É tudo culpa minha
Mesmo de olhos fechados ela era capaz de sentir os pares de olhos fumegando na sua pele e mãos vestindo-a.
-Oh, Meu Deus, como isso pode acontecer? Remus, ela, ela, ainda é...
-Não sei Corine, quando cheguei, ele estava nu por cima dela, que estava nua também.
Falou Lupin numa voz sufocada, esmagada. Mary ouviu um grito de Peter, que se atirou por sobre sua cama, as lágrimas quentes molhando o rosto dela.
-Ah, Mary, como pude fazer isso com você? É tudo, tudo culpa minha! Se eu não tivesse te levado para lá...Ah, Mary!
Mary abriu os olhos, e disse, sorrindo, com sua voz grave e rouca para a idade:
-Não usa muito o meu nome que gasta.
Corine se atirou por sobre a filha, abraçando sua cabeça contra o peito, chorando e rindo:
-Que preocupação nos deu, meu amor!
-Corine, deixe a menina respirar.
Remus não sorria, podia ver que aquele sorriso era apenas para tranqüilizar a mãe e o irmão. Podia ver, que, apesar dos dentes estarem à mostra num esgar que geralmente remetia à felicidade, os olhos estavam opacos e tristes, fazendo o “sorriso” parecer uma careta de dor. Corine enxugou as lágrimas e sorriu:
-Como está, minha querida?
Mary disse, travessa:
-Oh, mamãe, muito bem! O moço ficou apenas abobado com minha beleza, assim como todos aqueles homens que lhe vêem passar na rua ficam, só que este foi mais ousado! Ah! Eu ficaria melhor se você me trouxesse aquelas deliciosas rosquinhas feitas à moda trouxa!
Corine riu com as macaquices da filha e disse numa voz aveludada:
-Claro, claro, mas descanse. Peter, você poderia olhar Diana enquanto eu faço as rosquinhas?
Peter, ainda em lágrimas, acenou com a cabeça e saiu, em busca da irmãzinha de quatro anos. Tão logo os dois saíram, Remus se sentou na ponta da cama de Mary e perguntou:
-Você quer me contar o que houve agora ou depois?
Mary se atirou em seus braços e começou a chorar, baixinho, baixinho. Remus sussurrava com uma voz carinhosa palavras doces para a menina e acariciava o topo de sua cabeça.
-Oh, tio! Eu tive tanto medo!
Remus perguntou, limpando as lágrimas que molhavam aquele rosto grave e infantil:
-De quê?
Mary se afastou, séria e séria disse:
-Não sei direito...Tive medo de que...De que se você soubesse do ocorrido, não gostasse mais de mim.
Ela fez um biquinho e começou a chorar de novo, tentando, de forma ineficaz, limpar as lágrimas que escorriam.
-De onde você tirou essa idéia?
Mary não respondeu, apenas virou o rosto.
-Eu tenho tanto medo! De vez em quando, lembro de coisas que nunca fiz, às vezes, minha mamãe me mostra a foto de alguém que morreu antes de eu nascer e eu ouço a voz da pessoa, é como se eu já tivesse conversado com ela...Eu sinto medo de coisas absurdas, do escuro, por exemplo. Eu odeio ficar no escuro, morro de medo. Não é medo de monstros não. É como se alguma coisa muito ruim tivesse acontecido comigo no escuro. E, quando passo em frente ao mar, eu me lembro de uma gruta, muito escura por sinal, como se eu, um dia, tivesse entrado lá.
Remus fechou a cara.
-Mary, você é uma menina muito criativa, mas está levando suas fantasias muito a sério.
-Não são fantasias!
-Claro que não são.
Mary e Remus se viraram para encarar a dona da voz que estava entrando no quarto com uma bandeja cheia de rosquinhas.
-Como assim “Claro que não são.”? Que história é essa? Como ela pode “se lembrar” de tudo isso?
Corine sorriu de leve e se sentou na cama da filha pondo a bandeja em frente à menina. Diana, que já tinha melhorado da febre e escapado de Peter, se adiantou, perguntou, com um largo sorriso, “Posso?” e, sem esperar resposta meteu a mão no prato de rosquinhas açucaradas. Mary, com uma rosquinha na mão, perguntou, com um ar de educada curiosidade para a mãe:
-É, como é possível eu “lembrar” de coisas que nunca aconteceram, mamãe?
O sorriso de Corine se alargou.
-Vocês dois me decepcionam. Estão pensando como trouxas, não como gente como nós.
Remus a encarou e disse:
-Está sugerindo que, a sua filha de cinco anos, capte pensamentos de outras pessoas?
-Apesar de não ser impossível, afinal ela é uma bruxa e tem sangue dos Black e dos Gaunt, não, não estou sugerindo isso. Como Mary é o Eixo, é possível que ela esteja captando lembranças da minha mãe.
Remus arregalou os dois olhos.
-O Eixo? Sua filha é o Eixo? Isso quer dizer que ela é um dos seres mais poderosos da face da Terra? Mas ela só tem cinco anos!
Corine bufou.
-Remus, se nasce com isso.
Mary, Diana e Peter viravam a cabeça de um lado para o outro tentando acompanhar a discussão.
-Afinal, vão decidir se eu sou uma aberração hoje ou amanhã?!
Corine e Remus tiveram um sobressalto ao serem lembrados pelo grito de Mary que não estavam sozinhos no cômodo. Corine se sentia culpada, sempre se sentiu. Todos os dias recebia cartas do Ministério da Magia pedindo que “doasse” sua “cria” para estudos com a finalidade de “proteger a Comunidade Mágica de uma criatura horrível como aquela”, será que só ela era capaz de ver uma garotinha determinada a ser forte e viver em Mary? Será? Será que ia ser que nem com Sirius? Será que não adiantaria ela lutar? Será que nunca iam lhe dar crédito só por ser filha de Voldemort com “uma aberração”?
Corine ainda estava grávida de Diana e via Sirius através das barras de sua cela em Azkaban, o pior de tudo, é que ela sabia que já havia feito tudo ao seu alcance para que vissem, que soubessem, que percebessem, que ele não era um monstro.
-Eu te amo Sirius. Sussurrou Corine, com as mãos entrelaçadas nas dele, a cada dia que ela ia, ele estava mais magro.
-Eu...Eu também te amo...Mas não é perigoso? Para você, que é cardíaca, e para o bebê, vir aqui em Azkaban?
Corine sorriu, triste.
-Eles não ousam se aproximar de mim.
Sirius a olhou, confuso, e perguntou com sua voz que estava começando a ficar rouca, pelo pouco uso, afinal, ele não tinha muito com quem conversar ali.
-Por...Por quê?
-Eu sou filha de Voldemort, lembra? Carrego um herdeiro dele no meu ventre. É como se fosse “um príncipe das trevas”. Ou algo assim. -Sorriu um sorriso sem emoção. Já estava conformada em ser diferente devido a seus laços paternos. -Creio que a minha energia seja tão carregada quanto à dele...
Sirius levou um dedo magro e sujo aos lábios cor-de-rosa dela.
-Shhh...Shhh, não diga isso. Você é maravilhosa...Nunca mais diga isso...
Ela agarrou a mão dele como um náufrago agarra uma tábua e verteu lágrimas enquanto beijava aquela mão magrela e suja como se fosse um buquê de rosas.
-Sirius, eu...Eu te amo. Mas, é a última vez que virei aqui...Por um tempo...Vai ser perigoso para o bebê, eles podem -Corine engole em seco- o nosso bebê. Eu...Eu sinto muito.
-Corine...
-Sim, meu amor?
-Você fará o que eu pedir?
-Sim.
-Qualquer coisa?
-Sim, sim, qualquer coisa.
Sirius tirou a mão de perto dela e se afastou.
-Nunca mais venha aqui.
Corine quase riu com aquela frase absurda proferida por seu esposo. Ele só podia estar brincando...Era óbvio que estava! Ele não a amava incondicionalmente, afinal? Assim como ela, não é?
-Não...-Murmurou- Isso é uma piada, não é? Uma piada de muito mau gosto almofadinhas! Sirius quase enlouqueceu ao vê-la chorar e aquela capacidade inexplicável de ela conseguir parecer tão mulher, tão sensual, tão sexy e, ao mesmo tempo, tão menininha, tão doce, tão...pura.
-Sirius me diga, me diga que você não está falando sério! Sirius se afastou mais das grades e daquela que tanto amava. Seu silêncio foi como a sentença de morte para ela. Corine ficou pálida e se atirou contra as grades chorando, agarrando-as, como se a prisioneira fosse ela, não o marido.
-Não, não! Tudo menos isso! Eu não vou suportar! Eu te amo demais! Não, por favor, Sirius, reconsidere! Por favor!
Sirius se virou em fúria, mal sabia Corine o quanto isso doía nele, mas ela era fisicamente frágil demais, por mais que ela negasse, ele via como aquelas visitas lhe faziam mal, como ela saía pálida dali...Não seria capaz de suportar se ela ficasse mais doente. Mesmo que, para protegê-la, ele tivesse de destruir tudo.
-VÁ EMBORA! NUNCA MAIS VENHA AQUI! NÃO OUVIU NÃO?! EU NÃO QUERO MAIS TE VER! VAI EMBORA!
Corine saiu chorando. Enquanto Sirius escorregava pela parede percebendo que acabara de destruir a sua relação com a mulher que ele mais amara em toda a sua vida.
-Mamãe?
Corine ergueu os olhos e encarou sua filha menor, já não tão pequena assim, sua Diana já tinha sete anos, afinal. Di estava sorridente.
-Sim, mon ange?
-Mamãe, eu terminei de ler aquele livro!
Corine deu um de seus sorrisos “Mona Lisa”.
-Que bom, ma cherie.
Diana se jogou no sofá ao lado da mãe.
-Mamãe, o que você tá lendo, mamãe?
Corine sorriu de novo.
-Romeo and Juliet.
-Romeo...Juliet? Quem são?
-Duas pessoas que se amam mas não podem viver juntas.
-Que triste...
-É, muito triste...
Corine se lembrou dos olhos castanhos de seu amado e fechou os seus. Inalou profundamente aquele cheiro dele que permanecia vivo em sua memória, aquele cheiro que lembrava alecrim. Sorriu aquele sorriso verdadeiro que só dava quando estava perto dele. Diana olhou extasiada a fisionomia da mãe mudar gradativamente, primeiro naquele sorriso de plástico que ela sempre carregava no rosto, depois para um rosto inexpressivo e finalmente para um sorriso de uma beleza devastadora, só então ela entendeu o porquê do Tio Lu sempre olhá-la abobado assim. Foi a vez de uma pequena figurinha, com a camisola branca arrastando no chão e os pés descalços, parecendo um fantasma, agarrada com um ursinho alvo como a neve entrar na sala. Corine nem se virou para ver quem era, só pelo barulho dos passos dava para saber, sempre leves como as folhas do outono em que estavam.
-Sim, Mary?
Mary enxugou as pequenas lágrimas e murmurou:
-Sonhei que diziam que eu era uma porção de coisas horríveis que eu não entendi o que queriam dizer...
Corine, com Diana no colo, se virou para a porta, estendendo uma das mãos para a filha do meio por sobre o sofá e disse:
-Se você não entendeu o que estavam dizendo, como pode saber que eram “coisas horríveis”?
Mary, com a mão na mão da mãe, ainda chorosa, disse enquanto se encaminhava para o sofá:
-Porque Ele gritava e “eu” gritava de volta, chorando, apesar de dizer que “o odiava”, eu sentia uma dor horrível no peito a cada palavra...Por que isso mamãe? Por que eu sou tão estranha?
Corine olhou para a filha e viu a imagem do que ela mais tentava combater em suas crianças. A imagem dela e de sua mãe, a imagem do abandono. Independente de quem tinha abandonado sempre doía. Sua mãe fora abandonada e rejeitada por todos, ela pelos pais e pelas crianças do vilarejo onde morava, sua menina...
-...O que lhe falta Mary? O que lhe faz sentir tão mal? Quem lhe abandonou?
Mary olhou dentro das pupilas de sua mãe e disse:
-Você.
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