CAPÍTULO 02



CAPÍTULO 02


 


A clarabóia que ficava acima da cama ainda estava às escuras quando ela acordou. E acordou toda suada. As imagens em seu sonho eram borradas e confusas. Feliz por ter escapado do pesadelo, Gina não tentou lembrar os detalhes.


Como estava sozinha na cama imensa, permitiu-se um rápido e violento tremor.


- Acender luzes! - comandou. - Luminosidade baixa. - Suspirou ao ver que a escuridão diminuía. Proporcionou a si mesma um instante antes de olhar as horas.


Cinco e quinze da manhã. Que ótimo, pensou contrariada, sabendo que não conseguiria mais pegar no sono. Não sem a presença de Harry ao seu lado para ajudar a aplacar seus pesadelos. Perguntou a si mesma se algum dia iria parar de se sentir sem graça por ter se tornado tão dependente dele para coisas como aquela. Um ano atrás, ela nem mesmo sabia que Harry Potter existia. Agora, ele era parte da sua vida, tanto quanto as suas mãos... o seu coração.


Arrastou-se para fora da cama, pegando um dos roupões de seda que Harry vivia comprando para ela. Enrolando-se nele, virou-se para o painel da parede e ligou o sistema de busca eletrônica, perguntando:


- Onde está Harry?


Ele estava na área da piscina, no andar de baixo.


Até que um mergulho não era má idéia, pensou. Ia malhar um pouco antes, decidiu, para aliviar os resíduos do pesadelo.


Com o objetivo de evitar um encontro com Moody, pegou o elevador, em vez de descer pelas escadas. O sujeito estava em toda parte, surgindo das sombras, sempre com a cara franzida e uma fungada de desprezo. Uma continuação do confronto da noite anterior não era a sua idéia de um bom começo de dia.


O ginásio de Harry mais parecia uma academia de ginástica bem equipada e oferecia todas as opções. Ela podia lutar com um andróide boxeador, levantar pesos ou simplesmente relaxar e deixar as máquinas fazerem o trabalho de flexionar-lhe os músculos. Despindo o roupão, vestiu uma malha de ginástica. Queria dar uma corrida, uma corrida longa, e depois de calçar os tênis com amortecedor a ar e solado fino, programou o tipo de terreno no telão.


Escolheu a praia. Era o único lugar, fora da cidade grande, em que se sentia completamente à vontade. As paisagens rurais, as áreas desérticas e os cenários fora do planeta provocavam-lhe um certo desconforto.


Começou com passadas leves, sentindo as ondas que quebravam ao seu lado e apreciando a alvorada que começava a surgir no horizonte. Gaivotas giravam e guinchavam acima de sua cabeça. Respirou o ar salgado dos trópicos e, à medida que seus músculos se aqueciam e pareciam ficar mais flexíveis, aumentou o ritmo.


Alcançou seu melhor desempenho depois dos primeiros dois quilômetros e sentiu que a mente se esvaziava.


Ela já estivera naquela praia muitas vezes desde que conhecera Harry. Estivera ali tanto holograficamente quanto de verdade. Antes daquilo, a maior quantidade de água que vira de perto fora o rio Hudson.


As vidas mudam, refletiu ela. E a realidade também.


Quando completou oito quilômetros de corrida e seus músculos começaram a doer, sentiu um movimento atrás dela, com o canto do olho. Harry, com os cabelos ainda molhados do mergulho, surgiu correndo ao lado dela, acompanhando-lhe o ritmo.


- Está indo para algum lugar ou fugindo de lá? - quis saber ele.


- Simplesmente correndo.


- Levantou cedo, tenente.


- É que estou com o dia cheio.


Harry levantou uma sobrancelha ao notar que ela acelerou ainda mais. Sua mulher era dona de um estilo competitivo, que ele julgava saudável, e facilmente conseguiu alcançá-la novamente.


- Pensei que hoje fosse o seu dia de folga. - comentou ele.


- E era mesmo. - Ela diminuiu a velocidade, parou e se curvou para a frente, fazendo alongamentos. - Agora não é mais. - Levantou a cabeça até o olhar se fixar no dele. Não era só a sua vida agora, lembrou, nem a sua realidade apenas. Era a vida e a realidade dos dois. - Você tinha planejado algo especial para hoje?


- Nada que não possa ser reprogramado. - O fim de semana na Martinica com o qual ele planejara surpreendê-la ia ter de esperar. - Minha agenda está vazia para as próximas quarenta e oito horas, caso precise de mim para alguma coisa.


Ela expirou com força. Aquela era outra das mudanças que haviam acontecido em sua vida... o fato de compartilhar o seu trabalho com alguém.


- Talvez eu realmente precise de você, mas vou dar um mergulho antes.


- Vou acompanhá-la.


- Pensei que você tivesse acabado de sair da água.


- Posso tornar a entrar. - Passou o dedo de leve pela covinha de seu queixo. O exercício trouxera um pouco de cor ao seu rosto e brilho à sua pele. - Mergulhar duas vezes não é ilegal. - Pegou a mão dela, a fim de levá-la para fora do ginásio, em meio ao ar com cheiro de flores da área da piscina.


Palmeiras e videiras em flor cresciam de forma abundante, espalhando-se em torno de uma piscina de formato irregular, cujas margens eram enfeitadas com pedras lisas e cascatas que escorriam de forma preguiçosa.


- Tenho que vestir um maiô.


Ele simplesmente sorriu e segurou as pontas soltas da malha que ela usava, perguntando:


- Por quê? - Suas mãos habilidosas alisaram seus seios enquanto despiam a malha e faziam-na levantar as sobrancelhas.


- Que tipo de esporte aquático você tem em mente?


- Qualquer coisa que funcione para deixá-la bem. - Segurou o rosto dela com as duas mãos, inclinando-se para beijá-la. - Eu amo você, Gina.


- Eu sei. - Ela fechou os olhos e encostou a testa na dele. - É tão estranho, isso...


Nua, ela se virou e mergulhou na piscina ainda escura. Ficou submersa, nadando junto do fundo. Seus lábios se abriram ao notar que a água começou a clarear aos poucos, até assumir um tom de azul bem claro. Aquele homem tinha o dom de adivinhar o que seu espírito precisava, antes mesmo dela. Deu vinte voltas na piscina antes de se deixar ficar boiando, descontraída. Quando voltou a colocar os pés no fundo, os dedos dele se uniram com os dela.


- Agora estou bem relaxada.


- Está mesmo?


- Sim, tão relaxada que me sinto capaz de enfrentar qualquer tarado que tente tirar vantagens de mim.


- Que bom, então... - Puxou-a pelo pulso, virando-a de frente para ele, até ficarem cara a cara.


- Que bom, então... - ecoou ela, enlaçando-o com as pernas e deixando que ele a segurasse por trás para continuar flutuando.


Quando suas bocas se uniram, os últimos vestígios de tensão desapareceram. Ela se sentia solta, fluida e com uma leve carência. Levantando a mão, passou os dedos por entre os cabelos dele, uma linda massa escura, molhada e sedosa. O corpo dele estava firme e frio de encontro ao dela, e se encaixava de uma forma que ela estava aprendendo a deixar de questionar. Ela pareceu ronronar enquanto as mãos dele percorriam-lhe o corpo, transmitindo uma leve sensação de posse.


Então, de repente, ela estava dentro d’água, enroscada nele e encasulada no azul pálido daquela água. Quando sua boca fechou-se sobre um de seus seios ela tremeu com um calafrio de emoção pelo choque de se sentir sem ar. E sentiu os dedos que a invadiram, cobrindo-a e penetrando-a, levando-a a um orgasmo que a fez estremecer mais ao tentar voltar à superfície.


Ela sugou o ar com força assim que voltou à tona, sentindo-se desorientada e delirante, e então sentiu o ar tornar a escapar-lhe dos pulmões quando a boca experiente dele substituiu os dedos.


Aquele ataque a todos os seus sistemas, simultaneamente, era exatamente o que ela estava precisando. Aquele desamparo. A avidez do homem ao seu lado. O fato de ele conhecê-la tão bem, compreendê-la por inteiro e fornecer-lhe tudo o que necessitava era um mistério que ela jamais desvendaria.


Sua cabeça tombou para trás, largada, pousou na borda lisa da piscina, e ela se permitiu simplesmente usufruir daquele momento, imersa no prazer que ele lhe oferecia.


Lentamente e com malícia, os lábios dele foram subindo, a princípio em sua barriga, depois no torso, nos seios, até se banquetear na garganta, que pulsava depressa, com força.


- Você consegue prender o ar por muito tempo. - ela conseguiu balbuciar, e então estremeceu mais uma vez quando ele, aos poucos, centímetro por centímetro, foi deslizando para dentro dela. - Ah, meu Deus!...


Ele olhou para ela, notou o rubor que lhe invadira o rosto e os pontos mais vermelhos que sinalizavam o prazer que a envolvia. Seus cabelos estavam molhados, puxados para trás da cabeça, deixando em destaque as suas feições. E aquela boca rígida e teimosa, muitas vezes tão séria, tremeu diante dele. Apertando-a pelos quadris, ele a levantou e se lançou mais fundo dentro dela, tão fundo que o forte impulso a fez gemer.


Esfregando os lábios junto dos dela, mordiscou-os de leve enquanto continuava a se mover dentro dela, com um controle admirável que torturava a ambos.


- Solte-se, Gina, e goze!


Ele notou o instante em que aqueles olhos sagazes de policial pareceram ficar cegos, como se estivessem turvos, e ouviu a respiração dela parar para logo em seguida ser liberada de uma vez só, como uma explosão de choro. Embora o seu próprio sangue estivesse a ponto de ferver, ele manteve os movimentos de forma dolorosamente lenta. Extraindo-se bem devagar, um pouco de cada vez e tornando a avançar, ele manteve o ritmo até o soluço convulsivo que ela lançava se transformar no seu nome.


O orgasmo dele foi longo, profundo e perfeito.


Ela conseguiu levantar as mãos da água e agarrou-o pelos ombros, pedindo:


- Não me solte, senão vou afundar como uma pedra.


Ele riu de leve, ainda pressionando os lábios ao lado de sua garganta, onde sua pulsação continuava a dançar loucamente.


- O mesmo vale para mim. Você devia se levantar cedo assim com mais freqüência.


- Vamos acabar nos matando. É um milagre não termos nos afogado.


- Podemos fazer isso. - Ele inspirou o perfume da pele dela na água.


- Acha que vamos conseguir chegar aos degraus para sair da água?


- Se você não tiver muita pressa...


Eles foram saindo da água lentamente, cambaleando ao pisar nos degraus de pedra que levavam à borda.


- Café! - pediu Gina, baixinho, e quase tropeçou nas próprias pernas ao esticar a mão para pegar dois roupões confortavelmente felpudos.


Ao se virar, trazendo um deles na mão e tentando vestir o outro, Harry já programara o AutoChef, ordenando duas xícaras de café puro, bem forte. O sol já começava a surgir acima do vidro curvo que delimitava a área de lazer, colorindo-o com tons de ouro pálido.


- Está com fome? - perguntou ele.


- Morrendo de fome! - disse ela, provando o café e soltando um pequeno gemido ao sentir o efeito revitalizante da cafeína em seu organismo. - Só que vou tomar uma ducha antes.


- Vamos lá para cima, então.


De volta à suíte principal, Gina levou a xícara de café para o boxe do banheiro. Quando Harry entrou junto com ela em meio aos jatos fortes da ducha romana, ela estreitou os olhos e advertiu:


- Se você mandar baixar a temperatura da água, eu te mato!


- A água fria abre os poros e faz o sangue circular mais rápido.


- Você já cuidou disso. - Colocou o café sobre a prateleira, ensaboando-se em meio ao vapor.


Ela saiu antes e, ao entrar no cilindro secador de corpo, balançou a cabeça ao ouvir Harry ordenar que a água baixasse doze graus. Só de pensar naquilo sentiu um calafrio.


Gina sabia que Harry esperava que ela lhe contasse a respeito do caso que a atrasara na noite anterior e ia lhe roubar a folga daquele dia. Gostou de ver que ele esperou até ela se acomodar na sala de estar da suíte, com uma segunda xícara de café na mão e um prato cheio de omelete com presunto e queijo pronto para ser devorado.


- Eu realmente sinto muito por não ter aparecido no jantar de ontem à noite.


Harry provou suas panquecas amanteigadas e perguntou:


- Eu também vou ter que me desculpar com você todas as vezes em que for chamado com urgência para resolver negócios e isso atrapalhar os nossos planos?


Ela abriu a boca para falar alguma coisa, mas desistiu e balançou a cabeça, respondendo:


- Não. O caso é que eu já estava me encaminhando para a porta, a fim de ir para casa. Eu não havia esquecido o compromisso, mas o tele-link tocou exatamente nessa hora. Era uma transmissão criptografada, cheia de sinais misturados que não conseguimos rastrear.


- O Departamento de Polícia de Nova York tem um equipamento patético.


- Não é tão patético assim... - murmurou ela. - O cara é que era profissional. Até você ia passar o maior sufoco tentando rastreá-lo.


- Agora você está me insultando...


- Bem... - Deu um sorriso forçado. - Talvez você tenha uma chance para tentar localizá-lo. Como ele entrou em contato pessoalmente e de forma específica comigo, é provável que torne a me procurar em casa.


Harry pousou o garfo sobre o prato e pegou o café; eram dois gestos casuais, mas todo o seu corpo entrou em estado de alerta.


- Ele procurou você, especificamente?


- Sim, queria falar direto comigo. Veio com um papo furado a respeito da missão religiosa que lhe fora confiada. Em resumo, está fazendo o trabalho do Senhor, e parece que o Chefão gosta de charadas. - Gina passou a gravação completa da chamada para Harry e notou quando os seus olhos se estreitaram e ficaram mais brilhantes. Ele raciocinava depressa, refletiu ela, ao ver que sua boca já exibia um ar sombrio.


- Você verificou as Torres do Luxo?


- Exato, fui direto à cobertura. Ele deixou parte da vítima logo na entrada, na sala de estar. Os restos dele estavam espalhados pelo quarto.


Colocando o prato de lado, ela se levantou e começou a andar de um lado para outro enquanto passava as mãos pelos cabelos, dizendo:


- Foi terrível, Harry, uma coisa pavorosa! Ainda pior por ter sido preparada para ser algo bem assustador; não foi um ato provocado por descontrole. A maior parte do trabalho foi de uma precisão impressionante, quase cirúrgica. O relatório preliminar do legista indica que a vítima foi mantida viva e consciente durante todo o processo das mutilações. O assassino encheu a vítima de drogas ilegais, o bastante para mantê-la consciente sem diminuir a dor. E pode acreditar, a dor deve ter sido indescritível. Ele foi estripado.


- Santo Cristo! - reagiu Harry, soltando o ar dos pulmões de uma vez só. - Essa é uma antiga punição para crimes religiosos ou políticos. Uma morte lenta e dolorosa.


- E uma lambança também... - completou ela. - Seus pés foram decepados e uma das mãos foi cortada na altura do pulso. Ele ainda estava vivo quando seu olho direito foi arrancado. Essa foi a única parte de seu corpo que não encontramos na cena do crime.


- Encantador... - Apesar de ter estômago forte para essas coisas, Harry perdeu o apetite. Levantando-se, foi em direção ao closet, explicando: - Foi um ato de “olho por olho”.


- Isso significa vingança, não é? “Olho por olho...” É citação de alguma peça?


- Uma citação da Bíblia, querida. A mãe de todas as peças literárias. - Pegou um par de calças pregueadas, em estilo bem casual, no cabide giratório.


- De volta a Deus... Tudo bem, então... Trata-se de um lance de vingança. Talvez seja algo religioso, ou talvez simplesmente pessoal. Podemos descobrir o motivo quando acabarmos de analisar os dados da vítima. Consegui que a mídia ficasse de fora, pelo menos até entrarmos em contato com a família do morto.


- Ele tinha filhos? - perguntou Harry enquanto vestia as calças e pegava, em seguida, uma camisa branca de linho.


- Sim, três filhos.


- Você tem um trabalho miserável, tenente.


- É por isso que eu adoro o que faço. - Passou as mãos pelo rosto. - Sua mulher e filhos estão na Irlanda, eu acho. Preciso encontrá-los ainda hoje.


- Na Irlanda?


- É... parece que a vítima era um conterrâneo seu. Você, por acaso, não conhecia um sujeito chamado Thomas X. Brennen, conhecia? - Seu sorriso desapareceu quando ela notou o olhar de Harry, que fitou um ponto indeterminado com ar sombrio. - Você o conhecia, então! Eu nem poderia imaginar.


- Ele tinha quarenta e poucos anos? - perguntou Harry, sem mudar o tom de voz. - Um metro e sessenta e cinco, mais ou menos, cabelo alourado?


- Pode ser... trabalhava na área de comunicações e entretenimento.


- Tommy Brennen. - Com a camisa ainda na mão, Harry sentou-se no braço da poltrona e xingou: - Assassino filho-da-puta!


- Sinto muito. Nem me ocorreu que ele poderia ser um amigo seu.


- E não era... - Harry balançou a cabeça para afastar as lembranças. - Pelo menos não era há mais de dez anos. Eu o conheci em Dublin. Ele armava golpes pela Internet enquanto eu aplicava alguns contos-do-vigário. Nossos caminhos se cruzaram algumas vezes, dividimos alguns ganhos e bebemos algumas cervejas. Há uns doze anos, Tommy se enrabichou com uma jovem de boa família, com antepassados irlandeses de tradição. Caiu de quatro por ela e decidiu entrar na linha. Entrar mesmo, de vez... - acrescentou Harry com um sorriso torto. - Cortou todas as relações que tinha com os elementos menos... nobres dos tempos de sua juventude. Eu sabia que ele mantinha residência em Nova York, mas ficamos longe um do outro por todo esse tempo. Creio que sua mulher não sabe nada a respeito de suas atividades do passado.


Gina se sentou no outro braço da poltrona e disse:


- Pode ser que uma dessas atividades do passado, ou um daqueles elementos pouco nobres, seja responsável pelo que lhe aconteceu. Harry, eu vou começar a cavoucar o passado. Se cavar muito fundo, quanto vou descobrir a respeito de você?


Aquela era uma preocupação importante, sem dúvida. Para Harry nem tanto, mas ele sabia que, para Gina, as descobertas jamais pareceriam algo trivial.


- Jamais deixei o rabo de fora, tenente. Além disso, conforme eu já disse, nós não éramos muito chegados. Nunca mais tive contato com ele, não o via há muitos anos, embora me lembre bem de sua figura. Ele tinha uma bela voz de tenor. - murmurou Harry. - Tinha bom humor, uma boa cabeça e planejava formar uma família. Era bom com os punhos, e muito rápido, mas jamais procurou encrencas, que eu me lembre.


- Procurando ou não, ele as encontrou. Sabe onde está a sua família?


- Não. - Balançou a cabeça para os lados. - Mas posso conseguir essa informação para você bem depressa.


- Eu agradeceria. - Gina se levantou enquanto ele vestia a camisa elegante. - Harry, eu sinto muito pela morte de seu amigo e imagino o quanto essa perda significa para você.


- Apenas uma lembrança marcante. Uma música compartilhada... um pub cheio de fumaça em uma noite de chuva. Eu sinto por ele também. Vou até o escritório. Espere dez minutos, por favor, que eu já volto.


- Claro.


 


Gina se vestiu com calma. Tinha a leve impressão de que Harry ia precisar de mais do que dez minutos. Não por causa dos dados que ficou de buscar para ela. Com o seu equipamento e sua habilidade, levaria metade desse tempo para isso. Mas ela suspeitava que ele ia precisar de mais alguns instantes sozinho para tentar lidar com as lembranças do pub cheio de fumaça.


Ela jamais perdera alguém chegado. Talvez porque, compreendeu naquele momento, deixara poucas pessoas se aproximarem dela a ponto de se tornarem importantes. De repente surgiu Harry, e ela não teve escolha. Ele invadira a vida dela de forma sutil, elegante e inquestionável. E agora... refletiu, passando o dedo sobre a aliança de casamento com formas entalhadas em ouro, ele se tornara vital.


Gina desceu pelas escadas dessa vez, caminhando através das imensas salas da casa linda e imensa. Não precisava bater na porta do escritório antes de entrar, mas fez isso, e esperou até que a porta deslizasse para o lado, convidando-a a entrar.


As telas protetoras de privacidade que havia nas janelas estavam levantadas e a luz do dia entrava livremente. O céu do outro lado dos vidros tratados estava nublado, indicando que a chuva ainda não terminara. Harry estava sentado à mesa antiga, de madeira envernizada, em vez de usar o console sofisticado. O piso estava coberto de tapetes antigos de valor inestimável que ele adquirira em suas viagens.


Gina enfiou as mãos nos bolsos. Já estava quase acostumada à grandiosidade da vida que levava agora, mas não sabia como lidar com a dor de Harry, aquele seu pesar contido e quieto.


- Escute Harry...


- Imprimi tudo para você. - disse e entregou-lhe uma folha de papel por sobre a mesa. - Acho que assim fica mais fácil. A esposa e os filhos dele estão em Dublin neste momento. As crianças são pequenas ainda, dois meninos e uma menina. Nove, oito e seis anos.


Inquieto demais para se manter sentado, ele se levantou e se virou de costas para Gina, analisando a vista privilegiada de Nova York, que estava calma àquela hora, com algumas lâmpadas ainda acesas e o céu quase estático. Ele imprimira imagens da família de Brennen, a mulher, muito bonita e com olhos brilhantes, e as crianças com rostinhos corados. Aquilo o perturbara mais do que ele previra.


- Financeiramente, eles estão muito bem amparados. - disse quase para si mesmo. - Tommy cuidou disso. Pelo visto, transformou-se em um bom marido e pai.


Gina atravessou o aposento e levantou uma das mãos, pensando em tocá-lo, mas deixou-a cair. Droga, ela não servia mesmo para essas coisas, pensou. Não sabia se o seu apoio ia ser bem recebido ou rejeitado.


- Não sei o que posso fazer por você. - disse por fim.


- Encontre a pessoa que fez isso. - disse ele, virando-se, com os olhos mais azuis do que nunca e um ar furioso que acompanhava o pesar. - Sei que posso confiar em você para isso.


- Sim, pode mesmo.


- Tenente Weasley, sempre pronta para defender os mortos, sempre preparada. - Um sorriso surgiu em seus lábios, curvando-os de leve. Passou a mão pelos cabelos dela e levantou a sobrancelha quando ela o agarrou pelo pulso, com força.


- Você tem que deixar esse caso por minha conta, Harry.


- E eu disse alguma coisa diferente disso?


- São as coisas que você não disse que estão começando a me incomodar. - Ela o conhecia muito bem, o suficiente para saber que ele tinha um jeito especial de resolver as coisas, com meios questionáveis e, provavelmente, utilizando esquemas próprios. - Se você está com alguma idéia sobre investigar essa história sozinho, pode parar antes mesmo de começar! O caso é meu e sou eu que vou lidar com ele.


- Naturalmente... - Ele passou as mãos pelos braços dela, subindo e descendo, de um jeito que a fez estreitar os olhos. - De qualquer modo, você vai me manter informado, não vai? Além do mais, sabe que estou disponível para qualquer coisa que precise.


- Acho que posso começar a correr atrás com minhas próprias pernas. E acho que seria melhor se você ficasse afastado deste caso. Bem afastado!


- Não. - disse ele, com satisfação, beijando-lhe a ponta do nariz.


- Harry...


- Você preferia que eu mentisse para você, Gina? - Pegou o resto das folhas que deixara sobre a mesa, entregando-lhe tudo. - Vá trabalhar agora. Tenho algumas ligações a fazer. Acho que até logo mais terei a lista completa de todas as pessoas associadas a Tommy, tanto em nível profissional quanto pessoal, seus inimigos, seus amigos, suas possíveis amantes, sua situação financeira e assim por diante. - disse, e foi conduzindo-a para fora do escritório enquanto falava. - Vai ser mais fácil para mim conseguir todos esses dados, e isso vai lhe dar uma idéia mais clara da situação.


Ela conseguiu se manter firme, antes que ele a empurrasse porta afora, e avisou:


- Não posso impedi-lo de juntar todos esses dados, mas não pise fora da linha, meu chapa, nem um centímetro!


- Você sabe o quanto eu fico excitado quando você se mostra assim... durona.


Gina conseguiu segurar uma gargalhada e fez uma cara quase séria.


- Sem essa, Harry. - murmurou, e enfiou as mãos nos bolsos enquanto se afastava do escritório.


Ele a acompanhou com os olhos e esperou até vê-la desaparecer na escada. Cauteloso, virou-se para o monitor de segurança e ordenou que uma das câmeras se focasse nela. O riso desapareceu dos seus olhos enquanto ele a via descendo as escadas e pegando o casaco que Moody deixara pendurado na coluna em que o corrimão terminava.


- Você está se esquecendo de levar um guarda-chuva. - sussurrou Harry para si mesmo, e simplesmente suspirou ao vê-la sair sob a garoa com a cabeça desprotegida.


Ele não lhe contara tudo. Como poderia? De qualquer modo, como poderia ter certeza de que era algo relevante? Precisava de mais dados antes de se arriscar a envolver a mulher que amava na lama do seu passado cheio de pecados.


Saindo do escritório, foi direto para o seu sofisticado centro pessoal de comunicações, que era não só caríssimo como ilegal. Encostando a palma da mão no sensor, identificou-se em voz alta e entrou. O equipamento daquela sala secreta não tinha registro e todas as atividades que ele desempenhasse não seriam detectadas pelo poderoso sistema de vigilância da polícia, o CompuGuard. Ele precisava de informações específicas a fim de planejar o próximo passo e, sentando-se ao console todo preto em forma de “U”, começou a trabalhar.


Invadir o sistema do Departamento de Polícia de Nova York era moleza para ele. Enviando um silencioso pedido de desculpas à sua mulher, acessou todos os seus arquivos, relatórios, analisou os laudos e os vídeos do médico-legista.


- Cena do crime na tela um. - comandou, recostando-se na cadeira. - Relatório da autópsia na tela dois, relatório da investigadora principal do caso na tela três.


O horror do que havia sido feito a Brennen surgiu na tela, fazendo os olhos de Harry se tornarem frios e focados. Pouco restara do rapaz que ele conhecera em outra vida, em Dublin. Depois de ler o relato formal e conciso de Gina sem demonstrar emoção, avaliou os complexos termos médicos do relatório inicial do legista.


- Copiar tudo em um novo arquivo, sob o nome Brennen, código Potter, a ser acessado apenas pela minha voz. Desligar!


Virando-se para o lado, pegou o tele-link interno e pediu:


- Moody, venha até aqui, por favor.


- Já estou indo.


Harry se levantou e caminhou até a janela. O passado podia voltar a assombrá-lo e ele sabia disso. Na maioria das vezes, ele ficava escondido em algum canto, como um fantasma, esperando para atacar. Será que foi o passado que voltara para destruir Tommy Brennen, perguntou-se. Ou seria apenas uma questão de má sorte ou momento errado?


A porta se abriu para o lado e Moody, magro e todo de preto, como sempre, entrou no aposento.


- Há algum problema? - perguntou.


- Thomas Brennen.


Os lábios de Moody se franziram e então seus olhos se iluminaram, formando a sombra de um sorriso.


- Ah, sim... - lembrou-se. - Aquele jovem hacker que adorava canções de protesto e uma boa cerveja.


- Ele foi assassinado.


- Ora, sinto muito saber disso.


- Aqui em Nova York. - continuou Harry. - Gina é a investigadora principal no caso. - Harry notou a boca de Moody, que ficou rígida e sem expressão. - Foi torturado, mantido vivo para suportar toda a dor e depois estripado.


Levou um instante para acontecer, mas o rosto de Moody, normalmente pálido, ficou ainda mais branco quando ele sentenciou:


- Coincidência.


- Talvez, é o que espero. - Harry cedeu ao desejo, pegou um cigarro fino em uma cigarreira laqueada e o acendeu. - Mas a pessoa que fez isso ligou direto para a minha mulher e a envolveu no caso, logo de cara.


- Ela é uma policial. - disse Moody, com infinito desdém na voz.


- Ela é minha mulher! - devolveu Harry, com uma pontada de irritação na voz. - Se não for coincidência, vou contar tudo a ela.


- Você não pode se arriscar a fazer isso. Não existe prazo de prescrição para assassinato, mesmo quando ele é justificável.


- Isso vai depender dela, não é? - Harry deu uma tragada longa e se sentou na beira do console. - Não vou deixá-la investigando às cegas, Moody. Não quero deixá-la nessa posição, nem por mim, nem por você. - O pesar voltou aos seus olhos enquanto ele olhava para a brasa na ponta do cigarro. - E nem pelas recordações. Fique preparado porque vem chumbo grosso pela frente.


- Não sou eu que vou pagar, se a lei significar mais para ela do que para você. Sei perfeitamente que o que você fez precisava ser feito... tinha que ser feito, e deveria ser feito.


- Gina também vai chegar a essa conclusão. - disse Harry, com a voz mais baixa. - Antes de planejarmos qualquer coisa, precisamos reconstituir os fatos. Quanto você se lembra daquela época e das pessoas que estavam envolvidas?


- Não me esqueci de nada.


Harry avaliou o queixo firme de Moody, seus olhos duros, e concordou com a cabeça, dizendo:


- Era com isso que eu estava contando. Mãos à obra, então.


 


As luzes no monitor piscavam como estrelas. Ele adorava olhar para elas. Não importava que o cômodo fosse pequeno, sem janelas, nem que houvesse um ruído baixo e constante da máquina que trabalhava, pois a luz daquelas pequenas estrelas o guiava.


Já estava pronto para seguir em frente e dar início à próxima rodada. O menino que ainda vivia dentro dele adorava competições, e o homem que se formara a partir do menino se preparava para realizar o trabalho sagrado.


Suas ferramentas já estavam cuidadosamente preparadas. Abrindo o frasco com água que fora benzida por um bispo, espargiu-a com reverência sobre a arma a laser, as facas, o martelo e os pregos. Instrumentos de vingança divina, equipamentos de retribuição. Atrás deles estava uma imagem da Virgem, esculpida em mármore branco como símbolo de sua pureza. Seus braços estavam abertos, como se abençoasse o que estava diante dela, e seu rosto era lindo e sereno, demonstrando aceitação.


Ele se inclinou e beijou os pés de mármore.


Por um momento pareceu ver um brilho de sangue em sua mão, que estremeceu.


Impressão apenas. Sua mão estava limpa e branca. Já lavara todo o sangue de seu inimigo. A marca de Caim era uma maldição sobre os outros, mas não sobre ele. Afinal, ele era um cordeiro de Deus.


Iria se encontrar cara a cara com outro inimigo, em breve, e precisava ser forte para preparar a armadilha usando a máscara da amizade.


Ele jejuara, fizera o sacrifício, limpara o coração e a mente de todo o mal terreno. Agora, mergulhava as pontas dos dedos em uma pequena vasilha com água benta e os levava à testa, ao coração, em seguida ao ombro direito e finalmente ao esquerdo. Ajoelhou-se, segurando com força o escapulário que usava. Ele havia sido abençoado pelo próprio papa e sua promessa de proteção contra o mal lhe servia de conforto.


Tornou a guardá-lo, então, com todo o cuidado, sob a seda de sua camisa, onde repousaria junto de seu peito aquecido pela crença.


Seguro e confiante, levantou os olhos para o crucifixo que estava pendurado acima da mesa firme que exibia as armas necessárias à sua missão. A imagem do Cristo que sofria brilhava em prata de encontro a uma cruz de ouro. Uma peça para ricos. A ironia de possuir uma imagem feita de metais preciosos representando um homem que pregava a humildade não o alcançou.


Acendeu as velas, cruzou as mãos e, deixando a cabeça pender sobre o peito, rezou com a paixão daqueles que têm fé e também a paixão dos loucos.


Pediu graças e se preparou para matar.


 


 


 


 


 

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