A Superfície Imóvel do Lago
Capítulo 2
A superfície imóvel do lago
O dia mal havia amanhecido quando Sigurd acordou. Levantou-se, sentindo-se bem como há muito tempo não experimentava, depois de uma noite de sono reconfortante. Seu corpo mostrava-se revigorado, cheio de energia e fome, sede e alegria. “Este lugar é mesmo mágico” pensou.
Saiu sem fazer barulho e começou a descer a colina em direção ao lago. Àquela hora da manhã o sol ainda não estava alto o suficiente no céu para que pudesse iluminar as águas do lago. Era uma lâmina escura estranhamente imóvel e calada. Sigurd podia ouvir sons vindos desde a distancia, de um lugar situado mais profundamente na direção do centro do manancial, e parecia-lhe que alguém cantava, uma canção doce e triste, como um barco à deriva num sonho mudo. Sigurd aguçou o ouvido mas percebeu que isso, em vez de melhorar, perturbava a audição, e o som misturava-se com os grasnidos de pássaros a sobrevoar o lago e as árvores farfalhando ao vento. “De onde virá essa melodia?” perguntava-se Sigurd, “que ser será o artífice de tão bela voz?”
Subitamente um movimento na superfície do lago fez com que Sigurd se retesasse e, instintivamente, deu um passo para trás. Mas a visão assim como se fez, foi-se, deixando as águas tão escuras e intocadas como segundos antes estavam. Embora não pudesse jurar, ficou no homem a nítida impressão de que uma espada havia se erguido através da face do lago, descrito um arco em direção ao norte e mergulhado novamente na escuridão. Nada denotava esse acontecido, agora. Não havia a menor marca no pano cristalino, nenhum respingo, sequer vestígio de ter uma dama aquática avançado desde sob seus domínios a aventurar-se, armada de prateado gládio, no ar frio da manhã, que despontava.
Sigurd voltou-se e pegou o caminho de volta ao alto da colina.
Assim que se aproximou o bastante para ouvir o movimento dos peregrinos em seus afazeres da manhã, notou que que estava tudo muito em calma. Nenhum barulho vinha daquela parte da colina de Glastonbury. Foi preciso que Sigurd estivesse a apenas cerca de vinte metros da árvore onde descansara no dia anterior para que percebesse a mais incomum das cenas. Todos os peregrinos, que acompanharam em parte ou todo o caminho desde a galiléia, estavam ajoelhados próximos àquela árvore, onde o velho Arimatéia estava em pé, cabeça baixa, aparentemente orando.
Sigurd ficou receoso de perturbar o velho amigo, a quem era grato pela oportunidade de buscar seu destino bem longe de onde sua dor era intolerável. Fora um bom companheiro de viagem e sábio, dera-lhe candidamente valorosos conselhos. Assim que Sigurd, silenciosamente, chegou onde estavam todos, caiu de joelhos, perplexo, e entendeu o porque de tal comoção. O cajado, que no dia anterior o velho havia cravado no chão, bordão feito de galho de oliveira, meio curvo e seco, havia florescido. Ramos verdes e esguios lançavam-se no ar, evoluindo retorcidos em espirais a despontar folhas novas, brotos e miúdas flores. Sigurd jamais tomara conhecimento de tal evento e, mesmo tendo ele conhecido, em desgraça, o próprio Filho do Homem, não o suspeitava ser possível.
Seu coração encheu-se de dolorida ternura, e alegria misturada à tristeza, ao ver que ainda lhe era alcançado um milagre ainda, a indicar-lhe que o rumo que escolhera fora enfim o acertado. Estava em terras da Bretanha, acompanhando o amigo do Messias, trazendo as relíquias sagradas daquele que sucumbira, finalmente, ao ter seu coração atravessado por uma lança, quando deixara definitivamente o mundo dos homens, entregues a si mesmos e ao seu próprio desatino e ignorância, sua ferocidade e concupiscência.
Sigurd caiu ao chão, encostando a face na terra úmida da manhã, dando graças pela dádiva de cumprir sua penitência em tão boa companhia, em terra mágica e casta. Cruel que fora, recebera compaixão. Ignorante, sua mente fora esclarecida, cético tivera inexplicavelmente sobre si a luz divina. Nenhum homem havia ou haveria de cometer ato tão hediondo como ele fora capaz de realizar.
Abandonara seu nome de nascimento, mas nunca esconderia de si quem era. Mesmo que mostrasse ao mundo um outro que não ele, guardaria sua verdadeira e indigna face, não esqueceria seu nome, como a lembrança permanente do mal que provocara. Eternamente.
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