-As cinzas do dia- -I-
Capítulo III-
-As cinzas do dia-
Parte I
O céu não estava nublado, como imaginara que estaria. Estava sim, pálido, seco comum como todas as coisas são. As poucas nuvens desabrigadas procuravam refúgio no horizonte tortuoso e desmanchado de prédios.
Era um dia cintilante de verão, mais um entre outros, onde a vida se movimentava hesitante e fatigada nas vias públicas. Para os que trabalhavam, sábado era sempre o dia antes de domingo.
É claro que poderia fazer tudo de um jeito muito mais fácil. Mas não, gostava assim.
Com a capa cinza giz dobrada no braço, o chapéu trouxa(cinza, fita preta) estrategicamente erguido até a cima da testa, continuava a passos marcados, vagarosos, entretido observando a rotina dos outros. Já caminhava a bons minutos, ofegando aos poucos em seu terno(cinza, convenhamos) de quatro botões, procurando se defender nas sombras dos prédios, ora cá, ora lá, do absorto céu azul.
Não costumava acabar pra esses lados da cidade. Ao bem da verdade, digamos, não costumava acabar em muitos lugares.
Não tinha muitos casos, devo dizer, desde que começara no ramo particular.
É claro que, em se tratando do assunto, era um notável, um gênio, uma mente conhecedora de todos os macetes da profissão. E, não menos importante(muito pelo contrário), um sortudo incomparável. Costumava tropeçar nas charadas certas e, não menos comum, nas respostas corretas. Tinha o dom para esse tipo de serviço, um vasto conhecimento.
Mas já dizia a natureza “...A maré sempre sobe para depois descer...” . A questão é que teve a sorte de tropeçar nas respostas erradas para perguntas muito sérias, o que marcou(e o marcou) seus últimos dias no serviço público. Ficara famoso no Ministério. Mas isso é matéria para outras histórias, enfim.
No fim, dera em algum lugar, mas não necessariamente a serviço, em nome de um caso particular, mas de um caso pessoal... Procurava um funeral.
Seus olhos caiam das pessoas para as placas e os nomes das ruas.
Anotara em algum lugar, mas...
“Acho que eu paguei o sapateiro com uma das notas do meu bloco...de notas.”
Suspirou, lendo com cautela cada nova rua que ultrapassava. Sabia que, com sua mente afiada a todos os mistérios, se topasse com a rua faria logo a dedução. Era em algum lugar por aqui, tinha certeza, não tinha?
As vezes tentava procurar sinais nas expressões dos transeuntes, algo que lhe indicasse o caminho. Não era uma tarefa muito fácil. Eram raros, e disso tinha certeza(tanto quando era certo que o cego, que pedia moedas e contava as notas satisfeito do outro lado, não podia enxergar), os bruxos que se dispunham a andar até o destino. Mais exóticos ainda os trouxas que conheciam o mundo bruxo(e continuavam a ser trouxas) e ainda mais freqüentavam seus funerais.
Era tudo muito estranho, como era tudo normalmente.
Não conseguia entender a vida, nem mesmo a morte(que é um fato consumado em si mesma).
Nas vésperas da notícia, na quinta-feira passada há dois dias, tinha até mesmo “gracejado” entre drinks com o noticiado. Se fosse em outros tempos, não teria o que questionar. Tempos esses em que se arriscavam demais às portas da morte para acabarem mortos.
Tudo estava em paz agora, não estava? Nunca era tão simples, mais ainda para aqueles que suspeitam de tudo. Sempre havia algo mais, algo que estava ali, escondido pelas confusões do cotidiano, em conjecturas inacreditáveis. Algo que começou com um bilhete, no mesmo “a dois dias” atrás. Esse ainda restava no paletó, no bolso esquerdo.
“O mundo é a eterna volta para lugar nenhum. Sempre voltamos para onde já fomos e vamos, sabendo ou não...”
-Esse garoto sempre gostou de poesia...-lembrou.
“Precisamos conversar. Quem sabe ainda lhe resta algo para me ensinar...? No bar de sempre, como sempre será...”
-Chega ao exagero...-confessou, depois que leu o bilhete guspido pelo fogo verde da lareira. “Precisamos conversar?” hesitou “Lembrar os velhos tempos..? Bem, acho que para mim chega de saudosismo...”. Parou, olhando o bilhete, a letra quase tremida do aluno, balançando o pé, quase deitado na poltrona atrás da mesa do escritório.
O que mais podia fazer? Não era um pedido, era um convite.
-Vou sair...- anunciou, colocando o paletó. Eihzenhauwer, o elfo-doméstico, assentiu absorto em contas inexistentes em um papel em branco.
No bar de sempre, há hora de sempre, sentava-se no balcão alguns bancos do banco de sempre(hoje, especialmente, ocupado por uma velha surda comida pelas traças, maquilagem borrada, empunhando um conhaque, que nem sempre estava ali).
Começou o primeiro drink, esperando por minutos, devaneando sobre o futuro e suas possibilidades. Então sentiu o bruxo se aproximar. Não que tivesse uma percepção sensível(o que realmente tinha, porém...), eram mais as vestes azuis escuras, descosturadas em poucos pontos, combinando com uma barba rala descuidada que o outro vestia.
Nem sempre fora assim. Mas, o sempre, sempre cansa.
-Está atrasado...- saudou-o com um aceno imperceptível, deixando um sorriso costumeiro beirar os lábios.
-Está errado... Pontualidade sempre foi uma das minhas virtudes- voltou o recém chegado, sentando ao seu lado sem grande cerimônia.
-Isso é por que você sempre chega quando quer...- retornou, o drink na mão- E essas vestes? Até parece um bruxo...!- continuou sorrindo, animado- Você não aprendeu nada na academia...?
-Meu professor não era dos melhores- finalizou, sorrindo como o outro.
Bem, parecia divertido para eles.
O silêncio respondeu por ambos. Lembranças daquele piano bar, onde mestre ensinava ao aprendiz como se camuflar na multidão, se transformando em um genuíno acessório trouxa.
-Nunca gostei do estilo deles... Extravagante demais... – reiniciou o aprendiz.
-É... Odiava estar em serviço vestindo aquilo.- voltou o professor.
Curiosamente os trouxas pareciam cochichar, apontando para o balcão a cada vez que o notavam, o que não era muito difícil(menos para o pianista cego que iniciava a apresentação da noite, acompanhado por um trompetista gago. Round Mid-Night).
O professor vestia as mesmas vestes cinza, terno trouxa, falhando apenas pelas tendências da moda (algo como década de quarenta), o mesmo chapéu(que não devia nada a “Lei Seca”) e a capa giz enrolada encima do balcão. O aprendiz, as já ditas vestes azuis escuras, lembrando algo como um sobretudo, ou mais ainda um sofá velho.
-O tempo passou...- voltou o aluno depois de um intervalo, em que seu drink chegara- As coisas mudaram.
-É, elas costumam fazer isso...- respondeu o professor, apertando o drink na mão, parecendo pedir mais um.
-Porém, você parece o mesmo- colocou, sorrindo- Os mesmos três blocos de gelo. Três de açúcar no chá, certo?
-Quatro, eu tenho ficado mais audacioso para certas coisas.- riu de si mesmo, açucarado- Mas você, você parece mudado.- continuou, apontando algo como o novo conjunto desgrenhado, barba e vestes- Sempre foi cuidadoso...
-Aprendi que as aparências não importam, não mais. Pelo menos para as questões mais importantes.- se defendeu, sem acreditar em tudo que dizia.
-Mas higiene nunca faz muito mal...- reparou em algo preso no cabelo. Parecia uma bolha de pelos- Lembro que você acordava uma hora mais cedo só para pentear o cabelo... Andam te acorrentando no Ministério?- continuou, observando o ar cansado do companheiro. Orelhas desciam pelo seu rosto, sempre tão bem definido.
-Não. Na verdade, eu ando é me excedendo com meus hobbys...
Os dois se encararam, em sorrisos, como cúmplices.
-Ainda está intrigado?- o professor.
-Tanto quando sempre estive.
-Tão mal assim..?
-Piora enquanto o tempo passa.
Uma pausa para um suspiro, uma bicada no copo.
O pianista cego começava agora a dedilhar eloqüente num novo tempo musical –As times goes on-
-Mas eu não me preocupo. Estou prestes a conseguir todas as resposta...- brincou, sério, deixando a frase terminar sem um fim, aceitando o copo que o barman completava em sua frente.
-Há! É essa impertinência que é a sua maior virtude!-voltou o professor, quase à gargalhadas.
-Você é um dos poucos que pensão assim.
-Eu sou o único- se controlou, derrubando o restante do terceiro copo na garganta, apontando para o barman- Mais um..! É beber para lembrar.
-E lembrar para esquecer?
-Esquecer? Quando vivo disso?- seu tom era mais alto agora. Digamos que a bebida tinha limpado sua garganta.
Vincent sorriu, concordando. Seus olhos perderam o foco entre as garrafas lá no fundo, vislumbrando outros tempos, outras pessoas que não se mostravam nos reflexos.
Cardllock precisava fazer alguma coisa. Salva-lo de memórias dolorosas, pelo menos agora.
-E seu irmão?- se lembrou, tarde demais, que o tema família talvez não fosse o mais adequado para o momento- Como ele está? Ainda está tentando transformar o garoto em uma máquina de matar?
-Está bem, acho... Vejo-o pouco agora. Interrompi as lições nesses últimos tempos. Quer dizer, ele continua estudando pelo meu material, mas Archer toma os pontos agora.- respondeu, desconsiderando o comentário do amigo- Ele vai ficar muito triste...
-Triste? Acho que deve estar saltando de alegria por você ter dado um tempo a ele, sabe? Deixar ele ser criança por uns dias, pois isso é só o que temos para crescer...- retrucou, desconsiderando o tal de Archer.
-Ele se interessa por essas coisas- voltou Vincent, explicando.
-Quais?- indagou, no meio de um gole, cuspindo álcool para os lados- Ele gosta é de você. Faria qualquer coisa que você mandasse ele fazer!- bem, o quarto drink parecia fazer efeito, talvez limpando agora sua mente das preocupações, cedendo a algumas outras.
Talvez fosse verdade, mas Vincent não estava interessado em continuar essa discussão. Tudo já estava decidido. Tinha que preparar tudo, inclusive seu irmão, para “os tempos que virão”.
-Na verdade- o aluno quebrou o assunto- Eu queria te pedir um favor.
-Droga, e eu achando que tudo era apenas um encontro casual!- o professor, rindo por rir, da bebida, talvez.
-Não vai ser difícil. Não para pessoas como você, ávida por conspirações e perguntas sem resposta- tentou falar bonito, talvez.
-Sou ávido por respostas! Não perguntas!- retrucou, mentindo, e sabendo disso. O enigma é sempre mais instigante que a sua solução- Que seja!- voltou, prestando atenção agora, driblando o copo e depositando-o no balcão- Mais um!
O barman caçou a garrafa, para voltar a encher o copo.
Vincent esperou o garçom se afastar, para recomeçar.
-Eu só queria sugerir para você ficar de olhos bem abertos daqui em diante. Agora todas as conjecturas são possíveis.
-O que? Como assim?- retornando o copo que quase levara a boca. Curioso demais para beber.
-Faça isso por todos... Por meu irmão, por você mesmo...
A voz do aluno apareceu diferente. Saiu como se as escrevesse em um contrato.
-Fará isso?
-Bem, claro, sabe que sim, eu... Procuro estar sempre alerta.- respondeu sem entender bem, aceitando os termos óbvios.
-Terá que redobrar os esforços, voltar as velhos tempos, talvez...
-Certo... ?
Vincent sorrio aquele sorriso costumeiro que dava quando tudo ia como o planejado.
Esse sorriso não era raro.
-Então vamos brindar a isso. O último drink.
O “último” soou pesado, como uma lápide onde se sepulta tudo o que esta por vim, abrindo passagem para o passado ressurgir.
Os dois brindaram, virando metade do copo. O quarto, e o segundo.
Se encararam mais uma vez, amistosos como nos velhos tempos. Uma última vez.
-Você não esta tentando.- o aprendiz contra o mestre.
-É porque eu te respeito, aluno idiota.- parou para acabar o drink, o mestre. Depois procurou no paletó, achando um cigarro. Colocou-o nos lábios e, com as mãos em concha, o acendeu, sem isqueiro- E, além do mais, você é melhor oclumênte do que eu...
Se arrependeu depois, perdido nas ruas, de não ter jogado com as possibilidades e tentado invadir a intelectualidade do companheiro. Talvez soubesse um pouco mais de tudo e, talvez agora, tivesse o endereço correto e não estivesse vagando a esmo pelos subúrbios da cidade.
-Um conselho.- terminou o ultimo drink- Procure dormir um pouco.
-Não se preocupe professor, terei muito tempo para dormir de agora em diante.
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