Um Bom Conselho



De uma coisa Hermione tinha total certeza: a coroa teria como destino a cabeça da Rainha Branca, mesmo que esta não quisesse pairar sobre os cabelos loiros. Talvez ela devesse intrometer-se com a espada que arrastava pelo chão, debatendo-a sem rumo por entre as duas soberanas, ou então usava de sua magia e intrometia-se do modo mais sutil que conseguisse. A varinha estava empunhada e o feitiço pronto em seus lábios... Mas porque a garota ainda temia acabar com aquela luta?


Não bastava ouvir as lamúrias dos feridos ou então ter seu olhar captado pelos corpos sangrentos e de membros arrancados para se convencer? A coroa vibrava ainda mais em sua cintura, e agora o vibrar dentro de si era maior, crescente, assim como a dificuldade de respirar. A varinha foi erguida e com esse movimento, os lábios da bruxa se separaram. Com apenas uma palavra ela acabaria com todo aquele alvoroço e levaria o País das Maravilhas a um novo começo.


- Impedi – Hermione começou, sem altear muito sua voz, mas um ruído alto, um xingamento gritado e a queda de uma das soberanas fez com que o feitiço ficasse entalado em sua boca, enrolando sua língua. Ela preocupou-se, virando o olhar o mais rápido que pode para o acontecido. A soberana caída despertou ainda mais o vibrar implorativo da coroa brilhante.


A Rainha de Copas, assim como todo seu esplendor, estava caída de costas no chão de pedra escura do pátio. Seus braços e pernas estavam abertos, mas ela ainda se erguia apoiando-se nos cotovelos. A espada estava longe demais para que ela conseguisse buscá-la e sua respiração era muito rápida, quase pesada. Ela sorriu com o canto dos lábios, caracteristicamente.


- Então você conseguiu me derrubar, parente – Ironizou a soberana caída. Selene mantinha a espada apontada para a mulher, respirando assim como a outra e suando tanto quanto as outras centenas de soldados que aos poucos paravam para entender o que acontecia. Hermione não tirara os olhos da luta, mas percebera que Rabbit agora estava parado atrás dela.


- Você está bem? – Ele perguntou, agarrando a mão dela. Hermione confirmou com a cabeça, encostando-se ao corpo dele.


- Isso não precisa terminar assim – A Rainha Branca pronunciou com dificuldade, devido à falta de fôlego, repetindo a frase cheia de compaixão que expulsara por seus lábios mais cedo. Agora todos os soldados estavam parados e muitos deles haviam baixado ou largado suas espadas e escudos, prontos para qualquer tipo de acordo de paz que viesse a acontecer.


- Ah precisa sim – a outra suspirou, balançando a cabeça positivamente. – Se não acabar assim, como será? Eu tomarei chá na sua casa toda sexta feira e sairemos para andar de bicicleta pelas trilhas floridas do País das Maravilhas? – Ela mantinha o ar irônico, sem demonstrar o menor sentimento de querer que as coisas terminassem de outra maneira. Da maneira da Rainha Branca, mais precisamente. - Isso precisa terminar assim.


- Você será presa. – Selene finalmente disse, depois de alguns segundos enormemente longos. Seus olhos brilhavam por lágrimas sem sentido. A mulher que estava em sua frente não merecia a menor consideração, principalmente depois de acabar com cinco gerações da própria família.


- Prefiro a morte! – Sigel gritou, pondo-se em pé.


- Você não terá a morte! – Selene gritou no mesmo tom, usando também o mesmo volume, mas impulsionando o corpo de uma maneira que não só pedia ou exigia respeito, mas o impunha. A Rainha de Copas apertou os lábios. – A morte seria uma punição rápida demais, considerando tudo o que você fez. A morte é uma punição pouco dolorida. – Sigel apertava as pálpebras uma contra a outra, à medida que a soberana Branca continuava falando. – Não – A Rainha Branca repetiu, sacudindo a cabeça, mas baixando a espada em sinal de paz. -, você passará a eternidade apodrecendo nas celas de suas próprias construções, banhada pelas lembranças daqueles a quem você feriu e extinguiu.


O rosto da Rainha de Copas não tinha mais espaço para se contorcer. Toda a magnitude da soberana se esvaía cada vez mais no intervalo de segundos que levou entre as palavras da Rainha Branca e as palavras que a soberana de Copas soltou. Sua voz era cavernosa, claramente irritadiça, mas Selene não temeu. Apenas ergueu seu queixo, sem tirar os olhos da parente, mas ainda assim conseguindo perceber que os soldados se aglomeravam ao redor das duas, sem mais se preocuparem em estar ao lado de um inimigo. Alguns inclusive debatiam sobre a luta das soberanas.


- Você não vai conseguir me manter presa pela eternidade – A Rainha de Copas açoitou, tentando ao máximo fazer a outra desistir da Ideia da prisão. Ela já havia implorado pela morte, tudo que a Rainha Branca fizesse poderia ser encarado como bônus. – eu não vou ficar presa pela eternidade.


- Não – A Rainha Branca concordou, balançando a cabeça.


- Você sabe que eu não ficarei presa pela eternidade.


- Não – Ela balançou a cabeça novamente. – Não, porque enquanto a coroa de rainha não tocar sua cabeça novamente, o que não acontecerá nunca mais, você pode ter certeza – ela ergueu uma das mãos, como quem agradecia aos céus. – você será como qualquer outro humano e terá não a eternidade, mas um tempo limitado na prisão.


- Como? – Hermione bufou, apertando a mão de Rabbit, enquanto arqueava ao corpo para trás, esperando ouvir a resposta em seus ouvidos. Rabbit sabia muitas coisas sobre aquele lugar que a bruxa nunca imaginava ser possível.


- Entendi – Ele sussurrou para si mesmo, depois baixando a boca até os lóbulos das orelhas dela. O sopro calmo de sua respiração degladiava com os minúsculos pelos de suas orelhas, fazendo-os se arrepiarem. – A juventude da Rainha de Copas veio graças à coroa. Claro que eu nunca teria tido como saber disso, porque a maioria das pessoas não chegou a viver a era de ouro do País das Maravilhas.


- Portanto, nunca antes haviam visto outra rainha vivendo mais de 100 anos e aparentando ser tão jovem quanto esta rainha. – Hermione concluiu, dando por certo seu raciocínio, sem nem mesmo esperar por uma confirmação de Rabbit.


- Exato – ele concordou, beijando de leve o pescoço dela.


Era estranho, mas mesmo com uma batalha de gigantes acontecendo em frente a eles; uma batalha que mudaria totalmente o destino de um país inteiro e todos os seus habitantes, Hermione já se contava por satisfeita e segura. Conseguira fazer o que devia fazer e ainda por cima, parecia ter encontrado um porto seguro, finalmente. As duas soberanas ainda estavam nas mesmas posições, apenas fuzilando-se com os olhos, quando tudo mudou.


Ouviu-se um grito, um arranhar de espadas e um feitiço sendo lançado. Tudo aconteceu tão rápido que parecia surreal. Hermione não se admiraria mais se acordasse perto do salgueiro lutador, congelando e com baba escorrendo pelo canto da boca. A Rainha de Copas, que já estava em pé, em um milésimo de segundo buscou de dentro das botas uma adaga muito afiada, pondo-se para cima da Rainha Branca. Esta, pega de surpresa, não pode fazer muita coisa e vendo a adaga voar em direção ao seu peito, gritou.


Hermione ergueu a varinha no instante exato, pronunciando o Impedimenta que ficara preso em sua boca anteriormente. A Rainha de Copas foi jogada para trás, assim como a Rainha Branca. A coroa puxava a bruxa para o centro daquela briga e ela não conseguiu resistir, sentia-se fraca. A dificuldade para respirar estava ficando muito maior e agora ela sentia que algo se mexia dentro de si, algo que não o vibrar excitado da coroa.


A adaga da Rainha de Copas estava atirada ao chão, bem ao centro da luta, para onde agora Hermione era puxada. Rabbit não tentou ajudar. Com a varinha em punho, com valete desconcertado por Hatter e tendo a soberana de Copas atirada ao chão e totalmente desarmada, Hermione estava, ironicamente, em posição de rainha. Selene aos poucos se ergueu, mas a outra permaneceu onde estava.


- Obrigada – Agradeceu Selene, erguendo-se com a ajuda de alguns soldados, entre eles Hatter. – Não sei o que teria acontecido.


- Ela mataria você. – Hermione foi fria na colocação, sem realmente querer ser.


- Ela me mataria – A Rainha Branca considerou, sacudindo a cabeça. Claramente, ela não achava que aquilo fosse algo impossível. A outra soberana ainda estava no chão, contida pelo feitiço de Hermione.


Ela sorriu com o canto dos lábios, olhando para todos os soldados postados no pátio. Os seus e os soldados do acampamento estavam juntos. Ela tem um plano, Hermione ponderou, retirando a coroa do cinto com uma das mãos enquanto com a varinha e seus olhos, mantinha a Rainha de Copas afastada. Ela sempre pensou que fosse mais difícil segurar um Impedimenta e preocupar-se com outras coisas.


- Cortem a cabeça da humana! – Sigel gritou a todo pulmões de repente. Sua voz ecoou pelo pátio silencioso. Era alta e estridente. Se estivesse mais perto das janelas do castelo, com certeza os teria quebrado. O som era indignado e ela estava ainda mais indignada, pois não fora obedecida. Parecia não ter sido ouvida tampouco. Os soldados, mesmo ao redor das duas rainhas, não ligaram a mínima para a ordem da Rainha de Copas, mas dirigiram seu olhar para a soberana Branca, como quem esperava uma ordem, mas esta apenas balançou a cabeça negativamente.


A Rainha de Copas ergueu-se brava, em um salto pondo-se sobre os saltos finos a tempo de ver, em uma posição privilegiada, a entrega da coroa à rainha merecedora. Estranho, Hermione pensou contorcendo o rosto, não conseguiria esquecer aquilo por nada. A bruxa elevou a mão que mantinha a coroa segura, esperando entregá-la em mãos à Rainha Branca, mas a coroa saiu flutuando de seus dedos. Ela agitou-se, pensando primeiramente que o diadema partiria para as mãos da Rainha de Copas.


Hermione inclusive ergueu os braços, pronta para buscá-la, mas a coroa contorceu-se em pleno ar, ganhando ao redor de si uma redoma de luz branca e no instante seguinte, com um estampido agudo, ela caiu perfeitamente encaixada por entre os cabelos da Rainha Branca, totalmente modificada. Ainda exibia o mesmo brilho intenso, mas as hastes retorcidas se tornaram mais delicadas e as pontas que apontavam em todas as direções haviam se transformado em uma cúpula vazada.


Selene sorriu, estava um tanto boba. Não sabia exatamente como ser rainha. Deveria abanar aos súditos? Ela continuou sorrindo, enquanto a imensidão de soldados ao redor de si ajoelhou-se, abaixando as cabeças num ato solene de reconhecimento e respeito. Hermione abaixou-se também, mas seus olhos não saíram da Rainha de Copas. Agora, suas costas pareciam duplamente livres daquele peso que sentia. Quase podia respirar aliviada, não fosse a dor aguda no tronco que a fazia arfar.


- Isso é patético! – A Rainha de Copas guinchou, bufando de onde estava. Demonstrava seu mais puro desprezo ao continuar em pé, com o queixo apontando para o alto, incapaz de perceber que seu reinado havia acabado. – Eu não mereço isso! – Ela bufou novamente, desagradável, caminhando decidida até onde a adaga estava caída.


Hermione ergueu-se depressa, apontando a varinha na direção de Sigel, no mesmo instante em que os soldados no pátio erguiam as espadas, colocando-se em frente à Rainha Branca. A Rainha de Copas gargalhou amargamente, erguendo os olhos por entre a multidão, claramente procurando alguma coisa. A mulher buscou a adaga e a apontou para si mesma.


- O que está fazendo, Sigel? – A rainha Branca apavorou-se, abrindo caminho por entre os soldados e pondo-se de frente para a Rainha de Copas. – Pense muito bem antes de fazer uma loucura, você sabe que é melhor assim.


- Assim como? – A outra berrou, ainda procurando por entre a multidão, mas mantendo a adaga firmemente apontada para seu peito. – Envelhecer em uma cadeia suja e gelada? Apodrecer vendo você mandar no reino que eu construí? Ver esse país afundar na bondade e amor à natureza que você tanto prega ao invés de ceder ao avanço tecnológico e ao desenvolvimento?


- Não precisamos destruir o que é natural ao buscar o desenvolvimento. – A Rainha Branca defendeu-se, sem precisar realmente fazê-lo.


- Ah – A outra suspirou desgostosa, abrindo um sorriso mínimo ao encontrar o que tanto buscava. -, o País das Maravilhas vai perecer com você no comando. Mas isso não me importa nesse momento, já que não há nada de bom dentro de mim. – Zombou ela.


- Justamente o contrário! – A outra protestou. – Se há preocupação com o País das Maravilhas dentro de você, deve haver preocupação com as pessoas que aqui vivem também, Sigel. – Selene olhou para o chão. – Acredito que alguns anos nas celas de seu próprio castelo a façam enxergar isso. É para o seu bem.


- Seu grande conselho... – A Rainha de Copas desdenhou.


- Um bom conselho – Selene corrigiu, olhando para os lados, acionando Dodô, Hatter e Rabbit com apenas um olhar. Eles seriam seus soldados de confiança para escoltar a soberana caída às celas.


- Sabe – A outra começou, quando viu os três homens andarem em sua direção. – há algo relativamente bom dentro de mim, algo que não pertence somente a mim – ela continuou, erguendo a cabeça e encarando aquilo que procurava no meio da multidão. Hermione virou-se, procurando também e deparou-se com o rosto machucado de Valete, que corria tentando encontrar uma brecha entre os soldados para conseguir chegar perto da Rainha de Copas. – Talvez não seja algo realmente bom por pertencer a mim e ao Valete, mas em outras circunstâncias seria algo bom. – Ela abaixou a adaga até que esta ficasse na linha de seu umbigo, ainda apontada para seu corpo.


- Ah não – Hermione entendeu, sussurrando para si mesma. Rabbit virou-se, mas a bruxa não precisou expor o que pensava, já que a Rainha de Copas levou uma das mãos até a barriga.


- O País das Maravilhas teria um príncipe. – Ela disse, afagando a barriga sem carinho algum. Seus olhos tingiram-se de raiva e loucura e ela gargalhou mais uma vez. – teria – grifou, avançando com a adaga antes que alguém conseguisse impedi-la.


- Não! – Gritaram a Rainha Branca e Valete ao mesmo tempo, mas a Rainha de Copas foi mais rápida e mais ágil, enfiando a adaga em si mesma diversas vezes. Ela sangrava e arfava muito, mas mesmo assim continuou golpeando-se até que Dodô e Rabbit conseguissem agarrá-la pelos braços, a fim de afastá-los do corpo da mulher.


Hatter correu até a cena, preocupando-se em tirar a adaga das mãos da Rainha de Copas. Ela havia acertado em cheio seu ventre e parte de seu peito, fazendo com que o coração fosse atingido. Valete chegou momentos depois, abaixando-se onde a mulher estava sendo deitada, mas já não havia solução. A respiração arfada ficava mais lenta e mais barulhenta. O coração batia fraco e o sangue escorria como um rio por entre as roupas negras dela.


Aos poucos as pessoas começaram a deixar o pátio, alguns por respeito, outros por não querer assistir tal cena. Porém, Valete continuou lá, acompanhado pela Rainha Branca, Rabbit, Hatter e Dodô, movendo o corpo para frente e para trás num ritmo lento, segurando a mão mole de Sigel. A Rainha Branca, com um aceno de cabeça, acionou Dodô e Rabbit e estes seguraram o Valete pelos braços, escoltando-o até as masmorras do castelo. A rainha Branca secou uma última lágrima de seus olhos, os fechando.


- Cheshire – Ela sussurrou, abrindo os olhos novamente, mas dessa vez sem realmente enxergar alguma coisa. Estavam fora de foco e ela visivelmente estava usando seus poderes para localizar Cheshire. Imediatamente um vulto debruçado sobre o ombro de Hatter começou a tomar forma, trazendo no rosto uma mistura de enjoo e compaixão.


- Quer que eu a leve daqui? – Cheshire vocalizou baixo, aproximando-se do corpo da Rainha de Copas. Ela usava as mesmas estampas listradas, mas agora em jeans e blusa parecidas com as de Selene.


- Para o túmulo da família.


Cheshire confirmou com a cabeça, tocando de leve o ombro da Rainha de Copas, desaparecendo juntamente com o corpo da outra soberana logo em seguida, como fumaça. Selene ficou encarando a poça de sangue por um bom tempo, tendo as mãos cruzadas sobre o peito, segurando-se para não chorar. Ela soluçava e sem ter mais forças para segurar o pranto, deixou-se choramingar, realmente sentida, buscando o peito afável de Hatter, que se colocou ao seu lado como o bom chefe da guarda e amigo que era. Hermione apontou a varinha para a poça, murmurando um feitiço limpador, como num ato fúnebre desajeitado.


Ela sorriu com pesar, sentindo as pálpebras querendo cair uma por cima da outra com uma força implacável. Sua respiração estava ainda mais difícil, tendo inclusive momentos de apineia. Hermione afastou a armadura do tronco, deixando-se cair de joelhos nas pedras do pátio. Conseguiu erguer a blusa até poder enxergar a enorme mancha roxa e as dilatações em sua pele provocadas pelas costelas quebradas. Pelo pouco que conseguiu contar, havia pelo menos duas delas fraturadas. Hermione olhou uma última vez para a Rainha Branca como quem pedia ajuda, antes de sentir seus olhos pesarem e cair numa inconsciência nada agradável.


O calor é que era agradável, quase maternal, mas não havia como o calor entrar naquela casa com a luz do sol, porque não havia janelas e nem aberturas cobrindo as paredes. Hermione apertou as pálpebras uma contra a outra, se negando a acordar totalmente.  O calor a deixava preguiçosa e ela sentia-se tão cansada, tão longe de tudo. Ela afastou os cabelos do rosto, tentada a permanecer na cama enorme. Cama? Ela sussurrou dentro de si, por entre guinchos. Definitivamente aquela não era sua cama.


Hermione mexeu-se demoradamente, enquanto as coisas começavam a tomar seus lugares dentro da cabeça dela. Sentia a memória vazia e o corpo muito leve, apesar de ainda se sentir respirando. A respiração era muito mais agradável, ela admirou-se, perdendo-se por um bom tempo a observar o ritmo do subir e descer relaxado de seu peito. Não conseguiu lembrar-se de nada com clareza sobre o que havia acontecido. Os fatos vinham nublados e muitos misturados com situações que ela já havia vivenciado antes de se encontrar deitada naquela cama. Abriu os olhos de repente, retirando os cabelos que caiam em frente ao seu rosto, deparando-se com o quarto marrom de Rabbit.


- Merlin – ela sussurrou, cerrando os olhos muito rápido, como quem pedia para acordar de um pesadelo. A garota afundou a cabeça no travesseiro, vendo as coisas ajeitarem-se dentro de sua memória. As imagens de Draco e de Bichento não estavam mais misturadas com a imagem escurecida da queda no buraco. As imagens do Acampamento Xadrez estavam totalmente separadas das imagens do Reino de Copas. Hermione pode lembrar-se exatamente dos beijos de Rabbit e da luta com a vermelha. Ela agora podia lembrar onde estava e o porquê de estar ali.


Ergueu-se nos cotovelos de repente, sendo rápida demais e provocando uma dor aguda que lhe fez gemer alto. Afundou novamente na cama, apertando as sobrancelhas, ainda gemendo. Havia algo apertando seu tronco, lhe impedindo de se movimentar com rapidez sem sentir o ardor. A menina ergueu as cobertas para longe do corpo, a fim de descobrir o que o envolvia e assustou-se mais uma vez. Ela estava vestindo apenas uma camiseta larga e acompridada por cima da lingerie simples e meias compridas lhe cobriam os pés, chegando até seus joelhos. Ela ergueu a camiseta, tocando de leve a enorme atadura apertada que cobria seu troco, impedindo as costelas de saírem de seus lugares. Merlin, ela repetiu tensa.


- Quem cuidou de mim? – Ela perguntou em voz baixa. Baixa o suficiente para não ser ouvida por alguém que não estivesse no quarto, mas foi respondida por uma presença fumarenta que começava a aparecer ao seu lado. Hermione voltou a cobrir-se e deitou-se com a cabeça de lado, encarando o rosto de Cheshire que se formava no travesseiro ao seu lado.


- Eu estou. – A menina disse, mexendo a cabeça vagarosamente. - Bom dia.


- Bom dia – Hermione respondeu, afundando ainda mais a cabeça no travesseiro fofo ao receber a confirmação de que era uma menina a ter trocado suas roupas e cuidado de suas costelas. Cheshire mantinha uma expressão muito serena em seu rosto, coisa que era praticamente impossível para a bruxa.


- Você está bem?


- Nada como uma boa noite de sono. – Hermione se espreguiçou, mas mantendo-se completamente coberta. Estava quente dentro daquela casa, mas mesmo assim ela sentia-se mais segura debaixo daquelas cobertas, como se aquela cama pudesse ser como a barriga de sua mãe novamente. Ela riu de si mesma, mas depois de tudo o que passara no País das Maravilhas, sua vontade era de voltar a ser um feto.


- Três – Cheshire corrigiu, encarando as unhas pintadas de azul celeste.


- Três o que?


- Você quis dizer três noites de sono. – Ela assoprou as unhas, olhando para uma Hermione de feições e expressões estagnadas.


- Eu dormi por três dias? – A bruxa mal conseguia falar, talvez tenha sido por isso que ela estava se sentindo bem e nem um pouco cansada. Considerando que ela estava há apenas três dias no País das Maravilhas treinando com um exército, roubando uma coroa, lutando contra um exército inteiro de verdade e vendo pessoas morrerem ao redor de si, três dias de sono para descansar daquilo parecia pouco.


- Você perdeu muita coisa, falando nisso – Cheshire contou, deitando-se de costas para o colchão, sem encarar a vizinha de cama. - Selene teve sua cerimônia de posse dos reinos, as obras para a reconstrução do Reino xadrez e a revitalização do Reino de Copas já começaram, minha irmã vai se casar com o chefe da guarda – ela franziu o cenho ao dizer isso – acho que é um mal das Rainhas do País das Maravilhas, não acha?


- Você um dia será uma – Hermione disse com a voz baixa e calma. – trate de escolher um rapaz que lhe agrade para ser o chefe da guarda.


- Talvez eu contrate Rabbit – Cheshire estava visivelmente brincando, sorrindo abertamente ao encarar o rosto sardento de Hermione. – Eu praticamente tive que expulsá-lo da própria casa para que pudesse cuidar direito de você. – Ela voltou a encarar o teto, impedindo que o brilho que começara a aparecer nos olhos de Hermione, ofuscasse seus olhos. – ele não queria sair do seu lado, mas como novo Relações Públicas e Internacionais da Rainha Branca, ele tinha de trabalhar.


Hermione encarou o teto também, sentindo que o brilho de seus olhos se esvaía aos poucos. Sentia também que o sorriso que surgia era reprimido por lembranças de seu mundo. Por lembranças de seus amigos e de Draco, que apesar de tudo ainda continuava entre seus pensamentos. Era de se admirar que ela ainda pensasse em Draco, agora que sua referência total aos olhos cinzentos e cabelos claros escorridos era Rabbit. Ela entreabriu os lábios só um pouquinho.


- Não é bom que ele se apegue a mim – Disse à voz baixa. Sentia-se segura em compartilhar aquele pensamento com Cheshire. Ela lhe passava confiança e segurança, e além de tudo, havia cuidado dela enquanto estava dormindo durante aqueles três dias que pareciam anos.


- Não – Cheshire foi rápida na resposta.


- Você concorda?


- É claro – A outra continuou, mantendo a voz muito firme, ainda olhando para o teto. – Mesmo que você decida ficar no País das Maravilhas e construir uma vida aqui, trabalhando com Selene e namorando Rabbit, você ainda vai sentir falta do seu mundo. Você vai sentir saudade e vai querer voltar ao seu mundo. – Cheshire não parava para respirar enquanto dizia as frases anasaladas. – Mas, se você for embora, vai é sentir saudades daqui.


- De um jeito ou de outro – Hermione concordou, sem se mexer.


- O que você tem que fazer é decidir se vale a pena voltar ao seu mundo ou se você quer arriscar uma vida sem nada muito certo por aqui. – A menina ergueu-se nos cotovelos, vislumbrando a outra. – Cabe a você uma decisão que pode, ou mudar sua vida completamente, ou levá-la de volta ao que era antes de tudo isso começar.


- Mas eu não quero voltar ao que era antes!


- Você não quer rever seus amigos?


Hermione baixou a cabeça ao ouvir a frase que a remetia a muitas outras coisas. Lembrou-se imediatamente da Grande Guerra que acontecia em seu mundo. Voldemort, ela pensou, tremendo mesmo ao estar debaixo dos lençóis quentes. Ela tinha a convicção de que precisava voltar e ajudar seus amigos e seu mundo, mas e quanto a Rabbit? Seu coração se apertou e ela fez o mesmo com os olhos, escondendo os cílios emaranhados nas pálpebras que se apertavam muito juntas.


- Não é algo em que eu possa lhe ajudar – Cheshire levantou-se da cama e começou a desaparecer como fumaça. Seus olhos foram a última coisa a desaparecer por entre a fumaça, como na primeira vez em que ela se apresentara à Hermione.


Que bom, Hermione cruzou os braços sobre o peito, cuidando ao máximo para não machucar-se. Afundou a cabeça de cabelos rebeldes, espalhando-os pelo travesseiro.


Pareciam existir dois corações batendo em seu peito. Ela sentia os dois corações apontando para direções totalmente diferentes. Deveria escolher uma delas, mesmo que isso significasse perder muita coisa. O que não poderia fazer era ficar parada no mesmo lugar, afundando a cabeça em um travesseiro confortável e deixar o tempo passar, estando sobre um muro. Hermione respirou forte, sentindo o tronco reclamar levemente. Ainda não estava totalmente curada, era óbvio.


Ela cerrou os olhos, deixando sua mente viajar. Ela arriscava uma coisa em prol de outra. Assim era a vida, sabia disso desde o dia em que nascera. Queria tanto que sua mãe estivesse ali com ela, lhe dando conselhos que Hermione sabia que eram infalíveis. Ela abriu os olhos, respirando forte, mas dessa vez sem sentir o tronco. Ergueu-se nos cotovelos num intervalo de tempo muito comprida, colocando-se sentada logo em seguida.


Colocou os pés no chão com certa dificuldade, ainda sentindo as dores das lutas. Pode ver que os hematomas ainda não haviam abandonado seu corpo e, levantando a mão até o rosto, pode sentir uma cicatriz fina que lhe cobria o queixo, talvez um dos tantos resultados da batalha no pátio do Castelo de Copas. Os pés se arrastavam, mas ela quase correu até onde via suas roupas dobradas e lavadas. Sorriu de canto, pensando mais uma vez antes de  sair pela porta do quarto e anunciar aquilo que havia decidido.

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