Se um dia você foi embora
Capítulo 1 – Se um dia você foi embora
Chovia em Hogwarts. Não fazia um tempo frio, como nos outros dias de inverno, mas a chuva era o suficiente para fazer os estudantes se esconderem em seus dormitórios, esperando o final de semana passar. Nem mesmo a partida de quadribol entre Grifinória e Sonserina fora o suficiente para tirar os meninos da cama. Estavam todos cansados, exaustos e ansiosos para a semana de provas que se aproximava. Era o final do ano letivo e tudo o que desejavam era voltar para as suas casas e aproveitar o verão longe de livros, pergaminhos e poções.
O diretor da escola, Alvo Dumbledore, continuava em sua sala, andando em círculos, pensativo, misterioso, durante quase todo o tempo. O que havia nas lembranças daquele poderoso bruxo, poucos sabiam. Ou achavam que sabiam. A verdade é que ele pouco se abria às pessoas. Teve poucos amigos – frutos de uma vida solitária por opção, ele pensava. Os livros sempre foram menos traiçoeiros que as pessoas.
Olhou mais uma vez para a carta sobre a mesa – um pergaminho luxuoso, escrito com letras garrafais, assinado por seu amigo Nicholau Flamel. Não se falavam há tempos. Ele entendia. Flamel deveria estar aproveitando a vida junto à sua esposa, devidamente protegidos. Não eram poucos os que queriam o que apenas ele e Dumbledore conseguiram produzir: o elixir da vida.
Os olhos azuis correram para o outro canto da sala, para dentro do armário onde guardava sua porção do elixir. Usaria algum dia?, pensou, mas logo se livrou desses pensamentos. Havia coisas mais importantes a serem planejadas no momento.
Fawkes, a fênix, entrara pela janela. Pousara sobre o ombro do diretor, acariciando ternamente seus cabelos com um movimento suave de sua cabeça. A plumagem vermelha estava em seu pleno vigor – tinha orgulho da ave. Com um sorriso sincero, passou os dedos sobre suas penas e compreendeu seu recado.
- Ele chegou então? – perguntou à ave – Hagrid está aqui?
Mas já conhecia a resposta. A fênix soltou um piado que mais parecia o canto de um anjo quando banhado pela luz do sol, e então ele esperou. Colocou a ave em seu poleiro particular e sentou-se à mesa, fitando a porta. Depois de alguns poucos minutos, e talvez alguns fortes passos subindo as escadas, ele pôde ver o que o esperava.
Rúbeo Hagrid entrara pela porta com um grande chute – suas mãos ocupadas traziam um corpo imóvel, pálido, trajado por longas e surradas vestes negras. O diretor se levantou para ver quando o corpo fora jogado no chão, em frente à sua mesa.
- Ele está aqui – disse Hagrid, com olhar de grande expectativa e cansaço – Eu o trouxe, Dumbledore. Ele estava...
- Eu sei onde ele estava, Hagrid – disse Dumbledore calmamente, olhando para o rapaz por cima de seus oclinhos meia-lua – Sente-se. Suponho que deva estar cansado?
- Sim, senhor, o-obrigado.
Hagrid olhou desencorajado para a cadeira que parecia minúscula perto de seu corpo e olhou novamente para o diretor, constrangido.
- Oras, Hagrid, não precisa ficar assim toda vez que vem aqui. Você tem minha permissão para usar magia. Onde está seu guarda-chuva – ah!
Dumbledore sorriu contente quando Hagrid mostrou que estava munido de seu guarda-chuva florido mágico. Sua varinha havia sido destruída quando fora expulso de Hogwarts, mas, ao contratar o rapaz como guarda-caças da escola, Dumbledore lhe permitiu que usasse magia em situações de emergência com aquele artefato, construído com o que sobrara de sua varinha.
- Ãhn, está bem… Engorgio - disse, sem graça, e rapidamente a cadeira tornou-se do tamanho adequado ao seu corpo e ele pôde se sentar.
Enquanto Hagrid limpava o suor do rosto com um pedaço de pano sujo que carregava sempre com ele para tais ocasiões, Dumbledore olhava para o corpo imóvel no chão atentamente. Estava ferido, é claro, pois havia muito sangue em suas vestes rasgadas. Mas estava vivo, e era o que lhe importava.
Ajoelhou-se. Tocou em seu rosto – estava frio. Respirava, porém. De maneira bem fraca, mas respirava.
- Ele… ele vai sobreviver? Dumbledore? – a voz de Hagrid quase não saiu.
- Ah vai – respondeu Dumbledore, olhando para o rapaz magro no chão – Só está ferido. Vai demorar um pouco, mas irá se recuperar.
- Eu não pude fazer nada. Quando eu cheguei, ele, digo, os dois...
- Shhh – interrompeu Dumbledore – Você está cansado, Hagrid. Acredito que o nosso jovem aqui precise de cuidados antes de nossa longa conversa. Eu poderia abusar um pouco mais de sua ajuda para levá-lo às masmorras?
- Às masmorras? Mas... o professor Slughorn…
- Ele não irá se importar. Há tempos vem preferido descansar em sua própria casa à Hogwarts. E eu não conheço lugar melhor para deixar este rapaz em resguardo do que lá – disse, pegando sua varinha.
- O senhor...
Mas Dumbledore não respondeu. Apenas apontou a varinha para os ferimentos que teimavam em sangrar daquele corpo e sussurrou:
- Enervate!
Lentamente, os dedos longos e delineados começaram a se mexer no chão. Os olhos, ainda fechados, ensaiavam um movimento que não aconteceu. Suas mãos tremeram contra o chão de pedra, em movimentos involuntários. O sangue estava sendo sugado pela varinha do diretor, que aguardava calmamente, ajoelhado ao seu lado. Esperaria dias, se assim fosse necessário, até que o jovem rapaz se levantasse.
Os longos cabelos negros estavam embaraçados, espalhados pelo chão assim como sua longa capa, que estava rasgada. Suas vestes, antes de um veludo negro profundo como o céu da mais negra noite, agora disputavam a luz com o vermelho púrpura do sangue que se impregnara no tecido. Havia terra em seus sapatos e por todo o seu corpo havia sinais de uma luta quase mortal.
Sob a luz do sol poente, no entanto, seus olhos começaram a se abrir. Hagrid observava atentamente, aguardando algum sinal do diretor. O silêncio permanecia já há alguns minutos e tudo o que se ouvia era o canto das corujas saindo de suas tocas para a rotineira caçada noturna. Era assim que as corujas caçavam – à noite, quando apenas elas enxergavam suas presas, quando nem ao menos estas enxergavam a si mesmas.
E foi nesse momento, quando a luz do sol estava indo embora, que ele acordou. Seu olhar vago traçou uma circunferência inteira pelo aposento onde agora estava deitado, até chegar ao exato ponto onde estavam os olhos azuis do diretor, encarando-o confuso. Mal se lembrava daqueles olhos, mas jamais poderia tê-los esquecido. Poucos lhe observaram com tamanha importância no olhar.
Tentando adivinhar o que estava fazendo ali, em uma paz que contrastava com toda a sua vida até aquele momento, ele fechou novamente os olhos, acreditando ser um sonho. Quando os abriu, no entanto, ele ainda estava lá.
E o diretor, entendendo a sua aflição, lhe estendeu um sorriso como aqueles que vemos nos mais belos filmes, onde nada no mundo poderia interferir naquele momento. Tentou retribuir, mas sentiu fortes dores por toda a face – não poderia. Olhou para o diretor, como em um sonho, a fraca luz do sol poente escondida atrás do seu rosto. Apertou os olhos.
Todos aqueles anos de espera se resumiram na única palavra que poderia descrever aquele instante. Na única palavra que poderia ajudar o rapaz a descobrir quem ele era, onde estava, de onde veio, e talvez para onde iria.
Sem ao menos mudar sua expressão, com um sorriso paternal na face, o diretor encarou mais uma vez aqueles profundos olhos negros, que refletiam dor e morte, sussurrando o seu nome.
- Severo.
E isso foi o suficiente para trazer à tona qualquer outra lembrança que tenha sido esquecida, mesmo quando ele esquecera a si mesmo.
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