Procurando uma razão



Capítulo 8 – Procurando uma razão


Não existia a menor possibilidade de passar o Natal em Hogsmeade, onde haveria uma festinha organizada pelos professores de Hogwarts depois que os alunos fossem para a cama. Sabia que o castelo sem os professores não seria nunca uma boa idéia, mesmo que Filch ficasse vigiando. O que Filch faria, afinal? Qualquer trasgo conseguia enganá-lo. Decidido, resolveu passar a noite vagando pela escola como sempre fazia, distribuindo detenções aos alunos que encontrasse vagando pelos corredores escuros.

Depois da visita de Narcisa, sua mente tinha voltado a ficar confusa e perturbada, com todas aquelas lembranças circulando e lhe atormentando como há muito não acontecia. Não queria se importar – estava pouco preocupado se Narcisa ainda vivia em seu mundinho particular, se fazendo de vítima e esperando que alguém viesse lhe resgatar para uma chance melhor.

Bufou. Tentou em vão escrever um recado no único pedaço de pergaminho que encontrou junto às titicas de coruja na torre, mas as palavras não saíam, simplesmente. Resolveu deixar pra lá. Colocou o pergaminho no bolso e desceu as escadas, ignorando a neve pesada que caía sobre seus ombros.

- Eu estou grávida – ela disse, e ele não sabia o que responder, ou o que dizer. Não se importava. Não queria se importar. Aquele dia não tinha acontecido, ele não viu o que Lúcio fez, ele não...

Ficara ali, ao lado dela, de pé, apenas ouvindo seus sussurros, sem dizer uma só palavra. Sentia vontade de ir embora, mas ao mesmo tempo nada lhe parecia tão errado. Não que se sentisse culpado pelo que tinha acontecido, mas ela era uma coitada, realmente. Não custava nada ficar um pouco ali. E assim se passaram muitos dias, até o final de junho, quando prestaram os exames e a garota tinha se formado.

Soube meses depois que havia perdido o bebê e saído de casa, mas não voltou a ter notícias até a sua própria formatura, quando descobriu que havia se casado com Lúcio Malfoy. Eram tempos difíceis e pouco se lembrava além do que acontecera a si mesmo. Preferia não pensar sobre os acontecimentos ao redor. Tinha mandado as memórias para o fundo da mente mais uma vez e continuava, dia a dia, sem qualquer outra possibilidade de mudar o destino que, pensava, havia sido-lhe traçado desde que nasceu.

Todos os dias, quando acordava, lembrava-se dos Lestrange e do que deveriam estar passando em Azkaban. Sentia-se muito mais leve quando colocava suas botas antes de ir tomar o café-da-manhã, sabendo que estava aproveitando uma nova chance, por mais ilusória que fosse. Ele sabia que não merecia. Dumbledore acreditava que sim, mas obviamente o velho não conhecia metade das atrocidades que havia cometido. Havia um quê de superficialidade naquele convite, ou pelo menos, assim ele acreditava.

Procurava não pensar na morte de Lílian. Já parecia um passado distante, tão longe deslocara o pensamento em sua mente. Ser mestre em oclumência era uma coisa boa, afinal. Tinha a frieza necessária para jogar lá no fundo do cérebro os pensamentos que o atormentavam. E o resto ficava vazio, dando-lhe na face aquela expressão de um túnel negro sem fim.

Tanta era a frieza em seu olhar que certa vez a profa. Sprout, nas freqüentes idas de Snape à estufa, perguntara se chegara a amar alguém. Ele olhou com tamanho rancor para a bruxa e a deixou falando sozinha, levando nos braços alguns vasos de mandrágoras recém-plantadas. Pisava forte, subindo a colina na volta ao castelo. Teve vontade de insultar Filch quando este balbuciou qualquer coisa ao passar, mas conteve-se como o usual. Ao chegar em seus aposentos, largara de qualquer jeito os vasos sobre sua mesa de trabalho, procurando em algum lugar por ali o punhal mais grosso que costumava usar para cortar tais plantas. Olhou embaixo da mesa e nada. Levantou-se, arrumou o cabelo com a ponta do dedo indicador e segurou a cintura com a mão esquerda, em uma pose particularmente ridícula.

- Bela performance – disse Dumbledore, divertindo-se muito enquanto observava o professor de Poções virando-se com pavor no olhar.

- Mas o quê...

- Calma, calma, Severo – interrompeu o diretor, ainda segurando a barriga e tentando segurar o riso – Nada vim fazer aqui a não ser ter com você uma agradável conversa. Mas devo admitir que você é mais surpreendente do que eu imaginava...

E voltou a rir, cortando suas próprias palavras. Seus olhos estavam fechados e sua face ruborizada. Snape observava sem ação, o rosto fechado, sem saber se deveria sentir raiva ou vergonha. A risada de Dumbledore soava fina e extremamente irritante, especialmente naquele momento.

Quando achou que já tinha feito papel de palhaço suficiente, pegou sua capa e simulou uma saída.

- Opa! – disse Dumbledore, recompondo-se – Espere, espere. Aonde é que você vai?

Snape virou-se.

- Interessa?

- Ah sim, Severo, muito me interessa – respondeu Dumbledore, ainda divertindo-se com a situação, porém tentando parecer um pouco mais sério para não deixar que ele saísse – Vim aqui para lhe perguntar uma coisa, mas se tiver algo mais importante para fazer, obviamente me verei obrigado a voltar em outra ocasião.

Snape virou os olhos e tirou a capa, jogando-a de volta à cadeira onde estava, dando-se por vencido. Desceu os dois pequenos degraus que separavam sua área de trabalho da pequena sala de estar de seus aposentos e se jogou na poltrona, olhando emburrado para Dumbledore.

- Me permite? – o diretor perguntou, e Snape fez um sinal com a mão, indicando um provável “fazer o quê”.

Dumbledore conjurou uma pequena mesa com garrafas e xícaras, além de alguns petiscos. Snape começou a bater os dedos no braço da poltrona, indicando extrema impaciência para tudo aquilo. O que o velho queria afinal, brincar de casinha?

O diretor colocou uma rosquinha de açúcar na boca e, lambendo os dedos, recomeçou a conversa.

- Fico feliz que tenha ficado, Severo. Creio que temos muitas coisas para conversar ainda.

- Temos? – perguntou Snape irônico, levantando a sobrancelha e apoiando a cabeça no braço esquerdo – O que exatamente?

- Aceita chá?

- Não.

- Pois bem – continuou Dumbledore – Gostaria de me contar o motivo da visita da sra. Malfoy?

Snape encarou bem Dumbledore antes de responder. O velho mantinha em seu rosto a mesma expressão aparentemente inofensiva de sempre. Não existia no mundo, e Snape tinha certeza, nada mais enigmático do que aquilo.

- Está bem então – prosseguiu – Eu gostaria realmente que ficasse para a festa de Natal, Severo. Está sendo preparado um delicioso banquete em Hogwarts e decidimos nos juntar aos alunos em uma noite tão especial, ao invés de preparar uma segunda festa. Temos alunos tão adultos quanto alguns de nós aqui, você sabe.

Snape continuava somente olhando, com as sobrancelhas pesando sobre seus olhos.

- Eu gostaria de saber se você pretende passar a festa conosco ou ficar em sua própria casa. Fiquei sabendo que há muito não faz uma limpeza no lugar e talvez quisesse dar uma passada... Ué?

Dumbledore foi interrompido pela risada de Snape, um sorriso sarcástico que foi crescendo até virar uma verdadeira gargalhada, para surpresa do professor.

- Fico feliz que esteja mais alegre – disse o diretor, sem saber ao certo o que realmente deveria dizer – Devo entender isso como um sim?

Snape foi aos poucos parando de rir, suas feições voltando ao que normalmente eram: fechadas e duras. Olhou bem no fundo dos olhos do diretor e, mordendo os lábios, respondeu:

- Sequer me lembrava da existência desse lugar, Alvo. E não pretendo voltar lá tão cedo.

- Entendo – continuou Dumbledore – Mas é a sua casa. Era a casa de sua família. Talvez precise de um tempo, depois dos recentes acontecimentos, para voltar, mas...

- Não voltarei e não há absolutamente mais nada que desejo falar a respeito no momento.

- Bom! Então devo entender que ficará para a nossa, hum, festinha?

Snape virou os olhos.

- Um bando de alunos aproveitando a oportunidade para fazer baderna e se esgueirar pelos corredores. Grande festinha – disse, irônico.

- Severo, Severo... São jovens. Deixem que aproveitem. Imagine eu que na minha idade não aproveitei esses momentos. Dediquei-me somente aos estudos e veja o que sou: um bruxo sozinho, sem ter tido a oportunidade de amar alguém. E atrevo-me a dizer que escolhi o animal de estimação correto, porque somente um animal que pode morrer diversas vezes poderia agüentar as minhas lamúrias e...

Snape esboçou um sorriso, mas pareceu mais um “ok, posso ir?”. Dumbledore, percebendo a sua aflição, prontificou-se rapidamente.

- Sei que está ansioso para preparar sua poção de mandrágoras, mas se me permite, eu tenho algo a lhe entregar.

E, com um leve movimento de sua varinha, tirou do bolso um pequeno pacote que se abriu lentamente sobre a mesa que estava entre os dois. Snape olhou absorto para o magnífico colar que fora revelado e brilhava como novo, mas era sem dúvida um objeto bastante tradicional, possivelmente tendo séculos de existência.

- Pegue – disse Dumbledore, observando a feição surpresa de Snape – É seu.

O professor de Poções aproximou sua mão esquerda lentamente do objeto e o segurou com cuidado, trazendo-o para perto de si e olhando-o confuso, sem piscar.

- Meu? – perguntou apertando os olhos – Mas...

- Tome como um presente de Natal de minha parte.

- Isto é um hipogrifo?

- Sim – respondeu Dumbledore – Um pingente raríssimo feito em pura ágata negra e imbuído de intenso poder mágico.

- Conheço as propriedades da ágata negra – ele disse, ainda hipnotizado pelo objeto – Oferece proteção e extrema coragem ao seu portador. Onde conseguiu?

- Pertencia a uma pessoa bastante querida por todos nós, Severo – disse Dumbledore com um tom de voz mais baixo, inclinando-se para frente como se fosse dizer um segredo. Snape, no entanto, estava com sua atenção totalmente voltada ao colar, que examinava com absoluto cuidado. Era delicadíssimo, mas ao mesmo tempo extremamente poderoso, pois somente por tê-lo em mãos já sentia-se com uma força interior que jamais havia sentido em toda a sua vida.

- De quem era final? – perguntou, pausando os olhos em Dumbledore quando vira que este queria dizer-lhe algo aparentemente importante.

Quando percebeu que finalmente Snape lhe conferira a atenção necessária para aquele momento, Dumbledore sorriu serenamente e disse:

- Ele era de Lílian Potter.






- Ei Snape, você se lembra daquele dia em Hogsmeade, em que você derrubou cerveja amanteigada na Evans?

- Obviamente.

- Você sabe onde ela foi depois?

- Eu sugiro que você pergunte a ela.





Desde que recebeu aquele colar, Snape ficara mais introspectivo que o normal. Passava horas dentro do seu quarto escuro, pois se recusava a abrir as cortinas, apenas contemplando aquele delicado pedaço de pedra que recebera de Dumbledore.

Não queria receber visitas. Quando Dumbledore apareceu pela lareira, ele trancou a porta de seu quarto de modo que o diretor, alguns minutos depois de tentar convencê-lo a sair para comer um pedaço de torta de amoras, foi embora sem voltar durante dias. Sequer no Natal teve vontade de sair. A idéia de passar a festa distribuindo detenções pareceu estranhamente insignificante para ele.

Em uma noite, cuja data desconhecia, ele resolveu sair, dar uma volta pelo castelo. Não poderia ficar trancado para sempre, preso por causa de um colar. Mas ele poderia jurar que, quando o olhava fixamente, conseguia enxergar um tom esverdeado que lembrava os olhos de Lílian, ali dentro mesmo, mas segundos depois o guardava, sabendo que era bobagem. Onde estava com a cabeça, afinal?

Subiu silenciosamente as escadas das masmorras, somente a luz das velas iluminando sua passagem. Não havia ninguém e era o esperado, pois não teria saído, caso tivesse. Notou, para sua surpresa, que a lua estava cheia – os fortes raios de luz entravam pelas altas janelas de Hogwarts, agora quase no terceiro andar. Gostava de caminhar no escuro, onde ninguém o veria ou o incomodaria.

Observava o lago agora, com manchas prateadas sendo cortadas pelo intenso mergulho da lula-gigante, como há tanto não via. E foi então que percebeu, mais adiante, a existência de um objeto que poderia jurar não estar ali há tempos atrás – se bem que ficara durante bons dias trancado, e ele poderia ter sido trazido para algum fim.

Mas estava em um canto, não estava em destaque. E havia um enorme pano bege e sujo sobre ele. Aproximou-se, tentando adivinhar o que poderia ser. Seus dedos longos tocaram suavemente quase toda a sua extensão lateral, como se aquilo fosse necessário para descobrir do que se tratava. E, com a curiosidade falando muito mais forte, puxou o pano para baixo, levantando uma grande quantidade de poeira e revelando uma enorme moldura feita em ouro, com inscrições desconhecidas, e protegendo no centro o maior espelho que ele já tinha visto.

Ainda admirado e perguntando-se porque aquilo estava escondido em um canto escuro de Hogwarts, ele se afastou para observar melhor – o espelho deveria ser meio metro maior do que ele. E, sem saber se estava com sono ou se sua mente estava tão confusa quanto poderia estar, ele viu a si mesmo, mas havia mais alguém.

Uma figura iluminada pela luz da lua se aproximava dele, caminhando lentamente. Seus cabelos vermelhos eram iluminados pelos raios prateados do luar e em seu rosto havia um sorriso de sincera felicidade. Ele se sentiu bem. Deixou acontecer. Esqueceu-se da situação e viu-se em um sonho onde sentia algo que jamais teve. Uma sensação de prazer, conforto, paz.

A mulher chegou mais perto e fez sinal de que ia abraçá-lo, e na empolgação do momento ele simplesmente virou-se e viu um pavoroso nada, procurando em todos os ângulos onde ela estava – onde poderia estar. Atônito, voltou seu olhar para o espelho e viu a mesma mulher ruiva no final do corredor, em sua posição inicial. Ao virar-se, no entanto, ela já não estava lá. Em profundo desespero e com as mãos tremendo, apertou os olhos com as palmas e sentiu vontade de gritar. Sabia que estava enlouquecendo. Ficara tempo demais dentro daquele quarto alimentando ilusões, e agora não conseguia sequer caminhar sozinho.

Saiu correndo daquele lugar, sem coragem de olhar para trás e ver aquele espelho novamente. Tinha medo do que poderia enxergar desta vez. Ao chegar em seus aposentos, segurou sem olhar o pingente dentro de suas mãos, deitando na cama e encolhendo-se o máximo que conseguira. Fechou os olhos, forçando para esvaziar sua mente, mandar aquele pensamento embora. Parecia que tudo havia ficado mais tranqüilo pelo simples fato de carregar consigo aquele colar. E assim, com as mãos fechadas junto ao peito, depois de tantas noites em claro ele simplesmente adormeceu.

Acordou algum tempo depois, com uma batida familiar de bico de coruja vindo da janela.

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