Medos e esperanças
Capítulo 2 – Medos e esperanças
O corpo de Severo Snape continuava imóvel no chão, com exceção de seus olhos, que agora lacrimejavam com relutância. Não sabia se sentia raiva ou esperança. Dois sentimentos que, por certo, jamais tinham sido misturados, mas a partir desse momento seriam constantes em sua vida. Dumbledore pôde ver o sofrimento nítido que emanava daqueles profundos olhos negros, e pediu a Hagrid que o ajudasse a levá-lo às masmorras.
Ele tentou pronunciar algumas palavras, mas ainda estava muito fraco. Não se lembrava exatamente do que tinha acontecido, sua cabeça doía muito e sua visão estava embaçada. Teve a nítida sensação de que iria desmaiar a qualquer momento... Tudo ficou escuro...
E desmaiou.
Hagrid o colocou sobre a cama do quarto que agora estava vazio, do então professor de poções. Ele poderia ficar ali durante algum tempo, até se recuperar. Não poderia ser visto – era perigoso demais e Dumbledore sabia disso.
Não podia falar, mas sentiu seu corpo sendo aquecido por um grosso cobertor de lã e seu rosto amaciado por um travesseiro com cheiro de sândalo – o seu preferido. Porém, tudo fuincionava como em um sonho – ele não podia falar ou agir, apenas sentir o momento. Estava fraco demais para pensar na morte, apesar de ter consciência do quão perto esteve dela, mais uma vez. Sempre estava, não importava onde ia.
Lembrou-se dos gritos das pessoas que morreram à sua presença, apavoradas pelas figuras de negro mascaradas que empunhavam suas varinhas sem piedade, a mando de um Senhor das Trevas a quem todos temiam. E ele estava lá, assim como tantos outros – todos aqueles que tinham entregado suas vidas em troca de uma marca que agora queimava em seu braço, chamando-o para a mesma morte que presenciara tantas vezes. Sobreviveria? Não havia tempo para pensar naquilo – precisava dormir. Não fazia isso há séculos e de repente esta lhe pareceu a única coisa que poderia ser feita no momento.
- Vamos, Hagrid – disse Dumbledore, colocando a mão carinhosamente sobre o braço do rapaz – É provável que durma durante dias. Eu me encarregarei de voltar aqui mais tarde para ver se ele está bem.
- Ãhn, professor? Digo, Dumbledore – Hagrid sempre corava quando Dumbledore o olhava daquele jeito, desde que pedira que não o chamasse de professor ou senhor, mas pelo seu nome.
- Sim, Hagrid?
- Eu... - ele sussurrou, olhando apreensivo - Não entendo.
- Você irá entender, Hagrid, você irá entender. Agora, vá dormir. Você também precisa descansar. Veio de muito longe e seu trabalho foi imenso. Descanse, e pela manhã me procure para conversarmos.
Os dois fecharam a porta das masmorras e deixaram o jovem Snape dormindo na cama, em um sono tão profundo que qualquer um que o visse poderia jurar que era eterno.
Passaram-se alguns dias inteiros, e finalmente Snape despertou. Sentia como se tivesse dormido há séculos, o que de certa forma não estava tão longe da verdade. Não estava tão frio e sobre ele havia apenas um lençol de veludo vermelho. Não tinha mais suas roupas surradas, mas um conjunto de pijamas excepcionalmente confortável. Demorou alguns segundos até que reparasse na presença de Dumbledore no quarto, observando-o atentamente. Ainda estava em Hogwarts?
- Já não era hora! – disse Dumbledore, forjando um simpático sorriso – Creio que já esteja recuperado?
Snape sentou-se lentamente na cama e passou a mão esquerda sobre o peito, sentindo a textura das cicatrizes que agora marcavam a sua pele, resultado da luta que tivera há poucos dias. Franziu as sobrancelhas olhando para Dumbledore, ainda confuso pelo que estava acontecendo.
- Onde... estamos?
- Nas masmorras de Hogwarts.
Snape continuava olhando cada detalhe do quarto, tentando assimilar calmamente onde estava e porquê. O que exatamente estava fazendo em Hogwarts?
BAQUE!
- Ah! – disse Dumbledore, levantando-se – Deve ser o Hagrid. Eu dei permissão para que usasse a lareira para chegar até a sua.
- A minha... o quê?
Dumbledore apenas sorriu em resposta e deixou um desnorteado Snape sentado na cama, esperando que voltasse. Em alguns segundos, um empoeirado Hagrid abaixou-se para passar pela porta do quarto, seguido por Dumbledore, que estava sorrindo novamente, enquanto o olhava. Droga, velho, o que quer de mim?, Snape pensou. Quebre esse silêncio maldito e me diga logo o quê...
- Você já vai saber, Severo – disse o professor, como se tivesse lido seus pensamentos.
Snape tentou sussurrar alguma coisa, mas só o que conseguiu foi abrir a boca algumas vezes, soltando alguns gemidos irreconhecíveis.
- Bem, nesse caso – continuou o diretor – Hagrid, creio que agora seja um bom momento para esclarecer tudo.
Hagrid sorriu nervoso, seus olhos indo de Dumbledore para Snape repetidamente. Ele bateu a mão algumas vezes no joelho, ensaiando falar, até que conseguiu e decidiu falar tudo de uma vez.
- O nosso amigo Hagrid tinha recebido um pedido meu para que fosse até a vila de Godric’s Hollow levar um recado aos Potter, porém percebeu que você havia chegado mais cedo.
Snape escutava atentamente.
- Hagrid? – Dumbledore olhou para o lado, fazendo um sinal para que o meio-gigante continuasse.
- Bom, eu havia feito como o senhor mandou, indo até... Godric’s Hollow. E céus, sabe-se lá como sabia, mas ele realmente estava lá, parado à porta como um morcego à espreita, esperando a oportunidade.
Os olhos de Snape se apertaram. Hagrid estava lá?
- Então a porta se abriu. Era o Tiago, sabe... E não parecia muito amigável. Gritou algumas coisas sobre ele saber onde estavam, mas que não podia falar nada, mesmo sendo um Comensal... asqueroso... porque não era o fiel do segredo.
O punho de Snape se fechara. Dumbledore olhou rapidamente para o rapaz. Hagrid não sabia se deveria parar de relatar o que havia presenciado, com medo da reação do jovem que estava ali deitado.
- Continue, Hagrid – disse o diretor, fazendo-lhe um sinal com as mãos.
- Pois bem. Foi muito rápido, Dumbledore, muito rápido... Ele... Snape... tentou falar alguma coisa, mas Tiago parecia fora de si. Não estava ouvindo, realmente. Tinha sua varinha em punho, assim como Snape. Não vi exatamente como aconteceu, eu gostaria de ter impedido, mas eles foram longe demais... Gritaram alguns feitiços um contra o outro, mas Snape... Não parecia querer machucá-lo...
“E então Tiago se aproveitou da situação e o machucou de verdade, Dumbledore. Ele caiu no chão realmente machucado, seu sangue espalhado por todos os lados. Vi o pânico nos olhos de Tiago quando deixou o corpo ali e entrou novamente em sua casa. Eu corri o mais rápido que pude e trouxe o jovem Snape para cá, como o senhor mandou. O que... o que o senhor acha que significa? Ele é realmente um... Comensal da Morte, é como dizem, não?”
- Sim, Hagrid – respondeu Dumbledore calmamente – Realmente é dessa forma que os seguidores de Voldemort se intitulam.
- Então por que raios o senhor quer Snape aqui? – disse, ignorando o fato de Snape estar no recinto, o que já o estava irritando - Se ele é um seguidor de... Você-Sabe-Quem, ele...
- Calma, Hagrid – disse Dumbledore, acalmando o rapaz – Eu conheço Severo muito mais do que ele imagina. Eu sei o que ele estava fazendo no esconderijo dos Potter e como chegou ali.
- O senhor sabe? – disse Snape, apertando os lábios em sinal de desprezo.
- Sei.
- Bem, então... eu... então eu... quero escutar – disse Hagrid - Quer dizer, eu posso, não é? Posso ouvir o que o senhor irá falar para ele?
- Claro que pode, Hagrid – sorriu Dumbledore, virando-se para Snape.
Ele continuava encarando Dumbledore, uma mágoa crepidante em seus olhos cansados, os cabelos sobre uma parte de sua face. A marca negra queimava em seu braço esquerdo e ele reprimiu os olhos de dor, a tensão em seu rosto. Segurou o braço com a mão direita e o levou para perto de seu corpo, como se sentisse a mais insuportável das dores. Quisera estar dormindo e não sentir nada, como estava há pouco. Dumbledore olhou calmamente para o braço, e em seguida voltou sua atenção aos olhos do rapaz.
- Severo – disse, enquanto este se recuperava e olhava de volta – Você sabe porque está aqui. Eu sei o que você foi falar com Tiago, e sei que ele não acreditaria em você, assim como não deixaria que outra pessoa acreditasse em você.
Snape franziu os olhos. Não sabia se o velho estava blefando. Teria que se concentrar e fechar sua mente, como há tempos aprendera. Evidentemente estava distraído e Dumbledore lera seus pensamentos. Abriu a boca para dizer algo em forma de protesto, mas foi interrompido novamente.
- Shhhh, você não precisa falar agora. Basta que me diga se estou certo ou não no que vou lhe falar. Você pode fazer isso?
Snape levantou a mão impaciente e bateu-a de volta contra a cama, como quem quisesse dizer “vai em frente”. Dumbledore continuou:
- O fiel do segredo traiu seus amigos, não é verdade?
Snape o encarou profundamente. Como ele sabia?, pensou.
- E você foi até lá para alertar Tiago, pois tinha uma dívida com ele.
Os olhos de Snape estavam arregalados. Ele não sabia o que dizer, ou o que fazer. O que estava fazendo ali, exatamente? Por que aquilo tudo estava acontecendo? O que Dumbledore queria dele, afinal? Estava muito grogue para esboçar qualquer reação, e mesmo se pudesse, agora estava curioso para saber onde aquela conversa os levaria, e a conversa fiada de Dumbledore - ou assim lhe pareceu - não parecia nunca chegar ao ponto onde revelaria suas verdadeiras intenções.
- Está correto, velho. O que quer de mim agora? Que eu distribua flores em Hogsmeade?
Dumbledore alterou levemente a expressão em seu rosto, mostrando-se muito mais sério do que estivera até então. Olhando profundamente em seus olhos, disse:
- Voldemort irá matá-lo, Severo, se souber de sua traição. Você juntou-se a ele e está a seus serviços. O que espera que aconteça quando souber que você o traiu?
Os olhos de Snape e Dumbledore se encararam durante alguns preciosos segundos. Em tão pouco tempo, e sem qualquer palavra, tanto fora entendido por ambos. Hagrid apenas observava, apreensivo diante do silêncio necessário, quebrado finalmente por Snape.
- E o que quer de mim, afinal?
- A resposta, Severo, é o que você quer de si mesmo.
Não houve resposta, então Dumbledore continuou.
- Você não foi a Godric’s Hollow apenas para saldar sua dívida com Tiago. Você não arriscou a sua vida por uma bobagem dos tempos da escola, para dizer a ele que um de seus amigos havia lhe traído. Você foi até lá, Severo – disse – em uma tentativa desesperada de salvar a única pessoa que já amou em sua vida.
Os olhos de Snape se apertaram. Seu corpo inesperadamente tremera. Um calafrio subiu por toda a sua espinha. Como poderia ser tão burro? Como poderia ter demonstrado algo tão íntimo, que estava tão fechado dentro de si, como tudo o que acontecia em sua vida? Emoções? Ele já não as tinha. O que aquele velho estava falando? Como ele sequer poderia imaginar que tinha arriscado a sua vida para salvar...
- Lílian – disse Dumbledore, como se completasse o pensamento do rapaz. Snape, por sua vez, estava sem fala – Você daria a sua vida por Lílian, Severo. Preferia ser morto por Voldemort do que vê-la morta. E foi por esse motivo que você foi até lá. Essa foi a verdadeira razão.
- O que você pode saber sobre isso? – disse rispidamente – Você não estava lá. Ninguém estava lá. Apenas eu e aquele Potter! Arrogante demais para acreditar que poderia ter sido traído por um amigo!
- Exatamente – respondeu Dumbledore – E você sabia disso, Severo, o que me leva a ter certeza de que não iria até lá apenas para tentar convencê-lo, por mais que tenha com ele uma dívida vital.
A marca no braço esquerdo de Snape ardeu novamente. Seus olhos refletiam a dor que vinha de dentro de sua alma. Balançou a cabeça, pensando em como havia sido burro, impulsivo, inconseqüente. Voldemort o mataria – isso era certo – e aos Potter também. De nada adiantara sua atitude irresponsável, e agora estava sendo convocado - a marca queimava como nunca.
- Eu... preciso ir – ele disse, apertando o braço para tentar fazer a dor diminuir – Não sei o que quer de mim, mas preciso ir.
- Se for agora, morrerá – disse Dumbledore.
- E QUE ALTERNATIVA ME RESTA? – gritou o jovem Snape, com uma raiva desesperada no olhar – Acha que pode me manter aqui como a um prisioneiro? Para nada?
Respirou profundamente ao dizer a última frase. Dumbledore esperou que se acalmasse e continuou tentando conversar.
- Para falar a verdade, Severo, eu espero sinceramente que você fique.
Snape virou a cabeça lentamente para Dumbledore, encarando-o confuso.
- Ficar? Ficar, velho? Não vê o que eu tenho no meu braço? – disse, esticando o braço esquerdo inflamado para que Dumbledore pudesse ver – Eu estou a serviço do Lorde das Trevas! Ninguém que se alia a ele deixa de lhe servir senão quando morto!
- Eu sei muito bem disso, Severo – respondeu Dumbledore, com a mesma calma de antes – Porém, acredito ter me mostrado hoje habilidades oclumentes que vi em poucos bruxos de meu tempo. E olha que já tenho uma idade considerável...
- O que quer dizer?
- Quero dizer, Severo – continuou – Que posso ajudá-lo a salvar a vida de Lílian Potter. E a sua também, é claro, mas apenas se você quiser e estiver disposto – se estiver preparado.
Snape o encarou profundamente. Havia desespero por trás da frieza em seu olhar.
- Eu... preciso ir embora – ele disse, simplesmente.
- Está bem – respondeu Dumbledore – Mas eu espero que pense a respeito do que acabei de lhe dizer. Não pense em mim, Severo. Pense em você.
- Não tenho tempo para pensar em mim – respondeu friamente, enquanto colocava suas vestes negras surradas em seu corpo.
- Talvez devesse pensar sobre isso também – respondeu Dumbledore sorrindo gentilmente, tentando quebrar o clima obviamente tenso – Hagrid, leve-o até os portões da escola. Depois me encontre no salão comunal. A festa de encerramento deve estar para começar. Ah, Severo – disse, virando-se novamente para o jovem Snape que agora amarrava a sua capa – Sua antiga casa, a Sonserina, levará a taça este ano. Acredito que fique feliz com este acontecimento.
Snape olhou com tédio para o professor e em seguida para Hagrid, esperando para que este o levasse aos portões de Hogwarts. Dumbledore, no entanto, o chamou novamente.
- Não se preocupe com a marca em seu braço – disse, olhando para o braço esquerdo do rapaz – Todos nós carregamos conosco profundas marcas que fazem de nós o que somos hoje. Se pudéssemos nos livrar delas, certamente nossa vida não seria pela metade o que se tornou agora, tampouco traria consigo as escolhas que podemos fazer no presente.
Snape olhou mais uma vez para o diretor e em seguida virou as costas, levantando a gola do casaco negro, seguindo Hagrid e deixando as masmorras. Dumbledore olhou para a lareira com um sorriso sereno no rosto, pegando um pouco de pó de flu com as mãos e voltando à sua sala para preparar com os outros professores a decoração do jantar. A festa deste ano seria, para ele, a lembrança de uma noite muito especial.
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