capítulo três
capítulo três
04 de janeiro de 1965
Acordei, os olhos negros vagando até acostumarem-se com a pouca claridade que vinha sorrateira do corredor pela abertura da porta, sem me lembrar com o que ou se sonhara. Precisava ir ao banheiro.
Afastei as cobertas e pulei para fora da cama, seguindo a passos leves a luz que embrenhava-se fracamente na escuridão do quarto, ainda sonolento. Ao passar pela porta, porém, constatei que não só o corredor, mas o andar debaixo também tinha as luzes acesas. Desci as escadas, degrau por degrau, o som dos meus passos sendo abafado pelo carpete. Espiei para dentro do aposento, criança curiosa que era, e a vi, a doce mamãe, rabiscando num pedaço amarelado de pergaminho, nunca saberei o que, e em seguida amarrando-o à perna da coruja negra como a noite, Ebony.
Ebony abriu as asas escuras e voou para longe através da janela. Mamãe trancou-a assim que a ave saiu e virou-se em minha direção. Seus olhos escuros foram de encontro aos meus. Ela trajava uma camisola fina e leve, amarela, que combinava com os seus cabelos castanhos. Eu poderia descrever tudo, absolutamente tudo o que ela usava, todos os detalhes, os botões e as rendas, entretanto, não me recordo de seu rosto. Só sei que o achava lindo, como poucos vi. Seus joelhos fraquejaram e bateram contra o chão; esticou os braços em minha direção, os olhos cheios d’água – novamente – mas desta vez ela sorria. E, correndo até ela, eu sorri. E, enquanto a abraçava, eu chorei. Estava perdoado, seja lá o que eu tivesse feito. E ficamos por muito tempo assim. Eu soube, mais tarde, que não era aquela casa o meu lar, ou aqueles jardins, ou qualquer outro lugar. O meu lar eram aqueles braços, que me confortavam e me abrigavam... Mas, às vezes, você acaba se mudando. Querendo ou não.
Depois de algum tempo, a sua voz levemente embargada, mas ainda suave e sussurrante chegou até os meus ouvidos:
“Acho melhor irmos para cama, não acha?”
Resmunguei.
“Não estou com sono, mamãe...” Verdade seja dita: eu estava. Só não queria que ela me largasse. Mas mamãe sempre foi muito esperta.
“Vamos, Sev.” O tom de sua voz soou quase divertido, embora pontual. Afastou-se de mim e levantou, pegando-me pela mão. “De manhã iremos ao parque e você terá de estar bem disposto!”
“Ao parque?”, exaltei-me. Talvez tenha dado uns pulinhos... Mas foram poucos. Fazia tempo que eu não ia ao parque, ou saía de maneira geral. Chegamos ao meu quarto e pulei para cima da cama, extasiado. Ela cobriu-me e me olhou por alguns instantes. Eu sorri, nem sei porquê, mas o fiz. Ela sorriu de volta e afagou-me os cabelos.
“Vai ficar tudo bem, Sev. Agora, tente dormir.” Observei-a levantar-se e ir até a porta. Deu uma última olhada em mim, sorrindo – mas era um sorriso diferente, triste – e afastou-se. Eu apenas não me importei com aquilo no momento. Era muito novo e estava muito tarde (ou cedo, como preferir). Logo, peguei no sono. E dormi com os demônios, que ainda não viviam em mim, mas rondavam-me, esperando a hora certa para me tomar.
xoxoxoxoxoxox
Acordei novamente dali a uns instantes, sozinho. As vozes de Tobias e mamãe ecoavam de algum lugar vindo de lá de baixo e, por um momento, fiquei imóvel, apenas apreciando qualquer coisa que estivesse ali, naquele lugar, que eu não sabia exatamente o que era, mas de que gostava. Só após algum tempo, lembrei-me de que iríamos ao parque e que eu deveria levantar logo.
Sem mais demora, corri até o armário e despi o pijama, vestindo roupas pesadas. Fazia um típico dia de inverno: bonito e enregelante. Depois de amarrar firmemente os meus sapatos – certo, talvez eu não soubesse amarrar direito, mas, bem... eles ficavam presos de qualquer maneira – fui até o corredor e desci os degraus das escadas quase que de uma vez, pulando para dentro da sala e correndo até Tobias, que abriu um sorriso e me levantou nos braços. Naquela época, ele sempre mantinha um sorriso esboçado nos lábios.
“Isso aí, Sev! Que disposição logo cedo, hein?”, ele riu e se virou para Eileen, “Viu? Ele é um Snape!”
Ela sorriu de leve enquanto trazia uma travessa de pães da cozinha e as colocava sobre a mesa. Passou uma das mãos sobre a minha cabeça enquanto eu me servia generosamente.
“É, parece que é, mesmo. Risonho e comilão!”
“Ah, falando assim até parece que não casou comigo...”, ele disse, brincando. “Só falta você, Sev. Estamos prontos para ir ao parque.”
“Eba, eba! Parque, parque!” Talvez eles não tivessem entendido o que falei, porque estava com a boca cheia... Mas, bem, eu tentei. Quase engoli a comida sem mastigar e o leite desceu rapidamente pela garganta. Ficar preso em casa enquanto toda aquela neve estava lá fora para brincar... Que desperdício.
Depois de algum tempo, saímos pela porta dos fundos, que dava para a floresta próxima dali – a casa ficava ligeiramente afastada das outras – e descemos por um caminho de terra – em que só se via a neve agora – até a entrada do parque. Naquela época do ano, era pouco provável que fosse vista alguma alma viva num lugar tão frio, mas a natureza nunca me incomodou. Muitíssimo mais silenciosa, sem aquele bando de estranhos olhando e analisando cada parte de meu ser. O sol nos fazia companhia naquela manhã e eu estava particularmente feliz por mamãe ter me perdoado. Tudo parecia tão bom... Que era quase injusto. Injusto, porque me fizera acreditar que continuaria assim.
Sem avisar, Tobias saiu correndo – bem, em parte, escorregando – por cima da grossa camada de neve.
“Vamos, seus molengas!”, provocou-nos. Mamãe não correu, duvido que ela fosse fazer qualquer coisa assim, mas eu o segui à velocidade total. Conseqüência: caí na sua armadilha. Assim que me aproximei o suficiente, ele me acertou com uma bola de neve e, quando me distraí, tentando limpar minhas vestes, derrubou-me.
“AH!” O seu grito de advertência ecoou pelo parque, junto de meus risos. Ele me fazia cócegas. “Terá de comer o triplo para vencer o papai aqui!”
Tobias era diferente de mamãe. Espontâneo e simples. Calmo e tentando sempre ver o bom das coisas, conseguia chegar a soluções minimamente razoáveis para qualquer problema. E também era muito divertido. Mamãe, no entanto, era intensa, doce e terna. Sim, eu a amava. Conheci poucas como ela. Era formidável, embora introspectiva. Fazia palavras em seu silêncio. Era do tipo de pessoa que, quando alguém está sofrendo, ela o faz também, sem pronunciar uma palavra sequer. Gostava de deixar os outros felizes. Sempre achei que eram a combinação perfeita: Tobias, com quem sentia-me protegido, e Eileen, a qual sentíamos vontade de proteger. Era a harmonia perfeita e tudo teria dado certo... mas não deu. A felicidade nunca é perpétua. São como gotas d’água para um morto de sede: nunca vem o suficiente.
Tobias parecia tentar soterrar-me na neve, colocando montes desta sobre o meu corpo enquanto eu – ainda sem ter recuperado o fôlego – tentava afastar-lhe as mãos, sem muito sucesso.
“Ah, Tobias, deixe-o...”, murmurou mamãe, sem conter um sorriso. Tobias parou por um instante, ainda com as mãos cheias de neve, e mirou-a. Sorriu largamente, matreiro.
Acertou.
Antes que pudesse protestar, fora atingida por uma grande quantidade de neve.
Eileen parecia ligeiramente perplexa com o que acontecera. Então, rumou em direção a Tobias – ele se projetou para trás de leve, mas não fugiu – e, sem que fosse esperado, o derrubou. E atirou neve nele.
Sorriu, vitoriosa.
Lembro-me de ter ficado um tanto surpreso. Depois, apenas ri. Talvez eu não pudesse vencê-lo, mas mamãe podia.
Juntei-me a eles e decidimos fazer um boneco de neve... Um boneco Snape.
Sem que percebêssemos, as horas foram passando. Logo, Tobias largou-se sobre a neve.
“Eu... Fome”, limitou-se a dizer.
“Pensei que as baterias não acabassem tão rápido.”
“Elas não acabaram... Elas só... Gostam de estar completamente carregadas!”
“Sei...” Eileen sentava-se ao seu lado. Eu, no entanto, continuava brincando. Um tanto afastado deles, moldava a neve. Fiz uma pequena borboleta. Toscamente, é claro. Observei-a por alguns instantes, em reprovação. Ficou meio deformada. Então, abriu as asas e voou.
Observei-a longamente, extasiado. Tomava uma coloração azulada, magnífica. Eu não entendia o porquê daquilo, mas não sabia que deveria entender. Apenas a achei linda. Então, quando voou para dentro da floresta, embrenhei-me nesta e a segui.
Desviava das árvores num zigue-zague preguiçoso. Ao toque do sol, tornava-se ainda mais bonita e, como se eu estivesse hipnotizado, a segui para o lugar que fosse. Ignorei os zumbidos distantes que rasgavam o silêncio da floresta, sendo levado pelos sussurros dos ventos, a pequenina a guiar-me.
Tudo parecia ligeiramente fora de lugar, como se eu não estivesse ali de verdade, e sim assistindo de qualquer outro lugar, seguro e confortável. Eu via apenas uma parcela do que acontecia, como se estivesse semiconsciente...
Então, a borboleta se chocou contra uma das árvores e a neve desintegrou-se. Eu a mirei por um momento, tomado pelo amargo sabor da desilusão.
“Era bonita, não?”, perguntou-me.
“Era”, respondi antes de me virar. Quem quer que fosse, trajava longas vestes negras, diferentes das que via na cidade ou em qualquer lugar. Era alto, mas não podia ver seu rosto, pois usava um capuz escuro que cobria-lhe a maior parte. No entanto, sua voz ainda ecoaria por muito tempo dentro de mim, em busca de respostas.
“Qual o seu nome, garoto?”
“É Severus”, disse, já procurando para onde ir. Agora que a borboleta se fora, não havia mais o que fazer naquele lugar. O problema era: onde estava?
“Hmm... Você fará aniversário logo, não?”
“Vou. Cinco!” Mostrei com os dedos. Eu já sabia contar há algum tempo. Contava tudo: as folhas das árvores, os fios de cabelos, as pegadas que as pessoas deixavam na neve... Mas me cansava rápido.
“Quer um presente?”
Fiquei em dúvida. Mamãe sempre dissera para não aceitar nada de estranhos, mas presentes eram sempre tão... Divertidos. Apenas não respondi.
“Tome”, ele murmurou e levou uma das mãos para dentro das vestes. Ergui-me nas pontas dos pés, tentando espiar, mas não consegui ver. “Venha pegar o seu presente, venha!”, chamou. Fiquei em dúvida novamente, mas ele parecia um homem bonzinho. E até sabia que eu faria aniversário! Se fosse um estranho, não saberia... Saberia?
Aproximei-me alguns passos, mas...
“SEVERUS!”, ela gritou, tão alto que estanquei no lugar. Corria para junto de mim, só sabe Merlin de onde saiu. Seu rosto estava pálido e úmido e seus cabelos castanhos voavam graciosamente enquanto ela se punha entre mim e o estranho. Não podia ver o seu rosto, porque me segurou atrás de seu corpo, mas podia ver o homem por debaixo dos seus braços. “O que você quer?”
Ele riu, soando abafado.
“Nada... Que você não saiba.”
“Vá embora daqui, AGORA”, pontuou mamãe. Eu desconhecia essa força que vinha de dentro dela.
“Como deseja, srta. Prince. Mas você sabe que vou voltar.” Ela me segurou com mais força.
“EILEEN!”, a voz de Tobias soou, distante. O homem riu.
“E sabe que está cometendo um erro.”
“Tenho certeza de que estou certa do que devo fazer, e acredito que o senhor não deva meter-se onde não deve.” Livrou-me de um dos seus braços e levou uma das mãos ao bolso e apontando o que quer que fosse aquilo para o homem. “Sugiro que vá embora logo, ou serei forçada...”
“Já disse que estou indo-me.” Ele riu novamente. “Até breve, srta. Prince.”
Sumiu de repente. Em frente aos meus olhos, como se tivesse evaporado. Não, mais rápido que isso. Ficamos um tempo em silêncio e, junto de nós, tudo parecia ter se calado.
Ela virou-se e me abraçou, tão forte que, pela primeira vez, soube que havia algo de errado com mamãe. As lágrimas quentes que rolavam por sua face molharam a minha. Então, eu a abracei de volta. Eileen afastou-se e mirou-me, surpresa.
“Não se preocupe, mamãe. Estou com você.”
Seus olhos encheram-se d’água de novo, mas nenhuma sequer rolou, e ela voltou a me envolver, ainda com a respiração acelerada.
Tobias aproximou-se, aparecendo por detrás de algumas árvores, e mirou-nos. Estava longe de sorrir.
Os sussurros dos ventos emudeceram-se. Eu sabia que ali havia algo de muito – e misteriosamente – errado.
N/A: *autora mal educada decidi dar uma palavrinha com os leitores* olá, pessoas que lêem a fic dedicado a um dos meus dois personagens favoritos da saga Harry Potter! Bem, em primeiro lugar, eu quero me desculpar pela demora considerável de um capítulo não tão complicado assim... Perdoem-me, eu sofri do conhecido e chamado "branco criativo" e parece que só consigo mandá-lo embora em época de provas no meu colégio, ou seja, quando não posso escrever. Mas dei uma quebrada nisso finalmente e escrevi. Não sei quanto vai demorar o próximo, mas como estamos próximos das férias, não vai demorar tanto. Espero que tenham gostado. Um obrigado especial à Lady Stardust, Bruna F, Heloisa Santos, Hannah M. D. Snape, Vinola Nightingale, D'arcy, Eleonora Deboli e às minhas queridas beta-readers, Tainara Black e Roxy! Muito obrigada pelos comentários!
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