Recomeçar é sempre difícil

Recomeçar é sempre difícil



Recomeçar é sempre difícil,

Quando o sol penetrou por uma fresta da cortina mal fechada, o homem que dormia esparramado na cama abriu os olhos. Contudo, permaneceu deitado, sentindo a maciez do colchão sob seu corpo, a temperatura agradável do quarto, a sensação de acordar como qualquer outra pessoa.
A sensação maravilhosa de estar vivo! Saltando da cama, correu à janela, abrindo-a de par em par e respirando profundamente o ar da manhã. Estava vivo. Vivo... e livre! Livre daquele pesadelo sem fim, que julgara durar para sempre.
Os sons dos outros moradores da casa acordando, bebês choramingando, elfos em suas tarefas, seu afilhado se levantando, tudo isso era como música aos seus ouvidos. Aceitara o convite de Harry, ficaria uns tempos na casa dos Potter, como antes...
Recordou mais uma vez os acontecimentos do dia anterior. Tudo que ouvira quase lhe tirara o sono. Ainda não conseguira assimilar tudo que haviam lhe contado. Pensava que levaria anos para se reintegrar à vida normal. Pelo menos, e isso era um alívio, não era mais considerado um criminoso fugitivo, e Azkaban estava fora de cogitação. Agora, era tocar a vida pra frente, embora ainda não tivesse se decidido sobre se apresentar de volta ao mundo bruxo ou não.
E tinha também aquela mulher. Estava em dívida com ela, por menos que gostasse disso. A irmã do Ranhoso! Saíra do véu porque ela fora buscá-lo. A garota dos seus sonhos! Lupin estava certo que ninguém mais, nem mesmo Harry, teria conseguido alcançá-lo, e ele concordava com isso. Ele sempre pensaria ser vítima de novas alucinações, fosse quem fosse que tentasse resgatá-lo. Além do portal que só ela conseguia operar, como Lupin explicou.
Lupin... o amigo também fora uma surpresa. Casado, e com sua prima Tonks! Como não percebera nada, no período em que haviam praticamente vivido juntos na casa do Largo Grimmauld?
Teria que pensar também em algo para se ocupar. Não poderia permanecer inativo, não era sua natureza, nem sua vontade. Já passara tempo demais sem fazer nada, sem viver nada!
Outra coisa era a herança... e a casa. Harry lhe dissera que teriam tempo para conversar a respeito das questões legais e financeiras, mas que ficasse tranqüilo, pois seus recursos não haviam sido tocados.
Mas ele não sabia se queria voltar pra lá, mesmo que tivessem lhe garantido que a casa fora limpa e reformada, e tanto o retrato de sua mãe quanto Monstro não estivessem mais lá (Harry lhe contara que o velho elfo morrera de tristeza, ao pensar que Bellatrix estava morta).

Uma leve batida na porta, e ele balançou a cabeça para espantar as lembranças más que começavam a rodeá-lo.
- Sim?
A porta se abriu e Harry enfiou a cabeça no vão.
- Vamos tomar café? – ele perguntou, sorrindo.
- Claro! Estou com uma fome tremenda! Como disse a Ranhosa, não como há séculos!
- Não a chame assim. – Harry o repreendeu, mas sorria, divertido – Serenna é legal, você vai ver. E fez milagres no Ran... no Snape. Ele é outro homem, acredite.
- Snape? Mudado? Só acredito vendo, mas, sinceramente, não quero saber.
- Então, venha logo, antes que o café esfrie. Gina pode ser pior que a mãe dela, certas horas.
- Ah, isso eu acredito. Vamos!
Rindo com verdadeira alegria, os dois desceram para a sala de jantar.
Logo, estavam sentados à mesa, comendo e fazendo planos para o dia. O primeiro dia de Sirius Black de volta à vida de bruxo!

*****

- Aluado, meu velho! Você vai mesmo ficar aí o dia todo? – A voz rouca que vinha da lareira tirou Lupin de sua concentração, e ele viu o rosto de seu velho amigo projetar-se das chamas.
- Sirius! – Ele sorriu – Eu ainda preciso trabalhar nesses papéis. Onde você está?
- Na sua casa, onde mais? Tem certeza de que é só trabalho que te prende aí, em plena manhã de sábado?
O tom maldoso do antigo maroto deixou Lupin intrigado por um segundo. Depois, entendeu que tinha o dedo de Tonks naquela história... ela estava se fazendo de ciumenta para fazer Sirius ir até lá.
- Porque você não vem aqui e confere? – Lupin o desafiou.
Sabia que o outro ainda tinha reservas sobre o “tal lar de crianças”. Afinal, era a casa do Ranhoso!
Sirius ficou alguns minutos em silêncio, fitando o amigo.
Por um momento, Lupin pensou que ele não ligaria. Mas riu ao perceber que Sirius continuava o mesmo, pois no minuto seguinte, ele estava entrando por inteiro nas chamas, e saindo no escritório de Lupin.
Os dois se abraçaram felizes. Depois, Sirius olhou em volta.
- Nada mal. – Comentou, depois de observar a sala de decoração simples, sentando-se tranqüilamente na cadeira em frente à mesa, enquanto Lupin voltava ao seu lugar e organizava os papéis que estivera estudando, guardando-os em uma pasta obviamente trouxa.
Sirius pareceu achar engraçado. Havia documentos bruxos e trouxas na mesa, assim como canetas comuns ao lado de penas e tinteiros. Além de um aparelho que ele reconheceu como sendo um telefone.
Lupin riu também e comentou:
- Tivemos um trabalho imenso para ajustar tecnologia trouxa a uma casa bruxa, mas está funcionando, ainda bem. O fato de ter primeiramente pertencido a trouxas facilitou o trabalho, a instalação elétrica, por exemplo só precisou ser refeita. Isso facilita o trabalho, quando temos que tratar diretamente com orfanatos e outras instituições trouxas. Você sabe, precisamos usar o mínimo possível de magia com eles, depois de tempos tão conturbados. Eles sofreram muito os reflexos da guerra, e já não são tão desatentos como antes. Além de Harry Potter ter se tornado um nome conhecido entre eles, pelo menos no campo da “ficção”, como você já sabe.
Assim dizendo, ele conduziu o amigo para fora de sua sala. Mostrou-lhe as salas de aula, a biblioteca, a sala de Snape – e Sirius ficou satisfeito em apenas vê-la de longe – e a Secretaria, onde além de telefone havia também um computador, impressora, scanner e tudo o que se poderia imaginar em um escritório trouxa, embora metade daquelas coisas fosse completamente desconhecida pra ele.
- No 3º andar temos os dormitórios das crianças internas, com uma sala comunal, como em Hogwarts, e quartos individuais. Além, é claro, das acomodações pessoais dos membros da família Snape.
Sirius o fitou com cenho franzido, entre curioso e contrariado.
- Ainda não me acostumei com essa historia do Ranhoso ter uma família... filho, irmã, sobrinhos... Você não está enganado quanto a isso?
Lupin soltou uma sonora gargalhada, antes de responder:
- Eu também achei difícil de acreditar, no começo. Mas o cara mudou mesmo... bem, pelo menos em alguns aspectos.
- Sei... – Sirius ainda não se convencera quanto à mudança de Snape..
Era, portando, um Sirius desconfiado e alerta que seguia Lupin agora pelo que era “a casa do Ranhoso”.

Eles desciam a escada de volta para o andar térreo, quando foram ultrapassados por três garotos que carregavam vassouras e outros utensílios de limpeza.
Ao olhar curioso de Sirius, Lupin explicou:
- Os elfos domésticos são elfos livres, têm folga aos fins de semana. Cada garoto é responsável por seu quarto, e uma turma de três pelas áreas comuns. Hoje, são estes que você viu, eles fazem rodízio.
- Sério?
- Sério. E não faça essa cara. Eles seguem as regras direitinho. Ainda não podem usar magia e todos têm menos de onze anos. Os mais velhos já estão em Hogwarts. Claro que alguns enrolam um pouquinho, mas nenhum deles quer levar bronca da “Tia Serenna”. Ela é terrível, quando precisa.
- Imagino... sendo quem é!
Lupin entendeu que Sirius estava na defensiva com Serenna. Na certa, a imaginava como uma versão feminina de Snape, dando ordens em voz ríspida e distribuindo punições a torto e a direito, como nos relatos de Harry na época da escola. Só a encontrara uma única vez, depois do dia de seu retorno. Haviam praticamente trombado um no outro, no átrio do ministério da Magia. Lupin sorriu, imaginando que ele se surpreenderia e muito... mas não ia estragar a própria diversão dizendo isso a ele.
- Está quase na hora do almoço, mas acho que ainda conseguimos uma boa xícara de café. Vamos até a cozinha?
Os dois bruxos seguiram o mesmo caminho dos garotos. Lupin, porém, foi primeiro ao pátio interno, ver o que eles andavam aprontando por lá.
Um grupo de seis meninos se divertia jogando bola no pátio onde o fraco sol de inverno penetrava preguiçosamente, de paredes enfeitiçadas para parecer um grande campo aberto, embora todos soubessem estar rodeado de prédios altos.
- Quer bater uma bolinha com os garotos? – Lupin indagou.
Sirius recusou com um aceno simples. Eles foram então para a cozinha, onde um quadro inusitado se descortinou aos seus olhos assombrados.

A mesa comprida de madeira, ladeada por dois bancos que acompanhavam toda a sua extensão, estava pela metade tomada de utensílios, panelas e legumes e outras coisas.
Sirius conseguiu identificar apenas o que parecia ser metade de uma bela abóbora já cortada em cubinhos, ao lado de cebola e algo que ele chamaria apenas de “cheiros verdes” sobre um canto da mesa.
Perto do fogão, uma mulher de costas, vestindo roupas trouxas – uma calça jeans e camiseta – e tendo os cabelos negros presos num coque alto por um objeto de madeira que parecia ser uma varinha, verificava as panelas, antes de se virar para as três crianças à mesa, um menino e duas meninas:
- Ok, você venceu. Vou fazer batatas fritas para o senhor Leonardo aqui. Isso... me lembra uma música... Bem, não a da batata frita... a outra, claro.
- Ai, não, de novo!... – Aline revirou os olhos para cima, rindo com gosto e sendo acompanhada pelos outros dois, enquanto Serenna, usando uma colher de pau como microfone começou a cantar algo, enquanto as crianças faziam o que parecia um coro desafinado.
- Use um feitiço tradutor, ou não vai entender nada – Lupin disse.
- O que? – Ele olhou-o sem entender.
- Serenna foi criada no Brasil, como a Ana Weasley. Está cantando em “português”. Aliás, muita gente ainda a chama de Sarah ou Srta Laurent, seu nome “trouxa”.
Com um gesto de compreensão, Sirius sacou sua varinha e murmurou o feitiço contra os próprios ouvidos, assim, pode entender o que cantavam:

- “Longe de casa, há mais de uma semana. Milhas e milhas distante do meu amor... Será que ela está me esperando –do... eu fico aqui sonhando, voando alto... perto do céu...”

Ela dançava, enquanto cantava, completamente alheia à entrada dos dois bruxos, e as crianças se divertiam balançando o corpo pra lá e pra cá, batendo palmas e rindo.
Sirius observou:
-. Os garotos da casa estão sob feitiço de tradução também?
- Ah, não! – Lupin sorriu – Eles aprenderam o português, enquanto ela ensinava inglês para os filhos, esses dois à direita – Lupin apontou Leo e Aline - Foi por iniciativa deles, acredita? Não queriam que os dois se sentissem distantes por causa da língua. Todos têm um espírito muito... cooperativo, digamos.
- Coisa de Lufa-Lufa – Sirius comentou.
- Pode ser... Elizabeth era da Lufa-Lufa, acho que a casa tem “seu espírito”.
Sirius riu do comentário. Lembrava-se bem de Elizabeth e ainda não entendera porque a casa tinha seu nome, mas resolveu deixar esse assunto pra depois. Afinal, seria impossível conversar algo sério ouvindo tal “concerto”...

Indiferente à presença dos dois, Serenna continuava cantando:
- “O vento traz uma canção, que me faz lembrar você, eu fico louco de emoção e já não sei o que vou fazer...ê... estou a dois passos do paraíso, não sei se vou voltar, estou a dois passos do paraíso, talvez eu fique, eu fique por lá... estou a dois passos do paraíso, não sei porque eu fui dizer... ê: bye bye...”
- Bye bye, baby bye bye – as meninas cantaram em coro, rindo, mas nesse exato momento, Serenna percebeu os dois homens. Lupin ria, divertido, Sirius tentava se decidir se achava engraçado ou ridículo, mas ela não estava preparada para ter maior platéia que seus filhos e as outras crianças da casa...

Vermelha como os tomates picados sobre a mesa, ela baixou a colher de pau e murmurou alguma coisa, que Sirius podia jurar que fora um belo xingamento em português. Depois, rapidamente enxugou as mãos no avental florido que provavelmente pertenceria a Molly, antes de se aproximar e cumprimentá-los, sem graça.
- Prof. Lupin, Sr. Black, desculpem o mau jeito, eu...
- Não se preocupe... Serenna – Lupin sorriu. – Sua alegria é sempre boa de se ver... e ouvir. Seria abusar de você pedir-lhe um cafezinho?
- Claro que não! Sentem-se daquele lado, tem menos coisas esparramadas.
Ela indicou o canto oposto às verduras e legumes picados.
Depois que os dois homens se acomodaram, as crianças rapidamente sumiram da cozinha.
- Espertinhos... já acharam que podiam ir brincar... Mas terão tarefas depois do almoço, não perdem por esperar.
- Você não está pegando muito pesado com eles? – Lupin perguntou, rindo de sua cara de brava que mudou para condescendente mais rápido do que seria de se esperar.
- Claro que não! Só vão poder usar magia pra fazer as coisas por aqui depois dos 17, não é? Têm que saber fazer as coisas como todo mundo... normal. E lavar pratos e talheres nunca quebrou a mão de ninguém. Até uma doninha pode fazer isso! – Ela sorriu, lembrando-se de um certo hóspede, enquanto depositava à frente deles duas xícaras fumegantes, sem que os dois entendessem o comentário final.
- Não sei se está do seu agrado, Professor, sabe que ainda faço café ao gosto do meu pai... – um olhar tristonho passou por seu rosto. - Vocês podem ficar à vontade, mas preciso continuar com o almoço. Já são 11 horas. Agora mesmo, teremos uma invasão de crianças famintas, ainda mais que foram todas jogar bola.
Ela voltou para o lado do fogão, onde acendeu o fogo para colocar outra panela. Lupin esboçou sua curiosidade antes que Sirius o fizesse.
- Como se vira com o fogão, quando Molly não está?
- Ah, é elétrico, com acendimento automático! André conseguiu recuperar a fiação da cozinha também. Assim, quando estou aqui, é tudo perfeitamente... trouxa – ela fez uma careta, também não gostava do termo infeliz.
- Você não pretende fazer toda essa abóbora, não é? – Lupin perguntou mais uma vez, com ar divertido. – Os garotos comem tanto assim?
- Hein? – ela olhou dele para a metade de abóbora a um canto da mesa – Ah, não! – sorriu. – Vou fazer um doce depois. Mas não esse doce de abóbora comum que vocês conhecem. Vou fazer uma receita diferente, que aprendi com minha mãe. Aposto que você nunca provou nada igual! – Serenna deu uma piscadinha e voltou a se entreter com as panelas.

Lupin começou então a conversar com Sirius, falar das atividades que desenvolviam, da escola fundamental para filhos de bruxos que não precisavam mais ser educados em casa ou se arriscar em escolas trouxas, enquanto tomava o tal cafezinho, forte e meio amargo.
Mas o velho maroto só prestava meia atenção às suas palavras, atento aos movimentos da mulher, que parecia agora ignorá-los por completo.
Na verdade, ela sentia seu olhar acompanhando cada movimento, mas não se intimidava com tão pouco... precisaria de muito mais do que um velho cão sem dono para desconcertá-la. Rindo do próprio pensamento, ela continuou seu trabalho, não sem antes ir até o aparador e ligar um aparelho de som trouxa, ajustando o volume de forma que não incomodasse os dois homens. Para surpresa de Sirius, os cantores não eram totalmente desconhecidos seus: os Bee Gees.
Ele olhou para Lupin e ambos ficaram um instante em silêncio, o que chamou a atenção de Serenna, que os olhou interrogativamente.
- Era o conjunto favorito da Lily. A mãe do Harry. - Lupin explicou, com a voz levemente triste e saudosa. - Lembra, Sirius daquele verão? Depois de nossa formatura?
- Se lembro! Ela nos fez ir ao cinema trouxa com ela, para ver um filme que tinha as músicas deles... como era mesmo o nome?
- “Os Embalos de Sábado à Noite”, aposto! – Serenna falou.
- Como você sabe? – Sirius a fitou, curioso.
- Ah, eu sei as músicas de cor, desde criança. Felipe, meu irmão mais velho era fã deles. Ele e seus amigos fizeram cover do conjunto um bom tempo, na adolescência... – ela sorriu ao contar – e claro que eu adorava vê-los cantar!...Era apaixonada pelo Barry Gibb... Acho que foi por isso que me apaixonei por... – ela parou de repente – Desculpem.
Levemente desconcertada por ter falado demais, ela voltou sua atenção para o fogão.

Por alguns minutos, só o que se ouviu na cozinha foi a voz melodiosa do trio cantando “More than woman”.

Quebrando o clima constrangedor, Lupin comentou sorridente, que se arriscaria a uma bronca de Tonks, mas ficaria para o almoço, e Serenna riu, agradecendo o elogio e dizendo que ficaria feliz, se não corresse o risco de ser estuporada pela Auror.
Enquanto isso, Sirius observou-a colocar azeite na panela, depois tempero, a cebola, e por fim, a abóbora picada. Viu-a provar o gosto na ponta da colher de pau, depois colocar água e tampar. Observou seus movimentos com outras panelas, o cheiro agradável dos temperos chegando até a mesa.
Sirius, por um instante, desejou que ela o fitasse com a mesma familiaridade e sorrisse pra ele da mesma forma que sorrira há pouco para Lupin, mesmo quando o chamava formalmente de “Professor” mas a mulher continuava mantendo uma postura de reserva com relação a ele. Chegou mesmo a indagar pra Lupin, se eles não prefeririam conversar mais à vontade em sua sala, mas o velho lobisomem ignorou de propósito seu ar de prevenção contra Black, intimamente se divertindo com o duelo implícito do casal... e respondeu:
- Ah, mas aqui está bem mais agradável. Além do cheiro da comida estar muito convidativo, tem um ar aconchegante. Sem dúvida, é o melhor lugar da casa.
Serenna deixou escapar um suspiro, ao comentar:
- Era o que diziam... da cozinha “lá de casa”... Mamãe estava sempre fazendo alguma coisa... Mas não chego nem aos pés dela...
A tristeza súbita de Serenna encabulou os dois homens que, num acordo tácito, decidiram não importuná-la, embora permanecessem ali. Por nada deste mundo, Sirius concordaria em sair da posição privilegiada em que estava agora.
Voltando a observá-la discretamente, incentivou Lupin a continuar falando sobre os processos de adoção que já estavam em andamento, sem se dar conta de que o outro percebera seu interesse nem tão velado assim. Na verdade, era uma bandeira atrás da outra, mas Almofadinhas nunca admitiria nada, nem sob uma “cruciatus”.
Serenna era para Sirius algo completamente novo e intrigante. Suas roupas de trouxa e sua desenvoltura pela cozinha sem usar magia em momento algum eram coisas completamente novas para ele, pois nem mesmo Lílian dispensava o uso da varinha com tanta facilidade.
Como ela podia, sem usar magia alguma, fazer uma comida que cheirava tão bem? Não identificava todos os odores, isso era certo. Mas, com um pouco de atenção, conseguira distinguir o que era aroma vindo do fogão ou da mesa, e o que vinha da mulher que, neste exato momento, estendera o corpo a poucos centímetros dele para os “cheiros verdes” sobre a mesa, completamente distraída do efeito que seu gesto causara. Seu olfato aguçado identificara aniz e outra substância, provavelmente alguma erva exótica...
- Canela. – Lupin disse, de repente, num sussurro ao seu ouvido.
- O que? – Sirius fez-se de desentendido.
- Aniz e canela, são as essências que ela está usando. – o lobisomem piscou, travesso.
- Não sei do que está falando – Sirius tentou desconversar, também murmurando em resposta.
- Eu também sou um homem de faro canino, esqueceu? Mas o meu, pelo visto, está mais... “apurado”! - Lupin piscou, mas mudou de assunto, pois percebeu que Serenna se retesara por um segundo, incomodada por vê-los aos cochichos.
Mas isso custou a ela um alto preço. Um segundo de desvio de sua atenção resultou em uma queimadura, e ela gritou de susto, enquanto corria para colocar a mão sob um jato de água fria na pia.
- O que houve? – Os dois perguntaram em uníssono, já se erguendo para acudi-la.
- Nada. Desculpem. Só me distraí e pus o dedo na frigideira quente.
- Que alívio... Por um minuto, pensei que era a minha prima Tonks... Ela ainda é tão desajeitada como antes, Remo? Lembro que Molly nem a deixava chegar perto das panelas, no Largo Grimmauld...
- Ah, já melhorou um pouquinho... ou eu e Hector já teríamos morrido de fome – o outro riu, e eles se descontraíram novamente.

Serenna pareceu “esquecer-se” da presença deles daí por diante e, em breves minutos, uma típica comida caseira como a que sua mãe costumava fazer em “dias comuns” já estava praticamente pronta: feijão e arroz, o ensopado de abóbora, as saladas postas à mesa, a batata frita que prometera ao garoto, os bifes de frango grelhados. Era sábado, estava na cozinha, então, queria tentar “estar em casa de novo”...
Ela pediu licença aos dois homens para ajeitar rapidamente a mesa, esticando um forro limpo, enquanto as meninas voltavam para a cozinha e já tomavam para si a tarefa de distribuir os pratos limpos.
Logo, dez crianças já estavam em seus lugares, mãos lavadas e rostinhos sorridentes, conversando sobre suas brincadeiras no pátio ou planejando novas estripulias para a tarde.
Aline, franzindo a testa, apontou pros dois adultos:
- Vocês vão almoçar conosco?
- Se sua mãe permitir... – Lupin sorriu.
- Bem... ela deixa sim. Mas vocês não foram lavar as mãos. – A menina concluiu, com um sorriso travesso. – E não vale limpar com a varinha, não é, mamãe?
- Ah, isso mesmo! – Serenna sorriu para a filha e se voltou para os dois adultos, fingindo zanga. – Vão já, lavar essas mãos, com água e sabão, ou nada de almoço!

*****

Ao final do dia, Sirius até que se deu por satisfeito. Fora uma experiência completamente nova provar da “comida caseira” de Serenna. Ou melhor, Srta Snape. Nem a intimidade da cozinha a fizera relaxar do tratamento formal. Ainda era “Sr. Black”...
Ela se juntara a eles na Secretaria, depois de orquestrar a arrumação da cozinha com algumas das crianças. Trocara a camiseta que usava antes por uma bata indiana branca, soltara os cabelos e, claro, tirara o avental. E Sirius conseguira sentir novamente seu perfume, e com um rápido olhar pra Lupin, confirmar sua essência.
Serenna não dera sinal de perceber a muda comunicação entre eles, integrando-se à conversa sobre as ações planejadas para a semana seguinte, quando iriam visitar um orfanato trouxa no interior, onde um recém-nascido havia sido entregue há pouco tempo, um pequeno futuro bruxo “mestiço”. Pelo visto, o pai – desconhecido – era bruxo. A mãe, uma trouxa, entregara o filho no orfanato e desaparecera.
Este fora o motivo que levara Lupin ao Lar Elizabeth em pleno sábado. A conferência de toda a papelada trouxa necessária para apresentar no tal orfanato e possibilitar a transferência imediata do bebê.
- Felizmente, neste caso, já temos um casal de bruxos querendo adotá-lo. Sempre há os que preferem crianças ainda nessa idade.
- Estou acostumada com isso. Nos orfanatos em minha terra, há centenas de crianças crescendo e se tornando adultas, sem nunca conhecer um lar de verdade... porque os casais sempre querem bebês, e brancos, de preferência... Se você é uma criança de pele um pouco mais morena, cabelo “sarará” e mais de dois anos... pode esquecer. E ainda há a dificuldade de colocar em uma mesma família irmãos órfãos de idades diferentes. Por isso, adotei Leo e Aline.
- Adotou? – Sirius se surpreendera mais uma vez – Pensei que... que fossem seus filhos de verdade.
- Não, Sr. Black. Não tenho filhos... biológicos. Eu consegui adotá-los, mesmo sendo uma mulher solteira, depois de muitos malabarismos legais e principalmente por serem multiraciais e estarem já fora da idade de uma provável adoção ideal. Seria muito difícil não separar os dois irmãos.
- Mas... porque você os adotou, afinal de contas?
- Na verdade... – Serenna o fitara fundo nos olhos, como se tentasse imaginar porque diabos aquilo poderia ser da conta dele. Mas, depois de um longo suspiro que teve o poder de lhe serenar o ímpeto de mandá-lo, literalmente, “catar coquinhos”... respondeu com firmeza e emoção. – Porque me apaixonei por eles no momento em que os conheci, postos de lado como trastes que atrapalhavam o caminho e nem serviam pra se conseguir uma pensão polpuda... acompanhei de perto a história familiar deles, e odiava ter que ver o que a louca da mãe deles estava fazendo da própria vida e no que provavelmente transformaria a vida dos filhos. E isso, eu não ia admitir. – Outro longo suspiro - E a melhor forma de evitar, foi adotando os dois.
Serenna irradiava neste momento uma força inacreditável, uma aura de poder e determinação que causou admiração a Sirius, e ele entendeu o que o amigo queria dizer sobre ela ser terrível quando queria.

Mas Serenna não lhe deu tempo de falar mais alguma coisa, já combinava com Lupin a viagem para a segunda-feira, cedo.
- Há um contratempo, infelizmente – Lupin observou, sério. – A diretora da casa só aceita entregar a criança diretamente para os novos pais adotivos, diz que é uma tradição de sua instituição, blá, blá, blá...
- Não é aconselhável apresentarmos os Baddock assim... pra começar, não vão saber se portar como trouxas e vão se atrapalhar - Serenna estava preocupada. – Não podemos nos apresentar como marido e mulher, como fizemos da outra vez?
- Não. Ela já me conhece como “funcionário do serviço Social”... Foi de lá que trouxemos a Lucy e o Peter, pouco antes de você vir pra cá.
Enquanto os dois permaneciam pensativos, Sirius sorriu. Era a sua chance de se aproximar um pouco mais daquela mulher intrigante, que o tirara daquele inferno com palavras de carinho e conforto que jamais julgara ouvir de alguém, e agora o tratava como a um completo estranho.
- Eu serei seu “marido”.
- O que? – Serenna e Lupin indagaram a um só tempo.
- O que vocês ouviram. Vocês precisam de um casal para buscar a criança, não é? Eu vou, e me passo por seu marido. Vocês estão acostumados com a situação, eu sigo as instruções que me derem e está resolvido.
Lupin fitou Serenna, com ar de dúvida. Sabia o que Sirius estava tentando fazer, e ela também, com certeza. Viu a bruxa levantar as sobrancelhas, num gesto muito típico de seu irmão gêmeo, e depois concordar com um sorriso estranho:
- Está bem. Combinado. Mas precisaremos ser muito convincentes, Sr. Black. O senhor terá que se portar como um homem normal, e se vestir como tal.
- E você terá que dispensar essa formalidade toda, acredito. Ou vamos fazer o estilo “casal sério de uma tradicional família da falida nobreza inglesa”?
- Até que não seria má idéia, Sr. “meu marido”... – ela piscou, divertida.
- Bingo! – Sirius murmurou para si mesmo. Talvez tivesse finalmente quebrado o gelo.

*****

Serenna olhava para a tela do computador, completamente concentrada no documento que digitava, e não viu o homem que entrou em silêncio e se postou à frente de sua mesa, aguardando.
Ele, por seu turno, pareceu gostar de observá-la sem ser notado, por alguns minutos. Mas, finalmente, resolveu se manifestar:
- Bom dia, Sra. Black... pelo menos por hoje...
- O que? – ela indagou, distraída, erguendo os olhos um segundo, voltando para a tela e, de repente, voltando a observar o homem à sua frente, só então se dando conta de quem era o dono daquela voz rouca.
Trajando um elegante terno risca de giz preto, camisa cor de chumbo e gravata preta, os cabelos semi-longos presos num rabo de cavalo, a barba bem aparada e um chapéu que lhe lembrou os velhos filmes de gangster que seu pai gostava e trazendo o casaco dobrado sobre o braço, Sirius Black lhe pareceu completamente irreconhecível... e irresistivelmente charmoso também. Os óculos escuros haviam escorregado para a ponta do nariz, e ele a fitava por sobre as lentes azuis, fazendo-a se lembrar do personagem de um filme antigo.
Serenna respirou fundo, disfarçando sua ligeira perturbação com movimentos rápidos para fechar as “janelas” e desligar o computador, enquanto ajeitava alguns documentos numa pasta e se erguia, pegando também sua bolsa.
- Bom dia, Sr. Black – ela respondeu por fim, sem encará-lo, e por isso não viu seu sorriso.
Sirius percebeu que não seria tão fácil quanto imaginara... Bem que Remo o prevenira! Mas não ia desistir tão facilmente. E ela ficava incomodada com sua presença, acabara de confirmar. Sinal de que arranhara sua armadura fria.
- Pensei que fôssemos dispensar as formalidades excessivas... – ele disse, enquanto a admirava.
Serenna usava uma saia longa e blazer de veludo verde garrafa sobre uma blusa de gola role, e calçava botas de um tom mais escuro. Sirius teve a impressão de que ela vestira cores sonserinas de propósito, para lembrá-lo de que era uma Snape. Mas esquecera-se do sonho? De como ficava adorável em seu vestido verde? Os cabelos estavam novamente presos num coque igual ao da Prof. McGonagall, mas desta vez, a varinha tinha sido guardada, provavelmente no bolso interno do casaco que ela pegou no aparador, enquanto Lupin entrava na sala para chamar por eles.
- Vamos? – Ele perguntou, olhando de um para o outro, curioso.
Com apenas um leve sorriso, Serenna o acompanhou até a porta, seguida por Sirius, que trazia seu velho sorriso no canto dos lábios. Lupin o fitou significativamente, mas ele apenas deu de ombros.

- Vamos aparatar na rua de trás da instituição. Ainda bem que não está chovendo, assim poderemos usar a desculpa de que o carro está lá, quando sairmos com o garoto.
- Er... Remus... temos um problema... – Serenna murmurou, meio insegura.
Lupin a fitou por um segundo apenas, então se lembrou. Ela ainda não aparatava sozinha. Como na maioria das vezes que saía estava em companhia das crianças, sempre usava a Rede Flu ou transporte trouxa, se não apelava para o Noitibus. Com isso, acabara protelando o treino de aparatação, sempre tendo outras prioridades...
- Ok. Fazemos como antes, você vai comigo... – ele estendeu a mão para ela, mas Sirius interferiu, decidido. Entendera o problema e não perderia uma chance dessas.
- Nada disso, Aluado. Eu faço as honras. Afinal, sou seu marido por um dia, esqueceu? – Ele fitou Serenna com um sorriso ainda mais sedutor, e ela tentou não encarar seus olhos claros e risonhos.
Intimamente, se repreendia por não ter ficado calada. Lupin a teria tomado pelo braço como já fizera antes, e aparataria com ela, depois de dizer a Sirius aonde iam. Mas ela ficara ansiosa... a presença dele a desconcertava... Desde a noite em que o tirara daquele véu, deixara de ter os pesadelos de antes, mas isso não significava que ele deixara de povoar seus sonhos...
- Calma, mulher! Nem parece que tem quarenta e tantos anos... está bem, não tem mesmo, só “viveu” trinta e poucos... mas, que diabos! Você não é uma adolescente “sem noção”!
Foi despertada de seu diálogo íntimo pela voz rouca ao seu lado.
- Pronta? – Ele segurava seu braço com firmeza, já prestes a aparatar. – Lupin já foi.
Ela olhou em volta, repentinamente consciente de que estava só com Sirius Black. Fitou-o nos olhos, finalmente, resoluta e séria, e respondeu.
- Estou pronta.
Dando uma de suas risadas parecidas com um latido, ele a enlaçou e: click. Aparataram.

Serenna ainda não se habituara com aquela sensação horrível, um dos motivos que a fizera adiar seu teste de aparatação. Mas agora, com certeza, tinha um bom motivo para se inscrever no dia seguinte: aparatar acompanhada podia ser... desconcertante.
Uma coisa era ser levada por Snape ou mesmo por Lupin. Outra bem diferente era viajar com Sirius Black! Já haviam chegado ao destino a alguns segundos, mas ele não a soltara. E onde suas mãos tocavam, ela sentia um forte formigamento, resultado da energia mágica remanescente da aparatação... ou algum outro motivo mais inquietante ainda, que ela se recusou a considerar. Indiferente a isso, Sirius continuava abraçado fortemente a ela, fitando-a intensamente, como se tivesse intenção de...
- Vamos, vocês dois. Não precisam fingir tão bem! – Lupin exclamou, jocoso – Ainda não estamos diante da Diretora do Orfanato!
Os dois se separaram como se tivessem levado um choque elétrico com as palavras de Lupin, e Sirius sorriu para o amigo, fingindo-se encabulado. Mas Lupin o conhecia há muito tempo para saber que não estava constrangido por nada, pelo contrário. Preferiu, entretanto, fazer de conta que nada acontecera. Esperou que Serenna chegasse até ele, para só então caminharem até o orfanato.

*****

Serenna suspirou, aliviada. O dia fora difícil e longo, mas terminara. Missão cumprida, uma criança entregue aos pais adotivos sem problemas. Uma nova família começava uma jornada que prometia ser feliz. Queria compartilhar este sentimento com alguém, mas Lupin logo se despedia, sua esposa o esperava.
E ela bem que estava merecendo uma...
- Cerveja amanteigada!
- Hein? – ela olhou para o homem ao seu lado. Tinha quase se esquecido dele, mas como alguém pode esquecer-se de Sirius Black?
- É do que você está precisando agora, pela sua cara. – ele sorria, zombeteiro – Podemos ir ao Caldeirão...
- Não, obrigada. Prefiro ir direto para casa... e se não me apressar vou pegar o metrô lotado por causa do rush. Adeus e... obrigada por sua ajuda, hoje.
Ela acenou para ele, afastando-se em seguida, não lhe dando tempo de dizer nada. Estavam em uma rua movimentada, pela qual ela fez questão de seguir até o metrô.
Sirius pensou em segui-la, mas talvez pela primeira vez em sua vida, pensou que já conseguira muito por um dia e decidiu não forçar a sorte. Observou-a por algum tempo, antes de caminhar no sentido oposto até encontrar um lugar seguro para aparatar.
Infelizmente, isso não lhe permitir ver que a mulher olhara por sobre os ombros e parecera levemente decepcionada por não ter sido seguida. Decepção que durou apenas um segundo, porque ela balançou a cabeça energicamente, ralhando consigo mesma em pensamento, antes de entrar na estação.

* * *

Gente, por enquanto é isso. como já falei antes, responder a cada comentário em particular é meio complicado pra mim... por isso agradeço a todos.

pra ficarem com a "pulga atrás da orelha"... o próximo capítulo chama-se "Dois Amassos e um Gato"... mas está passando por uma breve reformulação. aguardem, aposto que vão se divertir muito.

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