O Olho que me vê



O impacto das revelações de Serelepe atingira os Laurent em diversas graduações, mas os mais jovens não pareciam ter se espantado. Leo e Aline reagiam como se já soubessem de tudo, afinal, tinham flagrado sua tia Berenice fazendo magia praticamente na primeira visita a sua casa, e depois disso, apesar de terem mantido o segredo tanto de um lado quanto de outro da família, haviam se divertido tentando acertar o momento em que “a bomba explodiria”. Para os alunos de Hogwarts, não fizera diferença descobrir que os parentes brasileiros de sua tutora eram bruxos. Isso apenas facilitaria as relações daqui por diante, não precisariam mais ter cuidado com o que falar, pelo menos dentro de casa, e isso os aliviara de um peso.
Já os dois Laurent mais novos... Bem, Eduardo e Mateus não pareciam muito preocupados com isso. A mudança de status, de nascidos-trouxa para descendentes de uma antiga família bruxa, era para eles mero detalhe.
O que lhes interessava mais era saber como sua tia adotiva era duplamente portadora de sobrenomes tão famosos e inquietantes.

Saber que o homem que conheceram naquele Natal como um dos “casos perdidods da tia Sarah”, um paciente desmemoriado e esquisito, era na verdade o professor mais temido de Hogwarts, não os espantara – claro, eles não tinham engolido aquela história de “sósia” e seu presente de Natal não ajudara nisso, nem engoliram a desculpa de “tecnologia japonesa” pras peças se mexerem sozinhas. O choque foi, depois de lerem o Livro 7 – (sim, eles ainda tinham seus amigos trouxas e, claro, pegaram o livro com eles nas últimas férias) – saber que ele estava vivo e voltara a dar aulas em Hogwarts como antes. E saber que ele era irmão de sua tia, gêmeo ainda por cima, bem... isso já foi outra história.
Além de estar bem vivo – onde será que a J.K. perdeu o fio da história? - ele era seu parente! Indireto, é verdade, mas ainda assim, agora ele era o “Tio Snape”. Não, os dois não se arriscariam a mais do que isso. O “Tio Sev” de Aline e Leo era demais para os dois jovens, mesmo que pessoalmente e em cores, principalmente sem aquelas vestes negras esvoaçando depois dele como viam nos filmes, Severus Snape fosse muito diferente do que a autora inglesa retratara. Embora sarcástico às vezes e não estimulasse brincadeiras, principalmente na sala de aula, como Alan e os outros garantiram e eles puderam comprovar em uma aula com ele naquela semana, Severus Snape era um homem atencioso, tranqüilo e até sorridente no seio da família. Claro, ficava meio tenso ao lado de Sirius Black. E aí estava o outro X da questão: peraí, o padrinho de Harry Potter não estava morto? Então, o que ele estava fazendo sentado ali, dizendo ser o marido de sua tia?
Alguém tinha muito que explicar...

Mas o clima na sala ficara meio estranho, logo depois que Serelepe fizera algumas arruaças, catara parte do lanche na mesa e sumira num redemoinho assobiante, por isso, Eduardo comandou os jovens e crianças numa saída estratégica para seu próprio espaço: a sala de estudo de sua tia, o lugar favorito de ambos os garotos, afinal, era onde estava o computador, além de todos os livros de seus tios.
E foi lá que Alan satisfez a curiosidade dos dois, explicando resumidamente toda a história: como Sarah chegara em Londres para o casamentode André e descobrira ser a irmã desaparecidad de Snape, como passara a administrar o Lar de Elizabeth enquanto estudava magia com Remus Lupin – outro que estava bem vivo, sim, senhor – e de como se aliara à nata da Ordem da Fênix para libertar Sirius Black do véu da morte, realizando um juramento de sangue equivalente a um voto de casamento mágico, que os tornara ligados um ao outro para sempre, mesmo que ela desconhecesse esse fato. E também falara do acidente, de sua amnésia seletiva, e da vinda para o Brasil como uma forma de se recuperar totalmente.

Enquanto isso, na sala, os adultos tinham uma conversa um pouco mais difícil...

Berenice e Neuza observaram preocupadas sua irmã dar uma desculpa sobre ir arrumar a bagunça da cozinha, seguida por Susan que gentilmente se ofereceu pra ajudar sem aceitar qualquer negativa da cunhada. Só então, elas indagaram como ela poderia estar casada sem ter conhecimento disso.
- Mas ela sabe! Quer dizer, sabia. – André retrucou, confuso e entristecido.
- Então – Neuza questionou, olhando diretamente para Sirius – ela esqueceu você e... todo o resto, por causa de um feitiço de uma maluca e ninguém fez nada a respeito?
Sirius abriu a boca, mas não conseguiu falar. Snape tomou-lhe a palavra, explicando com sua calma habitual:
- Na verdade, os curandeiros do St Mungus fizeram todo o possível. A situação atual é um efeito residual que a vinda para cá poderia ajudar a dissipar. A vinda de Black não estava prevista, mas admito que eu assumi o risco de que sua presença ajudaria a desbloquear lentamente o que ainda estava preso em seu subconsciente, mas sua ação impensada de agora a pouco pode ter posto tudo a perder.
- Eu não diria isso. – Murilo exclamou – Vocês estão vendo o problema de dentro, envolvidos emocionalmente, mas não perceberam que a Sarah já está diferente de quando chegou? Está mais segura, e não fica inibida ao lado dele como ficava nos primeiros dias, ou vocês não notaram? Aliás, “Cachorrão”, parece que ontem rolou alguma coisa que eu ainda não sei... Aquela brincadeira sobre “anéis de compromisso” que eu ouvi de manhã...
- Nós nos acertamos ontem. – Sirius confessou, um sorriso orgulhoso que sumiu de seu rosto assim que fitou Snape – Quer dizer, nós conversamos e resolvemos ficar juntos. Ela já lembra algumas coisas sim, e admitiu que gosta de mim. Estamos...”começando de novo”. Eu confesso que baixei a guarda, pensando que estava tudo certo, e peço desculpas. Se o que eu disse a abalou tanto que ela vai preferir esquecer de novo, eu não sei o que vou fazer.
Berenice teve pena de seu cunhado recém-descoberto. Sentou-se ao seu lado e apertou-lhe a mão, num gesto de encorajamento.
- A Sarah vai superar isso. Dê um tempo a ela. – sussurrou.
- É o que tenho feito, desde que saí do véu, por suas mãos. Não tenho feito outra coisa senão esperar por ela.
- Uau! – Murilo assobiou – Cara, nunca vi um cara assim de quatro por uma mulher! E olha que você nem está na sua outra forma!
- O que você quer dizer? – Neuza perguntou, enquanto Sirius fitava o amigo, chocado com sua observação.
- Vocês não sabem? Ele é um animago, se transforma em um cão!
- É mesmo! Lembrei agora de quem você é! – Berenice bateu palmas. – Bem que achei o nome familiar, mas o impacto de saber que nosso John aqui era o famoso Professor Snape – ela sorriu para o homem ao outro lado, que fez um movimentode cabeça como se aceitasse o cumprimento com reservas – me distraiu da conversa, aquele dia na cozinha. Então foi isso! A Sarah sabe, né? Que você é um animago.
- Não. Quer dizer, não se lembra. – Sirius respondeu, sério.
- Mas vocês já viveram algum momento em que você estgava na forma animga... Era de você que ela falava ao se lembrar de coçar as orelhas de um grande cão, sentir o cheiro de seu pelo...
- Quando foi isso? – o tom ameaçador de Snape divertiu Berenice, que respondeu prontamente:
- Quando ela cheirou minha versão experimental de “Amortencia”.
- Não. Eu quero saber quando ela viu o Black em sua forma animaga.
- Nada demais, Snape. Foi quando visitamos os Thompsons. O garoto é um animago nato, e o pai não queria aceitar o fato. Ver um adulto se transformando à sua frente ajudou um pouco no processo. – Sirius tinha um sorriso divertido, ao lembrar-se do espanto do homem.
- Ah, os seus parentes novos? – Snape lembrou-se do ocorrido, que fora justamente na véspera doacidente da Sarah, pois a notícia se espalhara como labaredas de um fogo Weasley sobre o lago de Hogwarts.
- Sim. Foi no dia anterior ao... ataque. Por isso, ver que ela se lembrava de alguma coisa me deu esperança de que isso ia acabar logo.
- Bem. – Hamilton se manifestou pela primeira vez – Fico contente em saber que terei um companheiro pra correr por aí um dia desses, mas acho que devemos nos recolher, se quisermos mesmo chegar ainda cedo naquela praia amanhã.
Todos concordaram, e Neuza se encarregou de ir chamar os garotos pra cama. Em poucos minutos, a sala estava silenciosa. Apenas os dois ingleses permaneceram para trás.
- Você pensa mesmo que pus tudo a perder, não é? – Sirius perguntou num sussurro.
- Na verdade, não. Creio que agora é uma questão de dias... ou noites. Bem, boa noite, Black.
- Boa noite, Snape.
Cada um foi para seu respectivo quarto. Berenice e Hamilton tinham realmente uma casa apropriada pra uma família grande com muitos hóspedes, o sonho que cada um dos Laurent sempre acalentara.

***

Enquanto essa conversa ocorria, Sarah ajeitara a cozinha com a ajuda de Susan e depois se desculpara com a cunhada, dizendo-se muito cansada. Por isso, Susan retornara à sala, sentando-se silenciosamente ao lado do marido e sorrindo-lhe tranqüilizadora no meio da conversa, gesto anotado apenas por Snape, sempre atento em seu modo espião ainda presente.

Completamente indiferente, embora não ignorante, às duas conversas sobre ela mesma, Sarah fora para a varanda da frente, ao invés de se recolher em seu quarto. Agora que conhecia a história da família, muita coisa fazia sentido. A profecia assinalara sua presença entre os Laurent, provavelmente não fora obra do acaso ser achada num incêndio provocado por magia, justamente por um bombeiro que tinha sua própria magia latente. Já percebera também que sua magia ajudara veladamente em sua profissão, isso era sempre sugerido em tom de brincadeira, de que só poderia ser por magia que ela achasse tantas pessoas, localizasse a família de qualquer um, por mais difícil que parecesse, como se tivesse feito um feitiço de localização. E quando encontrara seu irmão gêmeo, o processo se acelerara, tanto pra ela, quanto para os Laurent. Enquanto seus irmãos e sobrinhos despertavam para a magia, ela fora para a Inglaterra, e lá também aprendera a canalizar os poderes recém-descobertos por uma varinha.
Poderes que agora sentia estarem mais fortes, mais vibrantes, à flor da pele, principalmente por causa daquele homem: Sirius Black.
Ainda não absorvera a informação que caíra na sala como uma bomba. Como podia ser casada com ele e não se lembrar? Sua testa ardia com o esforço de entender tudo, e pela primeira vez percebeu que era só quando tentava definir algo a respeito dele, que a dor chegava. Mas, pela primeira vez, percebia: não era mais latejante, como se um punhal fino lhe atravessasse o crânio. Estava mais suave, embora ainda persistente. Bom sinal? Talvez.
Mas não pensaria nisso agora, decidiu-se. Observando a calma da noite, a visão privilegiada do céu estrelado, visto que à volta não havia o impedimento das luzes fortes da cidade lá embaixo, ela lembrou-se do velho Martinho Laurent, apontando-lhe as estrelas e dizendo o nome da cada uma. E daquela que apontara como sendo sua própria estrela:

- Está vendo? É Aldebaran, alfa de Touro.
- O guardião da porta oriental do céu, eu sei, pai. – ela rira.
- Não. Não é só isso. Esta estrela sou eu. Pense nisso, quando chegar o dia em que estivermos longe um do outro. Será meu olho sobre você, onde quer que você vá, e você poderá olhar para ela e saber que pode contar com seu velho pai, mesmo que eu não...
- Pai, não fale bobagem! Você sempre estará ao meu lado! – ela se rebelara à idéia de perdê-lo.
- Claro que sim, mas não será sempre do mesmo jeito. Um dia todos partimos. Mas isso não é motivo de tristeza e sim de esperança. – ele sorriu ao ver sua expressão triste e disse – Um amigo meu costuma dizer que a morte é só o começo da nossa próxima aventura. Eu acredito nisso e sei também que, onde quer que seja isso, Aldebaran será meu olho sobre você, minha menina.


A lembrança trouxe lágrimas aos seus olhos, mas força ao seu coração. De algum lugar nebuloso veio a lembrança de seus pais, falando algo sobre ainda estarem ao seu lado...
O violão de Murilo ficara sobre uma cadeira da varanda, e vendo-o, Sarah arriscou-se a tocar um pouco, como forma de extravasar toda a tristeza, saudade e confusão que sentia.
Logo, sua voz suave ecoava mansamente, sob o acompanhamento do dedilhar tranqüilo, e chegava aos ouvidos de mais de uma pessoa dentro da casa que já estava quase totalmente silenciosa.

- Bem sozinho de manhã, fico pensando a boa forma de viver.
Não me assusto, não me acanho, tenho sempre um ganho se eu sei aprender
A constelação taurina tem um olho que me vê. Olho manso de “menino”, olho claro que me quer.
Eu não canto atrás de outra coisa que me valha menos que viver.
Não me assusto não me acanho, eu já fiz meu banho de erva boa e sã.
Lá no céu distante e belo brilha a estrela que só eu vi de manhã.
olho manso de “menino”, minha estrela Aldebaran. (1)


Sua voz morreu mansamente, enquanto uma lágrima solitária corria por sua face.
Ela deixou o violão cuidadosamente na cadeira, alisando-lhe as cordas num gesto agradecido pelo conforto que ele lhe oferecera, e entrou em casa, pronta pra dormir e se preparar para as surpresas do novo dia.

No céu, uma estrela brilhava intensamente, mas não era Aldebaran.
No quarto cuja janela semi-aberta dava para a varanda, um par de olhos claros fitava o céu, pensativo.
Sarah ainda não se dera conta, mas uma nova estrela, e seu correspondente na Terra, velavam também por ela e fariam isso para sempre: um novo Olho que a via e acompanhava seus passos, com amor e cuidado. Sirius, Alfa de Cão Maior.


***

(1) – Aldebaran – música do mineiro Celso Adolfo, que inspirou a criação do Murilo. Claro, as aspas mostram onde alterei a letra. No original: Olho manso de “menina” (espero que ao autor não se importe)

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Gente, não dei conta de terminar no prazo que esperava, mas acho que vocês vão me desculpar, né?
Não falta muito agora pra acabar, e prometo que pelo menos um capítulo por semana vai sair.
Como virei “leite integral"... não tenho mais msn no trampo, então, tô sentindo uma falta lascada da Belzinha, mas o que ficar muito crítico vou mandar pra ela primeiro (esse não mandei porque quis resolver logo, desculpe, amiga)
Bem, por isso, se tiver erros que meu word não captou e minha digitação histérica deixou passar, me perdoem. Quanto à coerência,a cho que consegui manter... hihi...

Esse foi o penúltimo capítuo, mas não se preocupem, tem pelo menos dois capítulos de bônus antes do epílogo...

Até breve.

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