Revelações ao pé da lareira
Gina parou assim que alcançou o Salão Principal. Observou as mesas, bufando zangada em seguida. Ótimo, tinha chegado tão cedo que não havia ninguém em todo aquele enorme e estúpido salão com quem ela pudesse sentar, conversar e tomar seu café da manhã.
Ela caminhou com passos pesados, quase se arrastando, até uma cadeira qualquer na mesa da Grifinória e sentou-se com tal estrondo que o suco de abóbora balançou perigosamente dentro da jarra sobre a mesa.
Não que estivesse de mau humor, imagine... ela, Gina, de mau humor? Impossível, inacreditável, totalmente inconcebível! Ela não estava de mau humor; ela estava de PÉSSIMO humor. E o primeiro que lhe olhasse torto ia ser amaldiçoado antes que conseguisse dizer a primeira sílaba de "desculpe".
Talvez ela apenas estivesse de saco cheio de tudo. Ou talvez ela só tenha ficado zangada por causa do seu odioso "Aceitável" na não menos odiosa matéria de Poções. E Snape não precisava ter dito na frente da classe sua nota, ou era tão importante assim a nota da insignificante Srta. Weasley? Gina achava que sua nota era uma informação que só interessava a ela, ela mesma e, sim... talvez a ela também!
Mas, o que mais a estava chateando é que ela não estava tendo tempo para conversar com Harry, e nem ele com ela, e isso estava praticamente apavorando-a! Ela não tinha mais tempo para aulas ou para vigiá-lo, a fim de que ele não cometesse nenhuma idiotice. E ele estava, como fazia antes do acidente, passando muito tempo com Rony e Hermione (talvez nem tanto, afinal, já que os dois estavam ocupadíssimos com as decorações de Natal), mas ainda assim, Harry passava muito mais tempo com eles do que com Gina.
No fundo, bem no fundo, Gina sabia o que estava lhe aborrecendo, e ficou furiosa, quando, na noite anterior, ao escrever em seu diário, o seu sentimento se transformou em palavras: ela estava realmente sentindo falta de Harry.
E isso era uma fraqueza. Ela odiava ser fraca.
Talvez, agora, seja mais fácil entender por que Gina estava de tão mau humor.
Ela praticamente jogou o suco de abóbora em um copo qualquer, derramando-o por todo o lado. Diria um palavrão se não houvesse um primeiranista sentado a duas cadeiras dela. Ao invés disso, ela apenas levou o copo à boca e engoliu o suco de uma vez só.
- Bom dia.
Quando Gina levantou os olhos, viu um Neville que não parecia menos irritado que ela sentar-se à sua frente e catar uma torrada com tanta raiva, que acabou partindo-a em dois pedaços sem querer. Aquilo a assustou um pouco; Neville não era o tipo de pessoa que costumava se irritar. Talvez houvesse pessoas em situação pior que a dela no momento.
- Bom dia, Neville. - ela disse num tom mais agradável do que usaria cinco minutos antes.
Ele não disse mais nada depois, o que constrangeu um pouco Gina. Era aquela estranha sensação que sempre se tem quando se senta perto de uma pessoa e não há absolutamente nenhum assunto para começar. Não que tivesse conversas estupidamente interessantes com Neville toda vez que o encontrasse, mas pelo menos eles não ficavam naquele silêncio, o que a deixava muito sem graça.
Depois de observar Dumbledore, na mesa dos professores, conversando algo com Lupin, que parecia ser extremamente confidencial (ambos estavam muito sérios e aparentando estarem velhos e cansados, dadas as proporções, obviamente), Gina finalmente encontrou algo que poderia falar: não era sério, nem bobo demais, o que tornava o assunto perfeitamente casual para ser comentado no café da manhã.
- Então, você já assinou a lista dos alunos que ficarão aqui no Natal, Neville?
- Não vou assinar. - ele respondeu rabugento, comendo sua torrada e bebendo seu leite como se fosse algo maquinal.
- Anh... Vai passar o Natal com sua avó, então, não é?
- É.
Monossilábico - assim ficava difícil manter uma conversa com ele. Gina estava tão entretida tentando conseguir a façanha de conversar com Neville àquela manhã, que até esqueceu por um segundo seu mau humor matinal.
- Eu vou passar o Natal com minha família também... - ela disse, só por dizer e só para continuar falando. - Rony também vai... Harry e Hermione resolveram aceitar o convite de nossa mãe também...
- Hum.
- E Luna me disse que vai passar o Natal com o pai dela, como sempre.
Neville derrubou sua xícara de café com leite, que se espalhou pela mesa, misturando-se ao suco de abóbora derramado anteriormente por Gina. Resumindo, a toalha de mesa ficou um cocô depois disso, o que significaria mais trabalho para os elfos domésticos. Mas por mais que Gina tivesse uma certa pena deles, ela não era Hermione, então não se importou muito com isso no momento.
O que importava mesmo era que Neville tinha tido uma reação decente diante da insinuação de Gina, o que indicava, felizmente, que ele não tinha virado um morto-vivo ou algo do gênero.
- Eu já sabia. - ele disse depois de um tempo, muito atordoado e nervoso. - Ela me contou.
Gina achou melhor não continuar o assunto "Luna Lovegood" depois disso, pois achou que seria muito forçado, mas ao menos o tranco pareceu funcionar, pois depois disso Neville conseguiu manter uma conversa decente por mais cinco minutos xingando Snape junto com Gina, já que ele tinha recebido não apenas um "Aceitável" como ela, e sim um "Deplorável", e isso era péssimo em ano de N.I.E.M.s. Ficou claro para os dois que isso era pura maldade do professor gorduroso, então, eles passaram esses agradáveis cinco minutos apenas compartilhando doces apelidos para o não menos meigo professor de Poções.
Porém, passados esses cinco minutos, a xícara de Neville não apenas derramou, como caiu no chão e partiu-se em milhares de caquinhos minúsculos. Gina virou rapidamente o rosto para tentar achar o motivo, e logo notou que uma pessoa tinha entrado no salão e observava sem graça, com seus olhos arregalados, Neville se levantar atabalhoadamente.
- Até mais, Gina.
Quando Neville passou ao lado de Luna na porta do salão, ele nem ao menos olhou para ela. Apenas passou direto, fingindo que não tinha visto, e preferiu esbarrar em Draco Malfoy, que também vinha entrando, do que ser obrigado a ficar muito perto de Luna. Malfoy ainda entoou bem alto "Longbottom babaca", mas parecia que Neville nem tinha ouvido. No entanto, Luna tinha ouvido, e olhou para Malfoy com um olhar de desprezo misturado a superioridade, nojo e desimportância, que só ela saberia fazer. Malfoy apenas devolveu com um olhar de maior desprezo e passou reto, dirigindo-se à mesa da Sonserina.
Assim que Luna se sentou em seu lugar costumeiro na mesa da Corvinal, o mais distante possível das outras pessoas, Gina se levantou e sentou-se ao lado dela, recebendo olhares zangados de certos corvinais que não gostavam que alunos de outras Casas se sentassem à mesa deles.
- Hey. - Gina cumprimentou a amiga assim que se sentou. Luna, por sua vez, tinha aberto o exemplar do Pasquim daquele mês sobre a mesa e não se deu ao trabalho de desviar os olhos da revista.
- Oi.
"Ótimo." Gina pensou quase sarcasticamente. "Duas pessoas monossilábicas em uma só manhã."
- E então, Luna? Você não vai me contar o que anda acontecendo? - Gina perguntou jovialmente, como quem não quer nada. - Já fazem três dias que nós não conseguimos conversar decentemente. Não acha que hoje é uma ótima oportunidade para fazermos isso?
- Não.
Hora do plano B. Uma tática alternativa.
- Eu estava conversando com Neville agora pouco.
Luna derrubou o pudim que estava colocando no seu prato. Ela olhou de esguelha para Gina, abriu a boca para perguntar algo, mas antes que conseguisse, desistiu, fingiu um ar de quem não se importa e retrucou rapidamente:
- Eu estive conversando com Harry ontem.
- Sério, como?
E Luna riu. Só então Gina percebeu que isso era tanto quanto impossível. Um: Harry não conversaria muito com Luna mesmo que estivesse consciente de quem era. Dois: atualmente, ele realmente não conversaria com Luna, já que ele apenas tinha uma vaga idéia de quem era ela.
- Bobona. - Gina resmungou, desistindo de conversar com a garota e engolindo um muffin quase inteiro.
Passaram-se alguns minutos antes que Luna quebrasse o silêncio.
- E você esteve mesmo conversando com... Neville?
- Estive.
Agora quem estava querendo ser monossilábica era Gina. E ela sentia que seu mau humor estava dando sinais de que iria retornar.
- Ele... está muito bravo?
- Ah... ele parecia um pouco... - Gina olhou para Luna, que parecia ansiosa, e então decidiu ser sincera. - Quer dizer, ele estava furioso.
- Oh, puxa...
- Você falou com ele, não? Digo... depois do beijo?
Luna parecia muito infeliz ao ter que responder a pergunta.
- Não, eu tento não chegar perto dele.
- Eu não acredito! - Gina exclamou tão alto que alguns corvinais e até alguns lufa-lufas que estavam por perto olharam-na com recriminação. - Você não falou com ele?
- Não é minha culpa! - Luna respondeu na defensiva. - Você viu o que ele fez agora, ele não quer que eu chegue perto dele. Eu só estou... respeitando isso.
- Conta outra.
- O.k.! - ela admitiu derrotada. - Eu também estou muito sem jeito de ir falar com ele...
- Mas você tem que falar, Luna!
- Enumere ao menos um motivo.
- Eu posso até dizer mais que um. - Gina contou nos dedos. - Vocês se beijaram. Vocês têm que discutir isso. Você tem que explicar para ele que não riu exatamente do beijo. Você tem que se despedir dele, já que amanhã todos nós partimos para as férias de Natal. E, ah... - ela apontou um tecido de lã sobressalente que era possível enxergar saindo da mochila de Luna. - ...você tem que entregar o cachecol dele, ou talvez você possa ser indiciada por roubo.
Luna retirou o cachecol de Neville da sua mochila e olhou para o adorno chateada por alguns instantes.
- Eu preciso mesmo fazer tudo isso?
- Sim.
- Você é cruel!
- Eu estou sendo sincera.
Luna suspirou profundamente.
- Eu não tenho coragem de falar com ele, ah, ele está tão bravo comigo... Além disso... além disso...
- Oh, não! - Gina a interrompeu, pressentindo o pior. - Nem diga o que vai dizer.
- Como pode saber o que eu vou dizer? - Luna perguntou petulantemente. - Virou Legilimente, agora, hã?
- Você ia dizer que ainda gosta dele.
Luna arregalou ainda mais seus olhos arregalados.
- Eu não ia dizer isso! Eu ia dizer: "além disso, eu estou muito ocupada procurando minhas coisas que foram novamente escondidas". Era isso que eu ia dizer!
- Esconderam de novo suas coisas?
- Ah, fazem isso sempre... - ela fez um gesto displicente. - Nem ligo mais.
- Que idiotas! - Gina xingou, esquecendo-se por um segundo do assunto principal. - Mas, ah! Não estávamos falando disso, eu ia dizer para você ir enganar outra idiota, porque eu não caio na sua desculpa.
Luna bufou, parecendo muito irritada com a persistência de Gina.
- Tá bom, eu estava pensando mesmo que, "além disso, eu ainda não me esqueci... dele". Satisfeita?
- Estou me sentindo bem melhor agora que você admitiu.
- Ah, não faça essa cara de "há-há, você não me engana".
- Eu não estou fazendo cara de "há-há".
- Dá um tempo...
As duas pararam de discutir por um segundo, e se viraram para frente, onde observaram Harry e Rony sentando lado a lado na mesa da Grifinória. Rony parecia contente com algo, pois tagarelava feliz para um Harry que, de longe, dava a impressão de que respondia apenas "sim", "certo" e "tem razão". Gina se pegou observando o garoto por alguns instantes, e pensou em como o sorriso dele era bonito e na forma como o cabelo desarrumado dele, caindo sobre os olhos, dava-lhe um charme peculiar. Só quando ele reparou que ela estava lhe observando e acenou, com um sorriso tímido, Gina percebeu o que estava fazendo e desviou o olhar depressa. Ao fazer isso, ela viu que Luna observava Rony com tristeza.
- O que você viu no meu irmão, afinal? - Gina perguntou subitamente.
- Não sei... - Luna respondeu sonhadoramente. - O que você viu no Harry?
- Por que sempre que falamos de você, o assunto muda para mim?
- Uma coisa da natureza... não tem explicação.
- Ah, desisto... - Gina suspirou desanimada. Passou-se mais um tempo antes que resolvesse falar novamente. - Então... o beijo de Neville... não significou nada, Luna?
Ela parecia muito infeliz naquele momento.
- Também não exagera... sei lá, foi legal saber que alguém gosta de mim e se importa, mas...
- Mas...
As duas, então, observaram Hermione se aproximar de Harry e Rony na mesa da Grifinória e sentar-se de frente a Rony, que lhe lançou um olhar bastante contente. Hermione parecia um pouco chateada com algo, mas ainda assim respondeu o olhar. Harry olhou de um para outro, então abaixou a cabeça e riu baixinho para seu prato de bacon com ovos.
- Eu já terminei de comer. - Luna disse secamente, e se levantou antes mesmo que Gina pudesse dizer algo.
E então, Gina desviou rapidamente seu olhar para o local onde estavam Hermione, Rony e Harry na mesa da Grifinória. Ela tivera a nítida impressão de que Harry estava olhando para ela, mas deveria ser somente impressão, porque ele parecia bastante concentrado em sua comida quando ela o olhou novamente.
*******
A pena riscava o papel tão furiosamente que sua ponta acabou se partindo. Antes que perdesse ao menos uma única palavra que dizia o Prof. Lupin, Hermione se apoderou da primeira pena que viu pela frente - a de Harry - e voltou a escrever.
- Você não se cansa? - ele perguntou baixinho, olhando-a preocupado.
- Está me atrapalhando! - Hermione respondeu irritada por ter perdido uma palavra que o professor tinha dito. Em meio à sua afobação, ainda pôde ouvir, do outro lado de Harry, Rony comentar desanimado:
- Não sei por que ainda se importa, Harry... Você sabe que ela é doida varrida.
Os dois riram baixinho, Harry mais timidamente do que Rony, como se não estivesse acostumado com aquilo. Hermione lançou um olhar furioso de lado, praguejando.
- Francamente!
O sinal tocou. Uma onda arrebatou a sala de aula e parecia que, magicamente, todos tinham suas coisas já arrumadas, prontas para que pudessem sair correndo daquela classe. Remo Lupin sorriu quase divertidamente para a classe e fez um sinal para que permanecessem na sala, ao que se seguiu um unânime e depreciativo "ahhhhhh".
- Quero que me façam uma redação de três pergaminhos sobre os capítulos 27, 28 e 29, para ser entregue na volta às aulas. - o professor disse sério, apesar de conservar um meio sorriso nos lábios e nos olhos ao ver as caras decepcionadas dos alunos do sétimo ano da Grifinória. - Isso quer dizer que vocês têm todas as férias de Natal para fazerem algo realmente bom, o que vai ser muito proveitoso, já que eu corrigirei essas redações com rigor de N.I.E.M.s, o que refletirá o nível de vocês.
A mão de Hermione rapidamente se ergueu no ar, o que vários colegas reprovaram, pois todos queriam sair logo daquela sala e aproveitarem ao máximo o momento "estamos começando as férias". Rony olhou incrédulo para ela e depois escondeu seu rosto entre os braços, como se tentasse fingir que não a conhecia, o que fez Harry rir baixinho novamente.
- Sim, Hermione?
- A redação pode ser maior que três pergaminhos?
Toda classe ouviu um sonoro "oh, puxa!" vindo de Rony, que rapidamente escorregou na cadeira, ficando apenas visível a ponta dos seus cabelos vermelho-vivos atrás da mesa. Um sorriso brincou nos lábios de Lupin antes que ele respondesse à pergunta:
- Seria recomendável que não ultrapassasse o limite estipulado, Hermione.
Ela abaixou a mão, um pouco desanimada; tinha tido muitas idéias para a redação e teria que cortar pelo menos metade delas por causa do limite. Rony parecia escorregar cada vez mais na cadeira e já não era mais visível. Harry parecia estar achando muita graça.
- Acho que é só isso! - Lupin disse jovialmente, apesar de sua aparência estar mais cansada do que de costume. - Boas férias para vocês!
Ouviu-se aquele familiar som de pessoas se levantando ao mesmo tempo, esbarrando em carteiras e conversando animadamente sobre seus planos para as férias, enquanto se atropelavam para saírem ao mesmo tempo da sala de aula. Harry foi o primeiro a se levantar dentre os três e apenas jogou a mochila nas costas, enquanto Hermione guardava seus livros em ordem na sua própria mochila. Harry cutucou o topo da cabeça de Rony e perguntou, meio rindo, meio sem jeito:
- Tá tudo bem aí embaixo?
- Melhor do que aí em cima, eu presumo. - ele se levantou devagar e olhou incrédulo para Hermione: - Eu não acredito que você teve coragem de fazer aquela pergunta!
Ela deu de ombros, ao mesmo tempo em que fechava a mochila, e disse distraidamente, tentando dissimular o tom de reprovação:
- Pelo menos eu me importo com os meus N.I.E.M.s.
- Nós também nos importamos! - Rony falou dignamente, procurando o apoio de Harry com os olhos. - Só não somos paranóicos!
Hermione revirou os olhos, jogou a mochila nas costas e alfinetou os dois, apressando-os para saírem. No entanto, quando estavam caminhando para frente da sala, Harry estancou automaticamente. Rony e Hermione olharam instantaneamente para a porta e viram o mesmo que ele: Severo Snape tinha acabado de entrar, esvoaçando como um morcego até alcançar a mesa de Lupin, que estava mais preocupado em organizar seus papéis sobre a mesa.
- Preciso conversar com você, Lupin. - o mestre de Poções disse com sua voz seca e fria.
- Oh, claro, Severo, mas será que poderia ser mais tarde? Eu...
- Tem que ser agora.
E Snape lançou um olhar penetrante para Lupin, que pareceu ter entendido a mensagem, pois parou de mexer em seus papéis e dispensou sua total atenção ao colega. No mesmo instante em que Snape girou seu rosto para ver o trio, Hermione deixou cair alguns livros sobressalentes que carregava nos braços, abaixando-se para apanhá-los. Harry e Rony também se abaixaram.
- Tudo bem, Severo. - eles ouviram a voz de Lupin, enquanto reuniam o mais devagar possível os livros de Hermione. - Pode falar.
- Não, não posso.
Hermione, levantando um pouco os olhos a pretexto de pegar seu livro de Transfiguração, que estava um pouco mais além, viu nitidamente Snape lançar um olhar desconfiado não para os três, mas apenas para Harry, que estava ocupado recolhendo o livro de Aritmancia e não percebeu.
Ela sentiu uma leve cotovelada de Rony no seu braço, e quando se virou para vê-lo, ele lhe lançou o tipo do olhar "não adianta insistir". Entendendo isso, ela recolheu os livros restantes e, assim, Harry, Rony e Hermione saíram da sala, sendo acompanhados pelo olhar de desconfiança de Snape e pelo sorriso amigável de Lupin. Quando Harry encostou a porta atrás deles, Rony rapidamente colou seu ouvido na porta.
- O que será que estão conversando? - ele perguntou num sussurro.
- E daí? - Harry deu de ombros. - Não vamos conseguir ouvir mesmo... É melhor irmos embora...
Tanto Rony, quanto Hermione, olharam com descrença para o amigo; geralmente Harry era o primeiro a querer ouvir uma conversa como essa. O que estava dando nele, afinal? Não era recente uma certa desconfiança que Hermione estava tendo dele; Harry estava realmente estranho...
- Você não tem nenhuma Orelha Extensível na mochila, Rony? - ela perguntou, esquecendo-se da desconfiança quanto a Harry por um segundo.
- Claro! - ele exclamou, um pouco alto demais, e Hermione olhou-o com repreensão. - Quer dizer, acho que tenho algo aqui... - ele prosseguiu envergonhado com o deslize, revirando sua mochila avidamente.
Harry lançava um olhar esquisito para Rony, como se vários pensamentos estivessem passando por sua cabeça enquanto observava o amigo revirar a mochila à procura da Orelha Extensível. Depois um tempo que pareceu a eternidade, Rony finalmente achou um cordão cor de carne, comprido, que enfiou na orelha rapidamente; a ponta do cordão entrou sorrateiramente pela fresta da porta.
- Você não tem mais, para nós ouvirmos também? - Hermione perguntou desesperada.
- Shhh! Meu estoque está baixo, agora fica quieta!
Por alguns segundos, Rony não disse nada, e Harry e Hermione também permaneceram em silêncio. A garota, impaciente e ardendo em curiosidade, desistiu de olhar para Rony, e lançou um olhar rápido para Harry. Novamente, ele estava esquisito: seu olhar parecia concentrado em Rony, mas dava a impressão que o pensamento dele não estava presente ali. Foi no momento em que Hermione começava a divagar mentalmente sobre isso, que Rony exclamou alarmado:
- Tocaram no seu nome, Harry!
Antes que Hermione pudesse arrancar as Orelhas Extensíveis de Rony, Harry foi mais rápido e o fez primeiro: ele puxou o cordão da orelha do amigo, parecendo muito sério, e a colocou rapidamente no seu próprio ouvido. Rony, que a princípio se assustara com a atitude de Harry, afastou-se ligeiramente dele, e ele e Hermione observaram o amigo: não era possível tentar decifrar o que se passava na sua mente, pois seu rosto era um completo mistério. Eles só sabiam que, após alguns minutos, Harry retirou o cordão do ouvido e entregou-o a Rony.
- E aí? - Hermione perguntou sedenta de informações.
Harry começou a caminhar, e Rony e Hermione apressaram o passo para acompanhá-lo.
- Eu não sei por que estão tão interessados... - ele disse, dando pouca importância ao caso. - Eu não ouvi nada demais...
- Como? Eles não estavam falando de você? - Rony perguntou, quase tão desesperado quanto Hermione.
- Pelo que eu entendi... - Harry falou devagar, desviando o olhar deles. - O... anh... o... Snape... estava reclamando de mim.
- Ah, isso não é novidade... - Rony fez um gesto de desimportância.
Mas Hermione ainda não estava convencida.
- O que eles disseram, Harry? Exatamente?
- Anh... eu não me lembro direito... - ele disse rapidamente. - Snape disse que eu era arrogante, algo assim...
Hermione ia perguntar algo, mas Rony emendou:
- Pois eu ouvi Snape dizer algo como "desconfiado" e "Potter não está agindo comigo normalmente".
- Foi o que você ouviu? - Hermione perguntou, extremamente interessada.
- Foi... Estranho. - Rony deu de ombros, fazendo uma de suas características caretas.
- Mas, nesse ponto, Snape tem razão... - Hermione disse vagamente, observando Harry pelo canto dos olhos. - Você realmente não tem agido normalmente... nem com Snape, nem com ninguém, Harry.
Um estrondo. Harry tinha deixado sua mochila cair sem querer no chão. Ele se abaixou para recolher as coisas que tinham rolado pela abertura. Rony e Hermione também se abaixaram.
- Não é verdade, Harry? - Hermione pressionou, enquanto entregava a ele as suas anotações de Defesa Contra as Artes das Trevas, tentando enxergar seus olhos, mas era difícil, já que a franja os encobria.
- Talvez... - Rony divagou. - Harry esteja fazendo uma tática alternativa com o seboso. Para ele parar de perturbá-lo um pouco.
Hermione poderia bater em Rony por ter-se metido no meio da conversa. Ela tinha a nítida impressão de que a frase dele foi a deixa que Harry estava esperando para se levantar e concordar, murmurando qualquer coisa sobre não querer arrumar briga com Snape.
Mas ela ainda estava desconfiada. Aquele comportamento de Harry, com toda a certeza, não era comum.
*******
Hogwarts, 12 de dezembro de 1997
Aqui estou novamente. Queria ter alguém para conversar, dividir as minhas aflições, mas não tenho. Até teria, se não fosse tão covarde a ponto de não conseguir dizer aos que confio (ou pelo menos acho) o que está acontecendo.
Cada dia que passa, eu me sinto mais horrível, mais egoísta, mais terrivelmente culpada pelo que estou fazendo. Eu o vejo sempre daquele mesmo jeito: sorrindo, mas triste por dentro. Imagino o quanto deve ser difícil viver num mundo ao qual se acha não pertencer, a um mundo que não se conhece, e ainda por cima, ter que fingir que o conhece. E tudo é minha culpa.
Às vezes, repasso na memória o que aconteceu naquele fatídico dia 26 de outubro, quase dois meses atrás (e como é assustador pensar que já se passaram dois meses em que vivo nessa agonia), e a única conclusão a que chego é que foi minha, e somente minha, a culpa por Harry se encontrar do jeito que está atualmente. Se eu não tivesse sido estúpida a ponto de cair naquela ridícula armadilha de Bellatrix Lestrange, Harry não teria se arriscado para me ajudar e, conseqüentemente, não teria batido a cabeça e perdido a memória.
As minhas horas na biblioteca e a imensa pilha de livros que eu tenho ao lado da minha cama até hoje não me deram a mínima ajuda, nem ao menos uma faísca de luz do que eu poderia fazer por Harry, para ajudá-lo a recuperar suas lembranças. E, além disso, Madame Pince vive relutando em me emprestar os livros, tanto que eu só consegui apanhar dois para levar para casa nessas férias.
E dá agonia ver Harry dessa maneira e saber que eu não posso fazer muita coisa por ele.
Talvez, se eu contasse a alguém... Rony e Hermione são as primeiras pessoas que vêm à minha cabeça, mas ter coragem para dizer a eles a verdade já é outro imenso passo que ainda não estou pronta para dar. E eu sei que, a cada dia que passa, fica mais difícil contar a eles. Imagino o quão decepcionados e magoados ficarão ao saber que demorei dois meses (ou talvez mais) para lhes contar algo que deveriam ter ficado cientes assim que aconteceu. Afinal, Harry sempre foi o melhor amigo deles, e não meu.
De novo, estou sendo egoísta.
Mas estou reunindo coragem para contar a eles toda a verdade (sim, estou até formulando as frases) durante essas férias, quando estivermos longe da escola e de ouvidos curiosos.
Penso também em Dumbledore, mas contar para ele é ainda mais complicado. Além disso, ele está cheio de problemas, e eu não tenho o menor jeito para ir falar com ele. Quem tem esse jeito é o Harry, mas ele, no momento, nem sabe direito quem é Dumbledore.
Há tantas coisas que eu tenho que fazer... Outra coisa que constantemente tira o meu sono é o fato de que eu ainda não contei quase nada sobre o passado de Harry a ele. Não contei sobre seus pais, Sirius, e tudo o que representa ser quem ele é. Tenho medo do dia que terei que fazer isso, e sinto que esse dia está chegando. Tive sorte, até agora, de não ter estado com Harry tempo suficiente para que ele entrasse no assunto, mas sei que, durante essas férias, estarei bem mais próxima dele do que aqui no castelo.
E ainda tenho aquele horrível, desagradável e inquietante problema sobre meus sentimentos... Eu sei que isso é mais egoísmo ainda, mas simplesmente não consigo deixar de pensar nisso e sentir como se ele fosse a maior das minhas aflições. Eu juro que não queria voltar a sentir tudo isso, mas é impossível! Só preciso olhar nos olhos verdes de Harry, sentir a vibração que emana deles, e não mais consigo fazer o que planejava, que era minar esse sentimento dentro de mim.
Eu me odeio!
Agora, eu sei que
POW. Gina acabou riscando o papel do diário tal foi o susto que levou. Ela se virou na cama, abriu uma das frestas do cortinado da cama e espiou. Foi difícil segurar o riso: uma de suas colegas de quarto - por sinal, a mais nojenta e irritante de todas - tinha acabado de levar um tombo histórico. Provavelmente, tinha ido muito além nos seus sonhos e se empolgado além do normal. Assim como Gina, outras meninas do quarto também espiavam pelas cortinas para ver o que tinha acontecido.
Rindo baixinho, Gina fechou as cortinas da sua cama e voltou novamente sua atenção para o diário. Ficou com raiva da desastrada garota (que agora dava uma desculpa esfarrapada às amigas por ter caído daquela maneira) ao ver o enorme risco que estava na página em que escrevia; teria que dar um jeito de apagar aquilo depois, mas um feiticinho resolveria fácil o seu problema. O pior mesmo era que ela tinha perdido a disposição para escrever.
A garota fechou o diário, marcando a página cuidadosamente com sua pena, e escondendo-o debaixo do colchão. Ainda ouvia a conversa murmurante de suas colegas. Esperou até que serenasse e, pé ante pé, abandonou sua cama e saiu do quarto.
Ainda não conseguiria dormir. Aliás, dormir era algo difícil para Gina ultimamente. Sempre que deitava a cabeça no travesseiro, invadiam-lhe todos aqueles pensamentos que expressava em palavras nas páginas do seu diário (e ela ficava grata por ele não lhe responder).
Ela sabia como se chamava aquilo que sentia e que não a deixava dormir: culpa.
O silêncio nos corredores dos dormitórios femininos era quase aterrorizante. Se havia algo que Gina não gostava em excesso era de silêncio; sempre a fazia se sentir só, e isso lhe remetia a pensamentos ruins na maioria das vezes. Para piorar, as chamas das tochas nas paredes quase estavam se extinguindo, o que significava que os elfos domésticos ainda não tinham vindo reforçar a magia delas. Dessa forma, a escuridão naqueles corredores quase fazia Gina se afogar nela, ao mesmo tempo que a sua própria sombra bruxeleante movimentava-se nas paredes como uma sentinela que não parava de seguí-la, sempre presente, como se a perseguisse.
Passou pela porta do dormitório do sétimo ano, o que lhe remeteu o pensamento de imediato a Hermione. Tinha certeza que ela estava desconfiada; não só ela, como Luna também. Isso perturbava Gina imensamente. Ela ficava imaginando o dia em que qualquer uma das duas iria encostá-la na parede, forçando-a a contar a verdade. Era por isso que Gina tinha que contar isso logo, antes que descobrissem por si mesmas.
Novamente, Gina teve aquele mesmo pensamento que tinha há muito tempo, o de comparar Hermione e Luna. Apesar das duas não se gostarem e, aparentemente, Luna ser exatamente o contrário de Hermione, isso não era verdade. Gina achava as duas muito parecidas em certos aspectos; tanto Hermione, quanto Luna, era muito inteligente, de uma maneira que Gina nunca conseguiria ser. A diferença era exatamente que Hermione demonstrava sua inteligência, diferente de Luna, que preferia demonstrar aquele seu jeito lunático de ser. Mas Gina tinha certeza de que havia algo grande escondido atrás daquela fachada de aparente maluquice da amiga. Deveria haver algum motivo para que Luna fosse da Casa dos mais inteligentes, a Corvinal.
Sem que percebesse, seus passos levaram Gina até a escada que desembocava na Sala Comunal. Ela parou no topo, pensando se deveria ou não voltar, mas teve certeza de que não conseguiria dormir, então uma espairecida na sala e um copo d'água seriam bem-vindos naquele momento. Gina desceu as escadas, silenciosamente.
Foi com surpresa que ela descobriu que não era a única com insônia. Próximo à lareira, alguém estava sentado, abraçando as próprias pernas, sozinho. Era Harry.
A garota não soube por quanto tempo ficou apenas observando-o, calada. Ela via o fogo fraco da lareira refletindo-se dentro dos olhos verdes do garoto, vidrados, que certamente escondiam muita coisa naquele momento. Os cabelos desgrenhados dele estavam, como sempre, caídos sobre o rosto e os olhos, espetados para todos os lados possíveis e imagináveis. Os óculos, seguros na gola da camisa do pijama azulado, chamaram a atenção de Gina para o tórax de Harry; ele não tinha fechado todos os botões da camisa, e dava para enxergar parte do peito, já coberto por alguns pêlos.
Gina sentiu seus joelhos tremerem ligeiramente, ao mesmo tempo em que a palma de suas mãos começava a suar involuntariamente.
Ela queria que Harry não tivesse percebido sua presença, pois achava que tudo ficaria mais fácil se assim o fosse, mas como a maioria das coisas não acontece do jeito que queremos, ele teve que notá-la ali. Seu rosto virou-se ligeiramente, e seus olhos perfuraram Gina de tal forma que ela engoliu em seco ao receber aquele olhar. Jamais pôde esquecê-lo; era como se Harry, da mesma forma que ela mesma fizera anteriormente com ele, observasse-a com tal intensidade, tal completa e inexplicável admiração, que fez com que Gina sentisse seu coração acelerar violentamente no peito, enquanto suas pernas ficavam moles. O verde dos olhos de Harry brilhava tão intensamente, apesar de parecer esconder uma certa melancolia, que parecia que a única luz naquela sala - ao menos para Gina - provinha dos olhos dele. E, por mais que estivesse nervosa, ela não conseguia desgrudar seu olhar do dele, e o mesmo parecia acontecer com Harry.
- Pensei que só eu não conseguisse dormir... - ele murmurou com a voz serena, ainda sem tirar os olhos de Gina.
- Parece que temos o mesmo pensamento, então. - foi a vez de Gina falar, e seu tom de voz aparentemente calmo escondia seu nervosismo. Ela se agradeceu por isso.
Como se a mesma estranha sensação ocorresse a ambos, os dois desviaram os olhares; Harry voltou a observar o fogo da lareira, ao mesmo tempo que Gina encarou os próprios pés. E (dessa vez ela se amaldiçoou), por mais que seu cérebro repetisse que era imprudente se aproximar de Harry, seus pés desobedeceram-na sem a menor vergonha e caminharam sozinhos até a lareira, onde Gina se sentou ao lado de Harry, também abraçando suas pernas como ele. Como se sentisse a presença de Gina, o garoto respirou fundo, dolorosamente, e por sua vez esticou suas pernas, ainda com os olhos grudados nas chamas escassas da lareira.
Ficaram em silêncio. Gina desviou seu olhar para a janela, onde podia enxergar uma neve fina caindo lá fora. No dia seguinte pegariam o Expresso de Hogwarts, de onde seguiriam para o Largo Grimmauld. Gina tinha medo só de imaginar o que poderia acontecer naqueles próximos dias.
- Eu gosto do fogo... - Harry disse subitamente, e Gina se virou para encará-lo; ele observava, ainda, as chamas, ao mesmo tempo em que esfregava uma mão na outra, e Gina constatou que elas estavam tão suadas quanto as suas. - É relaxante.
- Você está tenso? - Gina teve o atrevimento de perguntar.
Naquele momento, Harry não fez objeção em responder às perguntas da garota.
- Estou.
- E por quê?
- Ah, Gina... - ele disse cansado. - Você sabe melhor do que eu. Apesar de não saber o que se passa na minha cabeça, claro.
"Bem que eu gostaria de saber." Gina pensou, sentindo-se novamente culpada. - Me desculpe, Harry.
- Não é necessário que se desculpe. A culpa não é sua.
- É claro que é! - Gina teimou com a voz embargada, seus olhos fixando-se em uma parte carcomida do tapete, pois era impossível olhar para Harry naquele momento. - Se não fosse por mim, você não estaria assim... Você não teria que fingir, dissimular... Aliás, você nem teria porquê, já que provavelmente não teria esquecido de tudo...
Gina tinha uma imensa necessidade de falar, de se explicar, de se desculpar, mas Harry não permitiu. Antes que ela pudesse pegar fôlego para prosseguir, ele retomou a palavra:
- Talvez eu esteja melhor agora... apesar de tudo. Mas eu não posso ter certeza... não sei como eu era antes.
Aquilo despertou uma contração no peito de Gina. Ele queria saber, ele tinha direito de saber. E ela não podia mais ocultar a verdade dele.
- Pergunte o que quiser, Harry. - ela disse tristemente, seus olhos se fixando, dessa vez, no fogo da lareira. - Eu não vou mais esconder nada de você.
Ela sentiu quando Harry virou o rosto bruscamente, olhando surpreso para ela. No entanto, Gina não teve coragem de olhá-lo, sabia que encarar aqueles olhos verdes pioraria as coisas que já eram ruins por si mesmas e, talvez, desencorajasse-a de dizer o que estava prestes a falar. Ela escutou e sentiu quando Harry suspirou profundamente, voltando a concentrar seu olhar também na lareira. Ele parecia dividido entre falar ou não falar, mas parecia que algo o impulsionou a fazê-lo, algo maior, que praticamente o obrigava a isso.
- Você nunca me disse direito... quem eu sou. Nunca me disse nada de concreto sobre a minha vida, a minha família... O meu passado. Tudo que eu não consigo me lembrar.
Gina respirou fundo, sentindo um peso enorme sobre si. Ele realmente tinha o direito de saber aquelas coisas. Mas ela também sabia que, apesar de querer a verdade, Harry ficaria terrivelmente abalado com aquelas revelações. No entanto, Gina tinha que dizer, era seu dever. Só ela podia fazer isso.
- A sua história é muito complicada, Harry. - ela começou, sentindo o coração se contrair dolorosamente. - Primeiro eu quero que entenda que há várias coisas que eu desconheço. Tenho certeza de que há coisas sobre você, que apenas você sabe, e que nunca revelou nem a mim, nem a qualquer um. Você é uma pessoa muito solitária, Harry, apesar de estar cheio de pessoas que o amam a sua volta. Porém, você teve tantos golpes na sua vida, que eles te tornaram essa pessoa triste e solitária. Eu estava com medo de te contar a verdade, pois sabia que seria duro, e tenho receio que você volte a ser como era antes, uma pessoa que não sorria, sempre fechado e triste... Você quer mesmo que eu te conte tudo que sei?
Por alguns minutos, Harry permaneceu em silêncio, e o único som em toda a sala era do fogo crepitando lentamente, quase morrendo. Gina também escutava a sua própria respiração pesada, assim como a de Harry.
- Eu quero que conte, Gina. Preciso saber...
Dava a nítida impressão que cada palavra era difícil ser pronunciada por Harry, como se fosse terrivelmente doloroso dizer cada frase. Gina fechou os olhos e juntou fôlego.
- Os seus pais estão mortos, Harry.
- Como?
- É exatamente o que você ouviu. E era para você estar também, se o feitiço que o assassino deles fez não tivesse dado inexplicavelmente errado.
Gina explicou, em detalhes, tudo o que conhecia da famosa história de Harry Potter. Desde o dia fatídico em que os pais de Harry foram assassinados, até a história da perseguição de Voldemort a ele, contando, junto a tudo isso, o que ela sabia sobre a infância de Harry, sua família, seus tios... Gina narrou todos os acontecimentos de que tinha conhecimento; ela contou as façanhas de Harry, contou como ele a tinha conhecido, conhecido Rony, Hermione, como era o relacionamento com cada um deles, com os professores, com Dumbledore, até com Snape. Contou o pouco que sabia sobre os pais de Harry, contou como ele conheceu Sirius - pelo menos a história que tinham contado a ela -, e também falou sobre os anos dele em Hogwarts... O que sabia sobre a Pedra Filosofal, o que tinha acontecido entre eles na Câmara Secreta, o Torneio Tribruxo, o retorno de Voldemort nesse mesmo ano e, o que foi mais difícil e mais demorado: falar sobre o que tinha acontecido no Departamento de Mistérios.
- Espera um pouco... - Harry disse em certo ponto, chocado e atordoado com aquela explosão de notícias que lhe acometiam. - Eu não entendi direito isso sobre meus pais... esse Sirius... e o professor de Defesa Contra as Artes das Trevas, o Prof. Lupin. Isso está me confundindo...
Gina olhou de esguelha para ele, pela primeira vez desde que começou a contar tudo. E ela pôde ver, nos olhos dele, que estava doendo ouvir tudo aquilo. Teve pena de Harry, mas sabia que, após ter começado, teria que terminar.
- Pelo que sei, e não é tanto quanto você deve saber, os seus pais, Sirius e o Prof. Lupin tinham uma ótima amizade na época de Hogwarts. Como eu já te disse, Sirius foi acusado injustamente de trair seus pais, mas isso caiu por terra quando você, Rony e Hermione, descobriram a verdade, que eu já te contei também.
- Eu entendi essa parte. - ele interrompeu, contraindo as sobrancelhas. - Mas eu queria entender... você poderia me falar mais sobre Sirius?
Gina engoliu em seco, fechou os olhos dolorosamente e respirou fundo. Se aquilo doía nela, imaginava o quanto doeria em Harry.
- Sirius... era seu padrinho. Vocês tinham um relacionamento invejável. Sirius era, para você, ao menos eu tinha essa impressão, como um pai e um irmão mais velho; aquela pessoa que você dividia suas aflições e confiava, mas ao mesmo tempo ria e brincava como com um grande amigo.
- Por que você se refere a ele no passado? Isso acabou, nós brigamos ou algo assim?
Gina se virou para olhá-lo. Seus olhares se cruzaram, e Gina viu como estava sendo complicado para Harry ouvir todas aquelas coisas. E era também para ela tão difícil ter que dizer tudo aquilo para ele... Ela queria que não fosse ela a ter essa tarefa.
- Vocês não brigaram. Foram amigos até o final.
- O final?
- Sim. Naquele dia, Harry... o dia que entramos no Departamento de Mistérios, Sirius foi morto.
Foi como se Harry tivesse levado um tapa. Ele mordeu os lábios, desviou os olhos por um instante tenso, parecendo não acreditar no que ouvia. Somente depois de muito tempo, murmurou:
- Quantas pessoas eu perdi na minha vida, afinal?
Gina fechou os olhos, sentindo o coração muito apertado. Sua garganta estava incrivelmente seca, bem como sua boca. Seus olhos, porém, estavam molhados, e ela fez um enorme esforço para se controlar e não derramar sequer uma única lágrima; aquele assunto também era difícil para ela, mas incomensuravelmente mais difícil para Harry, e ela não demostraria fraqueza na frente dele, pois sabia que, naquele momento, ele dispunha somente dela para se apoiar; e ela o apoiaria sempre.
- Harry, é o que eu te disse antes... Sim, você perdeu várias pessoas importantes na sua vida, você viu mortes, e tudo isso foi horrível, eu sei, mas...
- Eu acho que sou a pessoa mais desgraçada do mundo, se isso é possível! - ele exclamou com revolta, e quando Gina abriu seus olhos, sentiu-se desarmada. Harry a encarava com dor, seu rosto avermelhado e seus cabelos caindo-lhe sobre o rosto, mais desordenadamente do que o normal. - Tudo que você me contou, Gina... eu...
- Mas você tem muitas pessoas que te amam, Harry! - ela insistiu corajosamente, sua voz se enchendo de emoção, como se fosse seu próprio coração que falasse naquele momento. - Pessoas que te querem tão bem, Harry... Eu entendo sua revolta, sua dor, mas... você não está sozinho! E é necessário que entenda isso muito bem, porque é justamente o que você nunca conseguiu compreender! Há pessoas que gostam de você e querem o seu bem... que se preocupam e te amam... te amam muito... - ela virou o rosto por um instante, limpou discretamente o rosto na manga do pijama, e depois se forçou a voltar a olhar para Harry. - Você sempre terá pessoas que estarão ao seu lado, para o que der e vier, você me entende?
Dessa vez, foi Harry que abaixou os olhos. Por alguns instantes, Gina não pôde enxergar seu rosto, encoberto pelos seus despenteados cabelos negros. Subitamente, Harry se levantou, e Gina ouviu seus passos pela Sala Comunal e algo que ele provavelmente queria esconder dela: uma respiração profunda, anasalada, característica de quem tinha o nariz entupido pelas lágrimas. Ela não o olhou nesse momento: respeitou a sua vontade de chorar sem ninguém vê-lo fazendo isso.
- Você disse... - Gina ouviu a voz de Harry. - ...sobre esse tal de Voldemort... Pelo que eu entendi, ele foi o culpado de tudo.
- Partindo-se do princípio de que ele começou toda essa guerra, vários anos atrás... Sim, ele é o culpado de tudo.
Novamente, a respiração profunda de Harry.
- Ele matou os meus pais... tentou me matar...
- Muitas vezes... - Gina completou. - Mas ele nunca conseguiu.
Harry riu sem alegria.
- O que o impede, afinal? Por que ele não me mata logo?
Doeu ouvir aquelas palavras saindo da boca de Harry, depois de Gina já ter se acostumado a vê-lo sorrir, rir... falar palavras doces para ela. Era como se ela estivesse tendo uma visão do antigo Harry, a diferença era que, agora, esse Harry não era o mesmo; ele estava descobrindo tudo aquilo. Mas Gina teve certeza de que, no fundo, o antigo Harry estava guardado dentro desse, apenas esperando o momento para voltar. E ela não tinha certeza se queria tanto isso como deveria...
- Eu não sei, Harry... - a voz dela estava dolorida. - Eu não sei... Há coisas que eu não posso te explicar. Ninguém sabe por que ele não consegue te matar.
Silêncio. A respiração de Harry se tornou mais profunda e tensa.
- Apesar de que....
- Apesar?
- Havia uma profecia... escondida nas entranhas do Departamento de Mistérios. Ela envolvia você e... - ela respirou fundo. - ...Voldemort.
- E... o que ela dizia?
Gina sentiu uma estranha inflexão na voz de Harry, algo que não conseguiu definir, mas não se importou e respondeu à pergunta:
- Eu não sei. A profecia se quebrou naquele dia. E ninguém sabe o que ela dizia... nem V-Voldemort... nem você...
Novamente, um silêncio pesado. Gina observou o fogo da lareira se extinguindo, lentamente, até restarem apenas cinzas. Um sentimento estranho a abateu; apesar de estar se sentindo mal por ter contado tudo aquilo a Harry, apesar de estar com pena dele, ainda assim ela sentia como se tivesse acabado de tirar um grande peso de suas costas: ela já tinha contado a verdade a ele. Não precisava mais conviver com aquele peso, aquela culpa por esconder dele quem ele realmente era. Ao menos, a sua culpa tinha diminuído, apesar de ela se culpar por muitas outras coisas também.
- Por que você não me contou isso tudo antes?
Mais uma vez, o tom de voz dele estava estranho. Gina esperava que ele estivesse magoado com ela, com raiva, talvez até nervoso por ela ter-lhe escondido tudo aquilo, mas não; Harry utilizava um tom diferente, quase resignado, apesar de esconder uma intensa emoção o máximo que conseguia.
- Eu... não queria que você sofresse. - Gina disse com a voz embargada, sentindo algumas lágrimas teimosas escorrerem por seu rosto. Ela cobriu os olhos com as mãos, satisfeita por Harry estar longe dela e não estar vendo sua fraqueza. - Eu só queria... que você continuasse sorrindo.
Aquilo pareceu tocar Harry, pois ele suspirou profundamente, murmurando um desconsolado "Oh, Gina...".
Ela limpou rapidamente seus olhos, aproveitando o momento no qual Harry parecia refletir, enquanto respirava em grandes arfadas. Gina sentiu como se algo estivesse entalado na sua garganta e como se uma mão pesada pressionasse seu peito com muita força. Naquele momento, ela sentiu que realmente amava Harry. E não havia como negar isso, principalmente para si mesma. Aquela paixão de menina não era apenas uma idiotice, afinal. Era amor. E naquele exato instante, ela percebeu que nunca sentiria algo assim por mais ninguém. Não adiantava, tampouco, tentar minar esse sentimento, como ela tentava fazer há anos; era inútil e impossível. Ela amava Harry.
E tudo era tão injusto! Ela não se conformava que ele tivesse que passar por tudo aquilo! Ela queria tanto impedir isso, ajudá-lo, mas sabia que era impotente, que não representava nada perante tudo aquilo que o envolvia... E doía, doía tanto ter essa dolorosa certeza... Como ela queria poder arrancá-lo de tudo aquilo, impedir que todas aquelas coisas ruins acontecessem com ele!
E ela entendeu que não importava que ele não a amasse. Ela apenas queria ver o sorriso no rosto dele, mesmo que fosse daquela forma triste: sem ele se lembrar dele mesmo, de todos...
E dela.
Gina estava tão perdida em seus próprios pensamentos, que nem percebeu quando Harry se aproximou dela, sorrateiramente, e sentou-se ao seu lado. Ela ainda encarava vagamente as cinzas da lareira quando sentiu sobre sua mão o toque suave, cálido e delicado da mão suada dele. Ela fechou os olhos, sentindo seu corpo todo tremer levemente e uma inexplicável tristeza apoderou-se dela. Quando reabriu seus olhos e virou o rosto para vê-lo, Harry novamente tinha aquele brilho estranho no olhar, de completa admiração... Gina umedeceu seus lábios, olhando-o com uma mescla de angústia e amor.
- Obrigado. - ele murmurou sinceramente.
Novamente, Gina se sentiu desarmada. E, inexplicavelmente, ela fez algo imprudente, mas tão expontâneo, que nem se repreendeu depois de fazê-lo: ela o abraçou, com amor, amizade e ternura. Ela envolveu seus braços à volta dele, encostando seu queixo no ombro esquerdo dele e encostando levemente o lado direito de sua cabeça no ouvido dele. Ela pressionou sua mão esquerda nas costas dele, apertando-as com força, como se temesse perdê-lo; ela levou sua mão direita aos cabelos dele, acariciando-os delicadamente. Ela sentiu o cheiro dele, que a entorpecia, e sentiu também a quentura que emanava do seu corpo, encostado no dela. E ela se sentiu feliz por estar próxima a ele, ela se sentiu completa e serena, apesar de todos os problemas que se mostravam insolúveis à sua frente.
Um pouco surpreso, Harry retribuiu o abraço de uma maneira um tanto quanto desajeitada, mas ainda assim, carinhosa. Ele também apertou Gina com tal força e necessidade, que ela se assustou. Era mais do que temer perdê-la, era algo que ela não conseguia compreender. Ele encostou, também, seu queixo no ombro dela, e Gina sentiu a respiração profunda e lenta de Harry.
Gina não saberia dizer por quanto tempo eles permaneceram abraçados, só soube que quando Harry se separou do abraço, ela viu algo totalmente novo no brilho dos olhos verdes dele. Algo que nunca tinha percebido antes. Sentiu as mãos dele segurarem seu rosto carinhosamente, e os dois não desgrudavam os olhos um do outro. Lentamente, ele aproximou o rosto dele do dela, e suas testas suadas se encostaram suavemente. Seus olhos estavam extremamente contíguos, seus narizes se tocavam, e era possível sentir o hálito fresco que emanava dos lábios, tão próximos dos dela. Gina sentia seus membros formigando, como se estivesse flutuando. Os olhos verdes dele a observavam com tamanha admiração, que Gina teve um certo medo do que aquilo pudesse realmente significar. Os suores de seus corpos se confundiam, e a respiração deles parecia ser a mesma. Gina sentia-se em completo estado de torpor, como se aquilo não estivesse acontecendo, como se fosse um sonho em uma noite de neve... Ela só não queria acordar...
- Oh! Harry Potter, meu senhor!
Como se tivessem sido atingidos por um choque elétrico, Harry e Gina se separaram, antes que pudessem realmente consumar o que estavam prestes a fazer. O coração de Gina saltou, e era como se suas costelas fossem explodir, tal era a força com que seus batimentos cardíacos aceleraram e seus pulmões trabalhavam. Harry parecia na mesma situação, e quem o visse naquele momento pensaria que ele tinha acabado de sair do campo de quadribol, de tão ofegante que estava.
Rapidamente, como fossem atingidos ao mesmo tempo pela mesma sensação, Harry e Gina se levantaram e procuraram a fonte da voz esganiçada. Enxergaram Dobby, o elfo doméstico, praticamente afogado na sua costumeira pilha de gorros e meias habituais - todos os que Hermione costurava. Apesar dos esforços da garota, os elfos ainda não aceitavam a liberdade, e o único que limpava a Sala Comunal da Grifinória ainda era Dobby.
- Dobby sente muito, muito mesmo, Harry Potter, senhor! - ele exclamou, com sua voz esganiçada, fazendo uma reverência exagerada, e o resultado foi seu nariz encostar-se ao chão, ao mesmo tempo que pelo menos uns três gorros coloridos rolaram pelo chão. - Dobby não queria atrapalhar Harry Potter, Dobby sente muito, Dobby vai embora...
Gina olhou para Harry, que encarava o elfo surpreso e, posteriormente, como se tivesse se dado conta do que estava acontecendo, seu olhar demostrava que não estava entendendo absolutamente nada. Ao mesmo tempo, seus lábios estavam ligeiramente entreabertos e ele tinha estampada no rosto uma clara decepção.
- Não! - foi Gina que exclamou, envergonhada. - Tudo bem, Dobby... Você não atrapalhou nada...
Ela sentiu quando Harry a olhou, mas não o olhou de volta. Ela não soube, portanto, se ele estava aliviado ou incrédulo. Gina, na realidade, ainda não tinha se dado conta do que tinha acontecido - ou quase acontecera - naquela sala, poucos minutos antes. Ela ainda achava que tinha sido delírio, aquilo simplesmente não poderia ter acontecido! Ela respirou fundo e reforçou:
- Fique, Dobby.
O elfo parecia confuso, mas ainda assim obedeceu, começando a limpar a sala, murmurando insistentemente pedidos de desculpas. Gina olhou de esguelha para Harry, que ainda a encarava, mas ela não conseguiu definir o que dizia o olhar dele. Ela, então, simplesmente deu às costas a ele, dirigindo-se à escadaria feminina.
- Gina...
Ela não se virou, apenas parou onde estava. Dobby ainda murmurava desculpas enquanto varria.
- Você sabe... se há alguma foto... dos meus pais, de Sirius?
Aquilo tocou Gina profundamente. Ela quase tinha se esquecido, após toda aquela agitação, o início daquela conversa. Respirou dolorosamente e murmurou:
- Eu sei que você tem um álbum de fotografias... Você às vezes aparecia com ele. Mas eu não sei onde está, provavelmente está nas suas coisas... Você terá que procurá-lo.
E ela subiu as escadas, deixando Harry para trás, sem ao menos olhar para ele. Sentia algo estranho dentro de si. Doía. Ainda conseguiu escutar a voz esganiçada de Dobby:
- Dobby sabe que atrapalhou Harry Potter, meu senhor...
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