta, três vezes, como ensinam na academia(?).
Esperou... por ninguém que responderia.
Repetiu(segundo o manual).
Tentou limpar um dos vitros com a manga, mas desistiu. Sairia quilos mais pesado, tossindo ácaro excessivo.
Com um toque da varinha que tirava do bolso interno do casaco, o vitro desenhou imagens consideravelmente mais nítidas, apesar do escuro que se fazia dentro da casa.
Em pé, sob o grande relógio de parede, quase ao pé da escada, um servo vestia-se com o que os servos trouxas se vestiam nos filmes. Um mordomo, homem, a espera na frente da lareira. Não era um elfo. Não era um costume.
Bateu mais três vezes, esperançoso por atenção.
O mordomo pareceu destacar, olhando ao redor, depois checando o fogo da lareira com uma varinha que escorrera para sua mão.
Cardllock repetiu o toque no vitro. O homem se virou, aparentemente surpreso.
Bem, as portas eram realmente fora de moda, no mundo bruxo adulto.
O mordomo se dirigiu questionando seus próprios passos.
Ruídos de travas se desfazendo foram evidentes aos ouvidos sensíveis do detetive, apesar de todo a magia e abafamento. Ou talvez só estivesse imaginando, certo como sempre.
A porta abriu pela metade.
-Pois não, senhor? O que deseja?- indagou o mordomo, arrastando sua voz enfadonha.
Seus olhos eram pregados pelo constante cansaço, os cabelos cinzas estáticos para trás e as feições brancas não lhe destacavam da aparência sombria do jardim.
-Ola- saudou sem cumprimentos.
Por um momento tentou avançar, encontrando o outro bruxo ainda no mesmo lugar, guardando a fortaleza.
-E o senhor é...?
-Ah, desculpe- voltou o outro, sem desconcerto- Cardllock, Gregório Cardllock.
-O senhor veio para os funerais?- voltou o inquisidor, seco.
-Não.
-Como?
-Eu vim ver o garoto.
-Garoto?
-Sim, é... Liar, não é...?-indagou para si mesmo, procurando algo entre as vestes.
Saiu com seu legendário bloco de notas, rodando as páginas.
-Ahn... Liége ou Amyot...?
-Uhn...?
Cardllock aguardou, fechando o bloco em algo como “Estava por aqui...”
-Desculpe senhor, talvez volte uma outra hora?- voltou o mordomo.
-O que?-o mordomo começava a encostar a porta, sem receio.
Gregório se interpôs, travando-a com o pé.
-Não! Eu nunca mais vou conseguir chegar até aqui- mentiu ele- Sou... fui professor de Vincent na academia.
-Bem, eu irei checar essa informação e depois o convidarei, o que acha?
-Oras...!
Algo atravessava a sala. Uma comitiva murmurante, soletrando conversas animadas sobre rosquinha recheadas.
O fio de esperança.
-Alvo!- chamou o detetive, tentando se desvencilhar do alto mordomo, surgindo vezes por seu ombro, na ponta dos pés- Alvo! Aqui!
Um dos membros da multidão de cinco pessoas procurou curioso, encontrando um rosto quase encoberto pelo servo. Identificou o chamado, avançando alguns passos calmos.
-Gregório, que bom que você resolveu se juntar a nós. –veio Dumbledore, sereno, caminhando até a porta, continuando com um sorriso amistoso, segurando a metade da rosquinha.
-Eu estou tentando, ao menos...- voltou o homem por cima do ombro.
-Ah! Archer, deixe-me apresentá-lo.- voltou o diretor para o homem que agora abria passagem para um homem sem convite- Este é Gregório Cardllock, um velho amigo, ex-instrutor da academia e...
-Não é necessário, senhor Dumbledore.- cortou o mordomo, abrindo o caminho, se concentrando no rosto do interlocutor.
-Ótimo, isso facilita muito as coisas- continuou o homem, sempre sorrindo.
-Sempre facilita, não é?- correspondeu Cardllock, adentrando a casa, passando finalmente pelo mordomo que o encarava.
Chegou a Dumbledore, estendendo as mãos em cumprimentos, esperando um abraço futuro.
-As rosquinhas estão deliciosas- continuou o diretor, entre braços.
-No funeral é tudo tão doce.
A comitiva se aproximando, impaciente.
-Professor...
A voz lânguida seguida sem a emoção que queria representar veio com seus passos chocalhados nos cabelos oleosos.
-Eles estão esperando...
-Ah, ola Duplo.- respondeu por Dumbledore, Cardllock se desvencilhando dos tratos do amigo.
Snape jogou aquele tão bem conhecido e aturado olhar de insatisfação calhado em nojo.
-Não vamos nos reter no passado quando há tanto o que descobrir no futuro.- completou o diretor, divertido.
Gregório e Severo se entreolharam, cada um com suas expressões características, relembrando os velhos tempos. Snape com desprezo, Cardllock sorrindo astucioso.
A comitiva já se adiantava sem eles, procurando as escadas, logo acima a porta da cozinha que acabaram de deixar.
-Vamos?-convidou o professor, indicando o caminho, dando mais uma mordida na rosquinha recheada.
Se puseram a andar, subindo os degraus de madeira negra.
A sala que deixavam era decorada em sombras, cobrindo os quadros assinados por pintores desconhecidos. Relíquias da velha mansão, pensou Cardllock. Então Vincent não se desprendera do passado. Talvez nunca tenha pretendido, mesmo. Muito bem.
-Está aqui desde cedo?- perguntou Gregório ao diretor, enquanto tomavam o corredor cheio de portas, sem janelas no fim do túnel.
-Algumas horas. O recheio é realmente deliciosa.- respondeu o diretor, fazendo referência ao recheio em suas mãos.
Snape andava a alguns passos atrás, olhos sempre a frente.
-Sua presença é reconfortante, pelo menos é o que eles acham.
-Eles?- se fez de desentendido, sem pretender realmente.
-Ele sabia que ia morrer... Aliais, duvido que tenha sido assassinado...- voltou Cadllock, aos cochichos.
-Eu sei.
Bem, reconfortante, realmente podia dizer. A idéia de que Alvo Dumbledore estava tão ciente quanto, ou ainda mais, que ele, retirou alguns quilos de suas costas, deixando apenas a pesagem particular.
Os três que iam à frente, o resto da comitiva, desapareceu em uma das portas mais ao lado, na metade do longo corredor.
-E o garoto?-voltou, antes deles mesmos atravessarem a abertura, com olhar questionador na face do amigo.
Dumbledore apontou com os olhos pela sala.
Cardllock se virou para enfrentar o aposento pela primeira vez.
Cadeiras espalhadas pelos cantos, poucas ocupadas, por bruxos de origem variada, orientados pela luz que crescia das janelas ao alto do teto.
Ninguém chorara, afinal, acreditou que não teriam um motivo. Ao longo não havia caixão, apenas uma espécie de altar ao fundo, guardando um relicário em branco, simples e pequeno. Lacrado, abrigando as cinzas.
Em uma poltrona solitária, de costas, frente à todas, mais perto do altar, sentava-se um menino. Polido como fora uma vez o irmão, ereto e inalcançável. Olhos martelados na pequena construção, sem imagens ou maiores arranjos, uma rosa branca estendida pela superfície. Seis lábios abrigavam aflição, sem planejá-la em palavras. Seus olhos o traiam, não com lágrimas, mas com uma fuga no vazio.
-É a segunda vez que ele aparece.- comentou um dos que tinha entrado primeiro, fronteando a pequena comitiva -Coitadinho, deve estar sofrendo muito- completou a outra pessoa, perdidas num sincero sentimento falseado.
“Ele vai ficar muito triste...” lembrou-se do que não compreendeu na hora em que dito, vindo da boca do defunto.
-O que vai ser dele agora...?-questionou Cardllock.
-Ele irá para a escola.- respondeu o diretor.
-Hogwarts? Ele sempre foi contra a metodologia... embora...
-Foi seu próprio desejo.
-Compreendo... Sob as asas da Fênix?
Dumbledore não respondeu, seu sorriso divertido emoldurado no rosto continuou o mesmo, sem porque.
-Eu queria conversar com o garoto... Mas acho que não é uma boa hora.- voltou o detetive.
-Talvez não seja.
-Ele não saberia me responder, de qualquer jeito... Vincent tem o costume de conseguir deixar tudo sobre seus ombros e mesmo assim se equilibrar... É quase um dom, eu diria.- continuou, esquecendo-se de conjugar os assuntos no passado, lembrando do aluno sempre vivo.
-Sim, sim. Um costume que se obrigou a dominar.
Uma pausa para ouvir para ceder aos cochichos. Snape estava a um canto, tedioso, conversando com uma senhora quase cega e um jovem de cabelos negros com aparência doentia, animado com algo que Severo não conseguia se interessar profundamente, ou pelo menos não conseguia demonstrar. Ou não pretendia.
-Ele não tem sorte, não é mesmo?-despertou Cardllock.
-O que?- Dumbledore também acordando de seus devaneios, contra a vontade.
-Ter o Duplo como professor.
-Ah... Ele é um bom professor, Severo.- continuou, sem deixar os pensamentos soltos- Gregório, você poderia me dar licença?
-Não precisa pedir, você sabe. Assuntos de estado?
Dumbledore sorriu como de costume, sem explicar, indo em direção ao que vinha na sua. Elegante em sua capa, que não conseguia esconder sua silhueta jovem, cabelos bem presos em um grande coque na nuca, deixando seu rosto ainda mais suave e definido, pescoço em realce, junto a seus olhos negros maquiados com maestria.
-Dumbledore, espero que você tenha recebido minha carta...- começou a mulher, sua voz saia limpa como signos esclarecidos.
-A sua não foi a única do dia...
Ouviu as últimas palavras do diretor, antes que os dois se afastassem o suficiente.
Sozinho agora... e nem ao menos tinha prestado suas homenagens. Decidiu se mexer. Não que achasse realmente necessário. O próprio finado concordaria. Mas queria se aproximar, agarrando-se a desculpa para si próprio.
Calçou o chapéu na mão, seguindo o tapete vermelho sangue, decorado em preto com rabiscos simétricos (desenhando o que você achasse que deveria ser), guiando-o até o lado da poltrona do garoto.
Aproximou-se em passos lentos, cuidadoso.
Se deixou um pouco a frente do menino, contemplando o relicário a contempla-lo.
“Onde espalhariam suas cinzas...?”. A idéia de desintegrar ao vento contorceu-lhe o espírito naquele momento, em volta da rosa branca que lhe dizia seus receios mais profundos.
-Vai ficar aqui...- explicou o garoto.
-Entendo.- entendeu Cardllock.
Seus estudos já eram tão profundos? Ou sua expressão dizia tudo o que não conseguiria ler em consciência.
-Meu irmão não gostaria de ter suas cinzas jogadas por ai...-voltou o menino, contendo o que seria sentimentos mais nobres.
Cardllock estudou a voz controlada, sabendo que o próprio controle era um grande indício de sofrimento.
-Está errado.- decidiu responder, enfim.
-...O que...?- voltou o garoto, deixando escapar, pasmo, perdendo muito do fino ensaiar.
-Ele não se importaria. Ele era um idiota orgulhoso, sim. Mas cinzas ainda são sempre cinzas, nada mais que fogo morto, e ele sempre soube disso. Como os dias que passaram e os dias que passarão. O que conta mesmo é o ele que deixou ardente dentro de você.
-...mas...eu... não sei...- não seria a primeira vez a admitir.
-E você tem que aceitar, continuar, pois o tempo não sofre, não sente dor, ele não lamenta. Continua, se desfazendo como essas cinzas que nunca foram seu irmão.
Quase engasgou ao choro. As lágrimas trouxeram o vicio do sofrimento. Escondendo o rosto nas mãos, deixou-se ali em sua dor. Como podia ele compreender o que escondia enterrado em seu intimo? Era assim com todo mundo? É esse o poder do ser-humano, se entender mutuamente, mergulhar um no outro para encontrar a si mesmo?
-Pode chorar, mas não deve se esconder.- disse por fim Cardllock, indo até o altar, acariciando o relicário com a ponta dos dedos.
No selo, palavras improvisadas na letra do ocupante.

“A Chama da minha vida
não pertence mais a mim
Ela é tua agora
Enquanto queime até o fim”

Não tinha mais o que fazer ali. Estava na hora de se despedir. Não jurou nada, ao menos nem tentou compreender. Tudo isso viria a seguir.
-Até mais garoto. Lembre-se de olhar para trás para olhar para frente.
-...qual é o seu nome...?
-Nome? Bem, Gregório Cardllock.
-O professor?
-Não mais. Não imaginava que o seu irmão tivesse comentado sobre mim.
-Ele não comentou.
Houve uma certa pausa conveniente.
-Quantos anos você tem?-voltou Cardllock.
- Treze...
-Certo... Terceiro ano, então? Me escreva se tiver algum problema.
-Problema...? Não sei...
-Qualquer um... Se tiver vontade.
Não disseram mais nada.
Cardllock seguiu pelo caminho, sustentando os olhares. Se esquecera das outras pessoas, mas elas não eram importantes agora. Não ainda.
Reconheceu novos personagens ocupando outras posições. Algumas, lembrou ele, com um ficha criminal tão extensa quanto sua olheira, inocentados por convenientes contatos ocultos.
Dumbledore já não estava mais na sala. Snape à porta, deixando o aposento, despercebido. O jovem doentio estava sentando, com as mãos da velha cega caladas entre as suas.
Quem seria todas essas pessoas...? É certo que Vincent tinha seu reconhecimento, mas não cultivava muitos amigos... Pelo menos não amigos como eles.
Deixou o aposento, ganhando o corredor.
Snape estava à borda da escada, sempre a espera.
Cardllock caminhou casualmente, tentando entreouvir ou perceber algo nos outros quartos.
-E Dumbledore?-iniciou Gregório.
-Ainda não voltou.- respondeu o outro, nunca esquecendo do orgulho pretensioso.
-Voltou?
Severo indicou com a cabeça uma porta a direita, duas atrás.
Como se ele predissesse o acontecimento, o que Cardllock não achou que ele fosse capaz, a porta se escancarou com força para dentro, dando ouvidos a uma voz alta e agitada.
-Você sabe que é um erro Dumbledore! Eu sou a pessoa mais indicada! Não me deixe fora disso só por preconceito!
-Minha cara Sofia, não sou isento aos preconceitos, mas sei administrá-los e...
-Não me trate desse jeito Dumbledore! Eu preciso estar lá! Você sabe!
-Não sei, você se recusou a me direcionar. E, como eu disse, o cargo já está ocupado. A questão já está decidida.
-Mas eu mandei minha petição com antecedência! E você conhece minhas capacidades! ...eu...!
-Antecedência não tem nenhuma relação com o assunto. Uma vez no cargo, cabe a mim decidir segundo as minhas exigência quais serão os funcionários... regalias de diretor, entenda...- sorriu despercebido.
-Está decidido, então!?
-Queria deixar claro isso desde o início e, se não me engano, eu deixei.
-Ótimo! Então esqueça essa conversa e não me procure mais!
-Tenho o prazer de esquecer quase todos as desavenças e ter a escolha do perdão, minha querida.
Mas Sofia não respondeu, ajeitou a capa com as mãos, cobrindo seu corpo. Virou, escolhendo a escada, andando a passos firmes.
Seus olhos se chocaram ao cruzarem. Cardllock enxergou angústia à flor da pele. A mulher um homem com chapéu na mão.
Passou por Snape desviando de seus olhos, baixando-os pelos degraus, que começava a descer.
-Teimosia juvenil...?-brincou Gregório com o diretor.
-Convicção em causas perdidas.- completou o diretor, em seu animo comum.
Se despediram, com promessas de reencontro casual. Com um “Passe bem, Duplo” ele começou a se levar pelos degraus. Dumbledore ainda estaria preso por mais algumas horas, precisava receber o ministro em casa que não era sua. Mas, segundo ele mesmo, ainda acharia tempo para relaxar, se Morgan não conseguisse evitar um dedão quebrado novamente, seu parceiro favorito.

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