"Black Returns"
Não tinham muito tempo. O verão no hemisfério norte terminaria dali a menos de três semanas. E, conforme o que se extraiu do medalhão, a chave de tudo girava em torno das estações do ano. “O verão abre os portais para o outro extremo.”.
Agora, com a pista da origem da madeira, poderiam determinar onde um possível portal se abriria. O problema é que poderiam até saber o quê estavam procurando, mas não por que. Levando em consideração a experiência anterior do bracelete de Hufflepuff, poderiam dizer que talvez – e somente talvez – Rowena Ravenclaw os estava avisando sobre algo que iria acontecer e que deveriam impedir.
- Olhe por esse lado. – Disse Rony, enquanto se preparavam para partir. – Quando foi que a gente não trabalhou com informações incompletas e sob perigo mortal?
- Sempre se pode contar com você para acalmar as pessoas, não é, Rony? – Harry não pode deixar de sorrir.
- Às suas ordens. – O ruivo respondeu matreiramente.
Só havia um lugar no mundo onde poderiam encontrar o “Carvalho-Guardião”, árvore da qual a flecha encontrada em Avalon era feita. E este lugar era o Centro de Excelência em Educação e Pesquisas Mágicas do Rio Negro, a escola brasileira de bruxaria.
- Acho que estes serão suficientes. – Hermione entrou apressadamente na sala, com uma pilha de livros nos braços, em cujo topo descansava uma pequena bolsa de mão.
- Hermione, sei que os trouxas têm muitos recursos hoje em dia, mas... – Rony comentou da maneira mais sutil que “Rony Weasley” podia fazer. - Acho que naqueles trecos que eles usam para viajar não tem espaço para isso tudo não...
Em resposta, a esposa simplesmente tirou a velha bolsa de cima da pilha de livros – bolsa que Rony estava reconhecendo, agora – E, surpreendentemente, colocou tudo lá dentro. A bolsa sequer se estufou com os quilos e mais quilos de livros.
Devido à condição de Hermione, não podiam viajar por meios mágicos, e por isso teriam que ir de avião, ou, como Rony diria “naqueles trecos voadores”. (1) Tinham passado na Toca e deixado Sirius, enquanto Harry ia para casa se despedir de Gina e dos gêmeos.
A viagem transcorreu relativamente calma – apesar dos vexames que Rony, desacostumado ao mundo trouxa, vivia aprontando -, e quando se deram conta, estavam em um pequeno aeroporto no Brasil, ainda que exaustos da longa viagem e das inúmeras escalas.
Os três se olharam, um tanto perdidos. Tinham lançado sobre si mesmos um feitiço de tradução, de forma que podiam entender o que as pessoas falavam, mas não podiam se comunicar.
Conforme as instruções de Neville, que não pudera vir com eles, deveriam se dirigir para a lateral daquela pista de pouso deserta, e bater com a varinha sete vezes no sétimo pneu de carro. Como não sabiam por onde começar a contagem, bateram sete vezes em todos os pneus que encontraram por lá.
A ajuda de Neville, que já estivera no Centro Rio Negro diversas vezes; bem como de “nativas” como Ana ou Serenna teriam sido bem vindas, mas nenhuma das duas poderia acompanhá-los também. Ana tinha a pequena Lizzy para cuidar, Serenna não poderia se afastar do Lar de Elizabeth, especialmente agora que Snape estava dando aulas em Hogwarts. Nem mesmo Lupin poderia acompanhá-los, uma vez que tinha tomado para si a tarefa de “monitorar” possíveis alterações na região de Avalon.
Assim, estavam só os três naquela missão – o famoso “Trio Maravilha”.
Quando finalmente acharam o pneu que abria a passagem para uma pequena ruazinha comercial bruxa, procuraram pelo homem que Neville lhes disse que alugava Pégasos para levá-los até as margens do Rio Negro (o rio que dava o nome à escola brasileira de magia). Segundo ele, esta era a única forma mágica, além das chaves de portais, de se chegar até lá.
Os pégasos eram criaturas magníficas. Tinham o pêlo branco como os unicórnios que Harry conhecera em Hogwarts, só que pareciam mais impacientes do que os últimos. Os unicórnios transmitiam inocência e tranqüilidade; já os pégasos, força e aventura. Identificou-se imediatamente com aqueles cavalos alados, e seu coração se confrangeu quando os viu domesticados: criaturas como aquela deveriam viver livres em alguma floresta, ou, melhor ainda, em um descampado onde pudessem correr também.
Hermione foi quem não gostou muito da idéia de ter que voar. Ela nunca se entendera muito bem com altura, fosse montada em vassouras, hipogrifos ou trestálios. Ainda assim, como uma autêntica grifinória, enfrentou o medo e montou o seu pégasos obstinadamente.
- Não se preocupem com o caminho, os animais o conhecem de cor, irão sozinhos. E, caso aconteça algo, eles sabem voltar sozinhos também.
- Como assim acontecer algo? – Rony voltou-se para o comerciante e franziu o cenho. - O que pode acontecer?
- Nada... – O outro sorriu. – Só falei por falar. Apenas... Não passem muito perto das árvores.
Os três se olharam, mas o comerciante não lhes deu tempo para mais nada. Deu o sinal que os animais entendiam como “avante”, e eles bateram as poderosas asas, rumando ao céu mais azul que Harry jamais havia visto.
Sobrevoaram uma imensidão verde, tão compacta que mais parecia um tapete, interrompido aqui e ali por uma linha brilhante formada pelas águas de um rio. Depois do que havia parecido uma eternidade, chegaram às margens do que parecia ser um mundo em forma de um rio escuro e sem fim.
Conforme a explicação de Neville, aquela era a margem onde começava o “reduto bruxo” da Amazônia. Havia feitiços antitrouxas em um raio de quilômetros ao redor do Centro Rio Negro, como aqueles que existiam em Hogwarts. Desmontaram, pois os pégasos se recusaram a chegar perto da água.
– Caramba! Como é que a gente vai atravessar isso? – Rony balançou a varinha em direção ao turbilhão de águas escuras do Rio Negro.
Nem bem o ruivo tinha terminado a frase, algo começou a emergir das águas, formando primeiro um redemoinho. Eles deram alguns passos para trás bem no momento em que um mastro surgia, seguido da polpa e da proa de uma embarcação de tamanho médio.
- Isso me traz más recordações que têm nome e endereço: Victor Krum, Durmstrang. – Rony comentou amuado, lembrando-se da chegada do navio da delegação da escola búlgara de magia, no quarto ano deles em Hogwarts.
- Rony, eu não acredito que você ainda pensa nisso... – Hermione revirou os olhos.
Mas não era o navio dos bruxos búlgaros. Esse era menor, e trazia a bandeira brasileira no mastro, pintado de verde e amarelo, com o nome “Iberaba”. Uma moça surgiu de dentro da cabine, vestida com uma puída calça corsário, lenço na cabeça, e camisa trabalhada com rendas:
- Olá, gringos! – Ela os saudou efusivamente, e com um inglês com muito bom, ainda que com forte sotaque: - Meu nome é Janaína, e sou sua capitã.
Estavam navegando por meia hora, rio acima – “acima” é modo de dizer, já que eles estavam abaixo da superfície, como um submarino – quando criaturas com longas caudas passaram rente às janelas do barco, do lado de fora. Não demorou muito para que percebessem que, além de caudas de peixe, elas tinham longos cabelos verdes, com o tronco e o rosto de mulher.
- Iaras. – Janaína falou. – O povo sereiano daqui.
- Porque estão cercando o barco? – Hermione perguntou.
Janaína sorriu estranhamente, um sorriso malicioso e divertido de quem sabe que irá chocar os outros:
- Por causa de algo que nós temos e elas não têm.
- Pulmões? – Rony arriscou, vigiando pelo canto dos olhos três das criaturas que pareciam ter especial interesse por eles.
- Não. – Janaína fez uma pausa, aumentando o suspense. – Homens. As sereias dessa raça não possuem machos, como os centauros não têm fêmeas. – Ela alargou o sorriso quando acrescentou a chocante revelação: - De vez em quando algum bruxo descuidado acaba se perdendo por estas águas, e...
O grito de indignação de Hermione a interrompeu, assim que a inglesa entendeu em que direção ia os pensamentos das sereias em relação ao marido e ao amigo, e Janaína soltou uma gargalhada. Era muito divertido ver os três reservados britânicos se chocarem com coisas com que os bruxos da região já estavam acostumados.
Harry e Rony ficaram rubros no mesmo instante. Se antes as observavam devolvendo a curiosidade, agora evitavam o mínimo olhar a todo custo, como se fossem pegar fogo se o fizessem.
- Por isso é mais seguro para uma mulher ser capitã? – Harry perguntou.
- Isso mesmo. – Janaína assentiu com a cabeça. – Mas é muito difícil elas se aproximarem de grandes embarcações. A menos que...
- A menos que? – Ainda carrancuda, mas tentando a todo custo entender o ponto de vista das iaras, Hermione encorajou a brasileira a continuar.
- Que elas tenham sentido que há um prêmio especialmente valioso aqui. Posso entender porque te encaram, “Eleito” – falou para Harry, referindo-se ao fato de todos os bruxos saberem, ou pelo menos intuírem, que deveria haver uma força muito poderosa em Harry Potter para que ele pudesse derrotar Você-Sabe-Quem. – No entanto – continuou Janaína – parece que consideram igualmente o senhor Weasley como um alvo em potencial.
Se isso fosse possível, Rony ficaria ainda mais vermelho do que já estava. Agora, além de evitar olhar para as sereias, também fugia do rosto contraído de irritação de Hermione, e tentava aparentar uma fria indiferença quanto a tudo aquilo.
- Maldito sangue de dragão! – Pôde ouvir a amiga resmungar.
- Sangue de dragão? – Janaína perguntou, subitamente curiosa, fitando de um para o outro. (2)
- Só um tratamento alternativo... – Rony fez um gesto nervoso de “não importa” e parou por aí, dando o assunto por encerrado.
- Isso está ficando cada vez mais divertido! – Exclamou Janaína, jogando a cabeça para trás e rindo, o leme da embarcação bruxa bem seguro em suas mãos.
****
[Enquanto isso, na Inglaterra...].
O rumor sobre o noivado de Zacharias Smith havia se espalhado com muita facilidade, mas isso não era de se surpreender com a ajuda duvidosa dos artigos de Rita Skeeter. E, é claro, chegou rapidamente ao conhecimento de Jeremiah Smith, o pai do “noivo”.
Havia certo choque no semblante do empresário bruxo quando um de seus empregados cumprimentou-o pelo noivado do filho. Confuso, não entendeu sobre o quê o homem estava falando, mas não gastou mais do que três ou quatro segundos com a questão, logo conjeturando que deveria ter havido um engano. No entanto, quando mais uma, e mais duas, quatro e um número cada vez maior de pessoas continuou a felicitá-lo pelo iminente enlace de seu herdeiro, não perdeu tempo em mandar sua secretária buscar um exemplar do Profeta Diário.
Zacharias ainda podia ver os olhos faiscantes de fúria do pai, bem como o tom de indignação em sua voz, quando o chamou em sua sala:
- Noivado? E eu sou o último a saber! Como ousou me esconder isso? E... Uma trouxa? Quem é essa mulher, afinal de contas?
Naquele momento, não deu ao pai nenhum sinal do frio que sentiu na barriga diante das perguntas à queima roupa. Longe disso, foi polido e distante, levemente sarcástico nas respostas, e totalmente evasivo. Não foi algo fácil – uma vez que fora Jeremiah Smith quem lhe ensinara a ser o “cínico perfeito” – mas, no final, conseguiu postergar o verdadeiro momento em que teria que enfrentar o pai.
Sabia o que desesperava o pai: as conseqüências que um noivado misto – entre um bruxo e uma trouxa – se desmanchado, traria. Havia leis e... Penalidades. No entanto, havia assumido resultado de seus atos quando contara aquela mentira sobre o noivado, visando proteger sua tia-avó Agatha, Ana e a própria Luíza. Nessa ordem de prioridade, é claro.
Zacharias ergueu o olhar até o sofá onde sua suposta noiva estava sentada, lendo atentamente um livro. Ambos precisavam aparecer em locais públicos juntos para manter as aparências e, além de tudo, seu pai havia pedido, ou melhor, exigido conhecê-la. Graças a Merlim, a encontro não durou muito, já que a garota parecia “travar” cada vez que precisava contar uma mentira. Enquanto a moça esperava que o horário combinado com tia Agatha para vir buscá-la chegasse, fora necessário “escondê-la” dos olhares curiosos de seus funcionários. A mulher era um desastre ambulante – não como Tonks, mas, ainda assim, ingênua demais para ficar à solta.
Ela movia as páginas do livro rapidamente, e Zacharias já havia tido provas o suficiente das habilidades da moça para não duvidar que cada palavra estava sendo decorada. Teve que reter um suspiro de exasperação quando viu o título do livro: “Trouxas Sensitivos”. (3) Um livro sobre trouxas que não sofriam com os feitiços obliviate. Só faltava agora ela sair por aí dizendo: “Ah, olá, meu nome é Luíza, e eu não posso ter minha memória apagada por feitiços”.
- Escute isso: - Ela disse de repente – “Alguns habitantes de Ilfracombe não foram afetados pelo Feitiço de Memória em Massa de 1932, quando um dragão verde-galês mergulhou sobre uma praia apinhada de trouxas que se banhava ao sol. Até hoje, um trouxa apelidado de “Esquisitão” continua falando nos bares ao longo da costa sulina de um “baita lagarto voador” que perfurou seu colchão de ar”.
- E...?
- E... – Foi a vez dela de ficar amuada. – EU posso ser uma “trouxa sensitiva”. Por isso que os feitiços de memória não funcionam em mim!
- Pode falar um pouco mais alto? – Ele fechou uma pasta com rispidez. Então completou com ironia: - Acho que o pessoal do primeiro andar do prédio não conseguiu ouvir.
Luíza concordava - ainda que fosse vexaminoso – que não era tão boa em esconder coisas, como o era em descobri-las. Nunca precisou mentir tanto, e realmente não tinha jeito para isso, mesmo que fosse para salvar a sua vida. Mas, não achava que todos ao seu redor fossem inimigos em potencial, como Zacharias parecia pensar. No entanto, resolveu não dizer isso em voz alta, porque sabia que ele iria começar com mais um de seus discursos sobre como ela era ingênua e tudo mais.
Foi quando um bruxo jovem, porém com o início de uma precoce calvície apontando em suas têmporas, bateu na porta, hesitante. Tinha as feições bondosas, mas o rosto pálido, olheiras e roupas desalinhadas.
- O senhor me chamou, senhor Smith?
- Sim, Carter. Quero que contate os duendes do Gringotes e faça um relatório das últimas movimentações financeiras. Para o fim do dia. Entendeu?
- Sim, senhor. – Um misto de desespero e resignação apareceu na face do moço, mas Zacharias não notou, pois mal o olhara.
Depois que o rapaz saiu, Luíza fechou o volume de “Trouxas Sensitivos”, e encarou com seriedade o “noivo”:
- Há quanto tempo a mulher dele está doente?
- A mulher dele não... – A expressão ausente de Zacharias sumiu, e uma confusa apareceu em seu lugar. – Como sabe que ele é casado?
- A marca da aliança no dedo anelar esquerdo. Está bem forte, recente. – Ela responder com simplicidade, sem deixar o tom de ansiedade contido na voz. – Além disso, ele tem olheiras, está pálido e tem rugas de preocupação no rosto. Deve ter emagrecido, por isso a aliança não coube mais.
- Pode haver um milhão de outros motivos que não uma esposa doente. – Zacharias rebateu, não querendo dar mostras de que realmente não sabia o que acontecia na vida de seus empregados.
- É, mas se fosse o caso, a mulher dele não o deixaria andar por aí com as roupas amassadas, e muito menos sem a aliança. Cheguei também a pensar que ele poderia estar se separando da esposa, mas foi então que vi o crachá do St. Mungus no bolso do paletó dele...
- Ele pode ter ido visitar alguém a noite passada no hospital, e em seguida foi a uma noitada, tirando a aliança.
Luíza quase engasgou com cinismo dele, mas passou por cima de sua própria reação. Sim, todas as possibilidades tinham que ser consideradas, como bem estava acostumada a fazer em seu trabalho na Agência de Inteligência. Na realidade, havia percebido que algo estava errado com o funcionário de Zacharias quase por hábito, sem se dar conta que estava analisando tudo a seu redor, como sempre fazia. Por isso, não foi difícil rebater:
- Não, ele não tem jeito de um homem mulherengo, pelo contrário, parece tímido. Nem olhou para mim quando entrou...
- Ah, e deve ser realmente chocante que um homem não olhe para você. – Ele a cortou, irônico, sem desviar os olhos dos papéis que estava analisando.
Luíza levantou o rosto lívido de choque e humilhação. Sabia que não era do tipo que atraía os homens. Cada vez que se comparava com a maioria das mulheres, só uma expressão lhe vinha à mente para se autodefinir: “sem sal”.
- Não precisa ser grosseiro. – Conseguiu firmar a voz e responder com toda a dignidade que lhe restara. – Todos os dias olho-me no espelho, não sou cega... Ao contrário de você, Zacharias Smith, que não consegue prestar atenção nem no quê está acontecendo ao seu redor!
Zacharias ergueu os olhos dos papéis que estava lendo, surpreso e confuso. Observou-a se levantar bruscamente da cadeira sem entender o quê a tinha ofendido tanto. Afinal, tudo o que tinha dito, ainda que sarcasticamente, era que ela devia estar acostumada a ver os homens se encantarem por seu rosto inocente. O que havia de errado com aquela mulher?
“Inferno!”, pensou, quando se deu conta que ela estava saindo de sua sala pisando duro e com a expressão mais indignada que já tinha visto na vida. Certamente os outros perceberiam também.
Luíza quase tinha atravessado o vão da porta quando Zacharias a deteve, segurando-a pelo braço. Com um puxão, girou-a para si e a beijou.
- Até logo, querida. – Ele disse em voz alta, de forma que todos pudessem ouvir. E, depois, sussurrou em seu ouvido: - Por Merlim, desfaça essa cara de zangada, ou amanhã seremos novamente o assunto da coluna de Rita Skeeter!
Claro. Todos estavam olhando. Controlando o impulso de levar as mãos aos lábios beijados, e com os pensamentos em um turbilhão, Luíza reuniu forças para abrir um pequeno sorriso e sair dali.
Enquanto caminhava, as idéias iam pouco a pouco voltando a seu lugar, até que o verdadeiro significado do beijo de Zacharias caiu de pára-quedas bem na sua frente – e uma bofetada não a teria insultado mais do que a compreensão do que tinha acontecido.
Aparências. Fez pelas aparências. Ele a beijou, e em seguida fez a coisa mais rude que um homem poderia fazer a uma mulher depois de tê-la beijado: lembrá-la, ainda que indiretamente, que não o teria feito se tivesse tido escolha.
Ela sabia disso. Não precisava ser lembrada, até mesmo porque não gostava do “noivado” mais do que ele. Como ele ousava faze-la sentir que era a culpada por terem que sustentar um compromisso de mentira com ela? Seu orgulho estava ferido, e Luíza decidiu, naquele momento, que odiava Zacharias Smith.
As palavras de Luíza ainda estavam ressoando em seu ouvido. “Não consegue prestar atenção nem no quê está acontecendo ao seu redor”. Se as suposições malucas dela estivessem corretas, então estava agindo há muito tempo como um crápula com os seus funcionários...
Não. Ele sempre agiu com cautela, nunca misturando negócios e assuntos pessoais. Esta era a maneira correta, assim não havia como ser envolvido e enganado. Era um bom patrão, pagava bons salários, dava bônus aos mais aplicados, promovia quem era mais eficiente e qualificado, nunca deixando que quaisquer outras razões que não o merecimento interviesse em seu julgamento.
Não era assim que aprendera com o pai?
Irrequieto, caminhou até a janela que dava vista para o Beco Diagonal, como se a visão da rua pudesse aclarar seus pensamentos. Viu Luíza, que agora atravessava o portão de entrada do prédio, sendo saudada pelo porteiro, um senhor de idade avançada, que sorriu para ela. Aquele porteiro nunca sorrira para ele. Nunca, em todos aqueles anos.
Em um impulso, Zacharias chamou o funcionário com quem conversara antes, e que tinha sido o pivô daquela controvérsia.
- Carter, eu... – Hesitou, não acreditando que iria mesmo fazer isso. Respirou fundo, apertando fortemente os maxilares, com raiva de si mesmo por seu impulso. – É verdade que anda distraído no trabalho por causa de sua esposa, que está doente?
- S-sim, senhor... M-mas juro que isso não vai mais acontecer...
- O que não vai mais acontecer? Sua esposa ficar doente? – Zach perguntou asperamente, deixando o outro sem fala. – Carter, tire uma licença para cuidar dela. – Resmungou em seguida: - Não acredito que ela tinha razão... – E para o empregado de novo: - Por Merlim, Carter, conte-me quando algo assim estiver acontecendo!
O homem queria dizer que ninguém tinha coragem de contar seus problemas pessoais ao chefe, uma vez que ele nunca pareceu inclinado a querer saber. Mas estava contente demais por sua sorte, de forma que não perdeu tempo em agradecer e ir providenciar o mais rápido possível a sua licença. Quando os colegas lhe perguntaram como conseguiu falar com Sr. Smith, ele simplesmente respondeu que não tinha feito nada: e desconfiava que a moça simpática que era noiva do chefe era responsável por isso.
Zacharias se sentiu muito bem depois de ter feito esta “concessão”. Não estava acostumado a deixar as pessoas se aproximarem muito. A vida tinha lhe ensinado que os outros costumavam se aproveitar quando isso acontecia. Desconfiava de todos, mas, quando tinha a lealdade conquistada, era para sempre.
Talvez – somente talvez – Luíza estivesse certa.
****
[De volta à Amazônia...].
Da mesma forma que surgira, o “Iberaba” emergiu do outro lado do rio, explodindo água em sua margem e brilhando à luz do sol.
Janaína os ajudou a desembarcar os valorosos cavalos alados, que tinham ficado em um compartimento de carga magicamente à prova de som. A capitã do barco lhes havia contado que o canto das iaras os deixavam nervosos, e à simples visão do rio, afastavam-se. O máximo que se conseguia chegar com um pégaso era até o ponto de embarque dos navios e dali por diante, eles precisavam ser transportados até a outra margem.
- Se tivessem chegado na época do início ou fim do ano, ou ainda nos feriados, quando os alunos do Centro estão voltando ou indo embora, vocês conseguiriam ir até bem perto com barcos bem maiores, que são especialmente mandados para estas épocas. Mas este aqui... – Ela olhou carinhosamente para a própria embarcação e sorriu. – Apesar de não ser pequeno, não chega tão longe.
- Não tem importância. – Harry respondeu. – Acho que a viagem com os pégasos vai ser mais interessante. – Sorriu.
- Ô, se vai... – Janaína murmurou para si mesma.
- O quê?
- Nada... – Ela respondeu, já entrando na cabine e acenando. – Apenas... Não confiem nas árvores. Não até estarem dentro do Centro Rio Negro, pelo menos. Afinal, não queremos que nada aconteça ao Eleito por aqui. Não seria bom para o turismo. – Com esta declaração bem-humorada, ela desapareceu junto com o “Iberaba”, nas profundezas do rio.
O trio se olhou, desconfiado.
- Que tipo de aviso é esse, afinal? – Rony resmungou. – “Não confiem nas árvores”, “Não se aproximem muito das árvores”. Ninguém pode ser mais específico?
- Não se preocupem, acho que sei. – Hermione declarou, mas não deu mais esclarecimentos.
- Não pode ser pior do que “Sigam as aranhas”. – Harry deu um tapinha no ombro do amigo, e em seguida fez um sinal para que montassem novamente nos cavalos alados.
Mais um tempo se passou enquanto voavam nos pégasos, desta vez montanha acima. Muito, muito alto. Em determinado momento, conforme o homem que lhes alugara os animais avisara, encontraram a barreira mágica que impedia a aproximação via aérea, e os próprios cavalos começaram a voar em círculo, sinal que teriam que descer e cavalgar.
A terra era extremamente escura, e a mata fechada deixava pouca luz do sol passar. As roupas estavam molhadas e grudando na pele, mas não era de suor, e sim da umidade reinante no ar. Até Hermione ter a idéia de lançar um feitiço impermeável nas roupas, já tinham parado várias vezes para secar as roupas também com feitiços, na tentativa de diminuir o desconforto.
Ao contrário do que esperavam, à medida que subiam, a umidade não diminuía. Parecia que as nuvens eram retidas pela formação rochosa, o que mantinha um constante nevoeiro.
Finalmente, quando pesaram que tinham se perdido (apesar de confiarem totalmente nos feitiços de orientação de Hermione, claro), depararam-se com um beco sem saída. Aparentemente, tudo o que havia adiante eram árvores, folhas e rocha.
- Não pode ser! – Hermione exclamara. – O mapa está dizendo que estamos em frente à entrada do Centro Rio Negro! – Ela olhava para as árvores e o mapa, como se a qualquer momento uma porta fosse surgir em algum ponto da vegetação.
- Tem certeza, Mione? – Harry apontou para uma trilha que parecia levar ao outro lado da montanha. – Pode ser que não seja a entrada, mas uma parte da escola, como as escarpas rochosas abaixo de Hogwarts.
- Uau, isso que eu chamo de bases sólidas. – Rony bateu com os nós dos dedos em uma das árvores.
- Rony, não! – Hermione gritou advertindo-o, mas era tarde demais.
Tomando vida, um galho enorme da árvore que Rony tocara se moveu, como braço humano, e as ramificações se sua copa se transformando em “dedos” que se fecharam em torno da cintura do rapaz, erguendo-o vários metros do solo.
- Arreeeeeeeeeeeeee!
Outro ramo levantou o pégaso onde ele estava montado, fazendo o animal relinchar, assustado.
Harry já estava correndo em sua direção antes mesmo que os galhos tocassem no amigo, lançando todos os feitiços que lhe vinham à cabeça – tanto de defesa quanto de ataque – na tentativa de fazer a árvore largar a sua presa. Desceu de seu pégaso, consciente que poderia ferir a criatura se o forçasse a galopar perto demais.
No entanto, outra árvore bloqueou seu caminho com um inesperado galho vindo do nada. Lembrando-se das noções de capoeira que André, irmão adotivo de Serenna, (5) havia dado aos Aurores, poderia dizer que tinha acabado de sofrer um “rabo de arraia”, com uma rasteira em seus pés que o fez tropeçar no ar. O mesmo galho que o atacou se fechou em seus pés como um terrível punho, levando-o em uma imitação de um feitiço “levicorpus”.
Agora ele e Rony estavam mais ou menos na mesma altura, ambos se debatendo e lutando com todas as suas forças. Com um poderoso coice, o pégaso de Rony conseguiu se libertar e, ao cair no chão, feriu uma das patas.
- Parem de se debater! – Ouviram Hermione gritar.
Os óculos de Harry já estavam quase caindo, pois ele ainda estava preso de cabeça para baixo. Ainda assim, conseguiu ver a amiga ainda montada em seu cavalo, olhando penalizada para o outro animal ferido, mas não moveu um músculo.
- Mione, saia daqui! – Rony gritou de volta, sem conseguir enxergar direito onde a esposa estava, entre as montanhas de folhas e galhos em sua volta. – Vá para o mais longe que conseguir!
- Não! – Ela exclamou. – Não se movam! Não ataquem as árvores! É como o visgo do diabo!
“Como o visgo...”, pensou Harry. O visgo do diabo! Era isso que Hermione queria dizer. Tinham que ficar quietos imóveis.
- Rony, pare! – Ele gritou para o amigo. – Não se mexa, não lance feitiços!
- O quê? – O ruivo o encarou confuso e ofegante por alguns segundos, mas parou de se debater.
A mudança foi imediata. Como se as plantas estivessem esperando por isso, os topos pararam de se agitar, apenas conservando o aperto em volta dos dois rapazes, mantendo-os presos.
Silêncio. Nem mesmo os pássaros, que haviam saído em revoada com a agitação das árvores, ousavam emitir seus cantos e gorjeios. A Floresta esperava.
Os troncos das árvores à sua direita se moveram, abrindo caminho. Para quem ou o quê, Harry não conseguia ver, de onde estava. Tudo naquele lugar parecia denso, fechado e compacto, e nem mesmo a altura auxiliava a visão do que estava acontecendo a poucos metros do solo.
Apesar de não conseguir ver, podia ouvir. Eram sons de passos apressados, que faziam barulhos cricantes enquanto pisavam no tapete de folhas secas depositadas no solo. Olhou para Rony e viu refletido no amigo a apreensão que ele mesmo sentia. Uma parte dele dizia que era loucura ficar ali parado enquanto aguardava pacientemente pelo desconhecido. Mesmo assim, Hermione continuava imóvel e silenciosa, e os dois rapazes confiavam no julgamento dela.
Prendeu a respiração quando percebeu que finalmente iria ver quem – ou o quê – os encontraria, mas a soltou toda de uma vez, piscando várias vezes, ao se deparar com uma bruxa de meia-idade, baixinha, em um vestido marrom adornado com ramos de plantas e flores que percorriam e se cruzavam ao longo de toda a peça.
Ela chegou com passos rápidos e decididos, e apesar do olhar assustado, mantinha a varinha erguida, pronta para ser usada. Quando viu Hermione, pareceu hesitar, e antes de chegar a uma conclusão sobre a garota, ergueu a cabeça, vendo Harry e Rony erguidos e imobilizados pelos ramos-punhos das árvores.
Apressadamente, ela tirou o que parecia ser um bisbilhoscópio e espiou os dois rapazes através dele. Nesse mesmo instante mais pessoas, todas vestidas em verde e marrom, chegaram. Aproximaram-se da mulher, com a mesma expressão de quem está pronto para lutar e fica confuso ao se deparar com uma cena não compatível com suas pré-disposições.
- Er... – A mulher limpou a garganta, depois de ter visualizado Harry pelo bisbilhoscópio. – Lembra quando dissemos que queríamos “arrebatar” o senhor Potter em sua visita, Xoloni? – Ela falou para um senhor negro em vestes marrons ricamente bordadas em um verde escuro e brilhante. – Pois é... Acho que conseguimos!
****
Sim. Haviam encontrado o Centro de Excelência em Educação e Pesquisas Mágicas do Rio Negro. Ou melhor: o Centro os havia encontrado. O pégaso ferido já tinha sido tratado, e agora testava se firmar nas pastas dianteiras, novas em folha.
- Claro, esperávamos que usassem umas das passagens de Pó-de-Flu, que sempre deixamos aberta para as visitas... – Xoloni Cerqueira, o Direitor do Centro Rio Negro disse, enquanto os guiava pela passagem que se abrira quando eles chegaram. - Vocês sabem, há proteção anti-aparatação em um raio de quilômetros da escola.
- Não pudemos usar meios mágicos de transporte porque... – Harry começou a responder, mas parou quando levantou o olhar para a visão que se descortinava a sua frente.
As árvores se moveram, revelando pilares de madeira. Depois, degraus de madeira. Muros, não, muralhas de madeira. Cuidadosamente trabalhados, com lindas linhas retas e curvas, lembrando o vento ou o tortuoso caminho de uma trepadeira.
Então, Harry o viu. A escadaria e os pilares, como em um antigo fórum romano, levavam até a entrada daquela fortaleza de madeira na floresta: um enorme portão, com um escudo trabalhado em seu centro. Dentro dele, entalhada a figura de uma árvore frondosa. Uma frase brilhava em verde escuro ao seu redor:
- “Nenhuma árvore cai ao primeiro golpe”. – Hermione traduziu a frase em latim constante no escudo. Li isso em “Centro Rio Negro: 300 anos”.
- Uma boa frase sobre a qual se pensar. – Xoloni comentou, orgulhoso, enquanto fazia um movimento de varinha. Com um rangido alto, o enorme portão se abriu.
Uma vez dentro dos imensos portões, depararam-se com um pátio consideravelmente grande, com vários quiosques e bancos. No centro, no chão, um piso de mármore branco tinha uma árvore - a mesma do portão - em mármore preto e branco, como em um afresco.
A princípio, não haviam visto o desenho, pois estava coberto com a terra escura que cobria toda a floresta. No entanto, no mesmo momento e no mesmo ritmo que as árvores pareciam recuar em suas flores e galhos, em um crescimento invertido, os grãos de areia moviam-se para fora do desenho, como que varridos pelo vento.
- Medida de proteção. – Explicou Xoloni. – As árvores se fecham e nos escondem sempre que detectam perigo ao nosso redor. – Ele apontou para cima, chamando a atenção deles para o que havia montanha acima.
- Minha... Nossa! – As palavras saíram muito lentamente da boca de Rony, e acompanhavam o seu olhar à medida que este erguia a cabeça, descobrindo mais e mais camadas de corredores e construções, em níveis diferentes, lembrando uma escadaria. – Isto é uma cidade! – O queixo dele caíra, impressionado com a grandiosidade do lugar.
As árvores sustentavam todos os níveis, de todas as fileiras, de uma ponta a outra. As copas das árvores se fechavam em baixo e em cima desses corredores, como duas mãos cujos dedos eram os galhos.
- Cada nível é mais ou menos dividido por ano escolar ou área do conhecimento mágico, de forma a facilitar tanto a estadia dos alunos quanto o andamento das aulas. – Xoloni continuou, sorrindo com o estupefato dos estrangeiros. – E, não vamos esquecer, é claro, dos centros de pesquisa e as instalações daqueles que estão se especializando em uma aérea, depois de terminarem os estudos básicos. Eles estão nos níveis mais altos.
- Aquelas construções – Florinda apontou para edifícios postos em intervalos regulares, no meio das fileiras de corredores em níveis, mais altas, porém das mais variadas formas, ligando uma ponta das fileiras à outra, ou um nível a outro. – São salas de aulas especiais, como as de Astrologia; refeitórios ou dormitórios. Os quiosques perto deles são bem agradáveis.
Nenhum os três conseguia tirar os olhos das estruturas gigantescas.
- Aqui é bem maior que Hogwarts! – Harry estava olhando para o nível mais alto que seus olhos podiam alcançar.
- Tá brincando! – Rony comentou, dando uma risadinha assombrada. – Hogwarts vira um jardim dos fundos perto disso aqui.
- Ora, senhor Weasley, o Reino Unido tem cerca de quarenta e nove milhões de habitantes, e o Brasil, cento e noventa milhões... – Florinda deu de ombros. - Nossa população bruxa, naturalmente, tem que ser maior.
Quando Harry voltou o rosto para os primeiros níveis novamente, descobriu que aqueles corredores não estavam mais vazios. Lado a lado, espiando sobre os ombros dos uns dos outros e esticando os pescoços para ter uma melhor visão do que estava acontecendo lá em baixo, os alunos do Centro aviam corrido para os parapeitos. As vestes eram marrons e verdes, e as capas, de um verde escuro, traziam um desenho bordado no lado esquerdo do peito, que ele não conseguia identificar.
Mesmo que o feitiço de tradução ainda não estivesse fazendo efeito, Harry poderia facilmente adivinhar o que as crianças e adolescentes sussurravam: “É Harry Potter! É, é ele mesmo!”.
A Professora Silva balançou a cabeça, em um gesto de desgosto com a atitude dos alunos. Caminhou até uma das árvores próximas e pegou uma das flores em forma de cálice que cresciam ao redor de todo o tronco, como uma trepadeira. Com a flor perto da boca, ela começou a falar, sua voz ressoando por todos os recantos, alta e clara:
- Voltem todos para suas salas, não tem nenhum espetáculo acontecendo aqui em baixo para tanto rebuliço. As aulas continuam normalmente e vocês não foram dispensados. – Como a declaração não pareceu exercer grande impacto nos alunos, acrescentou, um pouco mais rígida: - O próximo que for pego nos corredores, vai ter que limpar as raízes das árvores, com os sapos-cururus!
O efeito foi imediato. Com uma exclamação de susto uníssona e os olhos arregalados, os estudantes se afastaram dos parapeitos.
- Vamos até o escritório central. – Sugeriu o Diretor Xoloni. – É lá que fica a minha sala, e poderemos conversar mais à vontade.
O trio seguiu a comitiva de docentes até uma espécie de cabine de madeira ricamente trabalhada. Aliás, tudo ali era uma mistura do rústico com o refinamento dos desenhos árabes, ainda que com a simplicidade oriental.
A cabine começou a flutuar e subir a montanha, nível por nível, como se fosse um elevador panorâmico (só que não havia cabo nenhum o sustentando). Agora que passavam mais perto das construções que serviam de salas (tanto as comuns, dos corredores, quanto as maiores), Harry pôde observar melhor os vários detalhes que lhe escaparam quando estavam lá em baixo.
Havia os corredores com os parapeitos e corrimãos, feitos de madeira trabalhada com o mesmo esmero daquela cabine. O chão do corredor era tão brilhante que parecia ser novo, recém-colocado. Além do que o que Harry agora chamava de corredores-sacadas, existiam as salas de aula comuns, com portas corrediças com vitrais das mais variadas cenas e cores que, a exemplo de alguns vitrais de Hogwarts, moviam-se.
- Não temem que alguém caia desses níveis? – Hermione perguntou, olhando, preocupada, os precipícios que se avistavam a todo o canto. Dependendo do lugar, a queda poderia ser de meio metro ou de centenas deles.
Tinham chegado na metade da montanha, e a Professora Silva respondeu serenamente e com um sorriso de compreensão, enquanto eles saíam da cabine:
- Não porque... – Olhou ao redor, como que procurando algo. – Ah! – Lembrou do próprio chapéu e, tirando-o da cabeça, lançou-o montanha abaixo.
Florinda ficou esperando calmamente alguns segundos, até que seu chapéu ressurgiu, sendo alçado por um cipó que parecia ter vida própria. A planta a depositou no chão, bem em frente aos pés da professora de Herbologia.
- Cipós pega-tudo. – Ela explicou. – Crescem em todo o Centro. Os Carvalhos-Guardiões e eles têm uma proveitosa simbiose. Qualquer coisa – ou pessoa – que despenque desses níveis é imediatamente pego e trazido de volta ao local de onde caiu.
O trio expressou seu assombro (claro, Hermione já tinha lido algo sobre isso em algum lugar), e Harry podia jurar que ouviu Rony resmungar alguma coisa sobre Dumbledore poder ter plantado uns destes ao redor do Salgueiro Lutador, em Hogwarts.
- Se estão surpresos com isso – Comentou um dos outros professores, cujo nome não se lembrava. – Esperem até ouvirem sobre Hideki Yanamoto, nosso aluno do primeiro ano. Ele já pulou treze vezes, só por diversão.
O grupo continuou andando pelos corredores daquele nível, e Harry pôde ver de perto alguns dos alunos que se dirigiam para as salas. As capas não eram grossas como as vestes utilizadas em Hogwarts, mas finas e leves. O desenho que estava bordado no canto superior do peito, em linha branca que contrastava com o verde escuro da capa, era o da árvore que se via no escudo do portão de entrada.
- Não há Casas por aqui? – Rony perguntou.
- Casas... – Xoloni por uns instantes pareceu não entender. – Ah, sim, Casas, fraternidades, esse tipo de coisa? Não, nossos alunos só são divididos por ano escolar. Claro, alguns criam e participam de clubes e agremiações, mas não é obrigatório.
“Como seria Hogwarts sem as Casas?”, perguntou-se Harry. A idéia era tão chocante para ele como se lhe perguntassem o como seria o Mundo sem os sete mares.
- Não se esqueça dos times de quadribol. – Lembrou-o Florinda.
- Ah, é claro. – Xoloni riu. – Se querem mesmo saber o que divide nossos alunos e professores, perguntem a eles para que time torcem. Não só os times nacionais, mas os times do próprio Centro.
- Onde está o campo de quadribol? – Rony olhou para todos os cantos dos níveis, sem visualizar onde um campo poderia existir.
- Lá em cima – O Diretor apontou para o que parecia o céu. – No topo do pico. Tem uma área plana, justo com o tamanho de um campo de quadribol.
- Mas... Só dá para ver nuvens lá em cima. – O ruivo comentou.
- Filho, há árvores, nuvens e serração para todos os lados por aqui. É por isso que chamam esse local de “Pico da Neblina”. – Xoloni respondeu, bem-humorado, piscando um olho para Rony.
- A neblina lá de cima é só camuflagem. – A Professora Florinda explicou. – Os trouxas que olham para Hogwarts só vêem as ruínas de um velho castelo. Aqui, só vêem nuvens e um pico altíssimo e isolado... Ah! Aí está nosso professor de Alquimia.
Eles olharam para a direção que a professora indicara, vendo um bruxo de meia-idade, cabelos e cavanhaque brancos, aproximar-se a passos largos do grupo.
- Ei! Aquele não é o... – Hermione arregalou os olhos quando visualizou o tal Professor de Alquimia, reconhecendo um famoso escritor de romances místicos, aclamado nos círculo literários trouxas.
O homem caminhava sorridente e despreocupado, sendo saudado de tanto e tanto por alguns alunos que encontrava no caminho, parecendo ser apreciado por eles. Rony fez uma careta de confusão, pois não tinha idéia a quem se referiam. Como filho de bruxos, cresceu em um mundo alheio às celebridades aplaudidas entre aqueles que não tinham poderes mágicos.
- Desculpem o atraso. – Disse para os colegas professores. - Acabei me entretendo com um novo elixir que... Merlim, o que importa isso? - Ele sorriu mais amplamente e se voltou para eles. - Finalmente estou conhecendo o Trio Maravilha! É uma honra. – Apertou cordialmente as mãos dos recém-chegados, sendo apresentados a ele.
- Paulo, melhor não alugarmos os senhor Potter, e o senhor e a senhora Weasley com a nossa tietagem. – Xoloni ponderou. - Eles devem estar cansados da viagem e ansiosos para resolver a questão que os trouxe até aqui.
- Tem toda a razão. Vamos indo.
A sala do Diretor não tinha uma passagem secreta, nem gárgulas ou senhas mágicas; mas evidentemente se destacava do resto daquele nível por estar construída sobre as árvores mais altas dali. A construção era arredondada, com janelas que circundavam toda a parede, como em um farol. O telhado era cônico, mas de madeira, como tudo o que havia ali. Uma rampa dava acesso do chão ao topo, e ao longo do corrimão, flores cresciam. A flor de guaraná.
Lá dentro, havia outra diferença gritante entre Hogwarts e o Centro Rio Negro: a luminosidade. No castelo, mesmo durante o dia, a maioria dos cômodos precisava ser iluminada por tochas, velas ou um meio mágico. Ali, o sol e as amplas janelas garantiam luz a todos os cantos, como se dissessem que a magia não era algo que devesse ser escondido ou sobre o qual se ter vergonha.
- Então, os senhores querem saber a relação entre o Carvalho-Guardião e... A flor do guaraná? – Xoloni perguntou tão logo todos estavam acomodados.
- Sim, por favor. – Harry, apesar do cansaço, pôs-se imediatamente em alerta. – Além do fato de ambos serem plantas amazônicas e crescerem por todo o Centro Rio Negro, é claro.
Na correspondência que havia trocado com o diretor da escola brasileira anteriormente, ele pôde perceber a relutância em se falar sobre o assunto. Finalmente, depois de muito insistir, Xoloni lhe disse que, se viesse até o Centro, talvez pudesse saber mais.
- Sr. Potter... Realmente existe uma ligação entre estas duas plantas, mas não podemos lhes esclarecer sobre elas, porque não somos as pessoas a quem o segredo foi confiado. No entanto, pesquisamos muito para tentar encontrar uma outra conexão, qualquer uma...
- Espere! – Rony o interrompeu. – Desculpe, mas, o senhor disse “segredo confiado”?
- É uma longa história senhor Weasley. – A professora Florinda sorriu suavemente. – Mas se puderem nos dar mais informações sobre o que procuram...
- Não, não é possível. – Harry respondeu rapidamente, já desconfiando das razões do corpo docente do Centro ter insistido tanto para que viesse até ali. Voltou-se para o Diretor Xoloni, o tom de voz quase acusatório: – O senhor disse que vir até aqui poderia fazer a diferença.
- Sim... – O professor suspirou, resignado. – Se é assim como dizem, só nos resta uma alternativa, e não creio que irão obter êxito através dela.
Xoloni se levantou e estalou os dedos. Segundos depois, os ventos lá fora começaram a se agitar. Um redemoinho medindo não mais que um metro e meio de altura surgiu do nada e entrou. Como que esperando por isso e com expressão de uma tediosa impaciência, cada um dos professores segurou ou amparou um objeto (vasos, livros na estante) impedindo-o de cair.
Harry e Rony levantaram-se de um salto, as varinhas em punho, prontos para a briga. Quase que no mesmo instante, Hermione segurou-os pelo braço, sem nem mesmo erguer-se da cadeira:
- Calma, gente. É um saci. Li sobre isso em “Centro Rio Negro: 300 anos”.
- “Saci”? – Rony pronunciou a palavra com dificuldade, enquanto erguia uma sobrancelha, confuso.
Ambos não desgrudaram em nenhum momento o olhar do redemoinho, até que, em segundos, ele se desfez, revelando uma criaturinha diminuta, muito parecida com uma criança negra, com um gorro vermelho, dorso desnudo, calção também vermelho e uma perna só. Ele pulava naquela única perna, matreiro, parecendo muito satisfeito com o pequeno rebuliço causado. Pendendo de um dos cantos de sua boca, um cachimbo.
- São como os elfos-domésticos, senhor Weasley. – Xoloni esclareceu. – Quer dizer... – Ele franziu o cenho, desgostoso. – Não exatamente como os elfos, já que estes aqui evidentemente não gostam de ser mandados. Só o fazem porque alguém os prendeu em uma garrafa antes.
- Isso é escravidão. – Hermione declarou secamente. Harry não duvidava, pela fria indignação na voz da amiga, que ela sabia disso há muito tempo. – Aboliram a escravidão dos elfos-domésticos, mas mantêm a dos sacis.
- Pode estar certa quanto a isso, Sra. Weasley... – Xoloni assentiu. – Mas duvido que vá durar muito tempo mais, de qualquer forma. O Ministério brasileiro está pensando em parar de usá-los. Esses danadinhos causam mais confusão do que ajudam, como podem ver. – Ele indicou os professores, já retornando a suas antigas posições na sala. – Por enquanto, são usados apenas como mensageiros.
Xoloni falou alguma coisa para o saci, em uma língua que não era português, porque senão Harry teria entendido através do feitiço de tradução. Então, a criatura exibiu uma careta que evidentemente indicava o quanto receber ordens o irritava, sumindo em um novo redemoinho, quase não dando tempo para os professores brasileiros impedirem as coisas de caírem.
- Então, como eu ia dizendo, senhores... – O Diretor retomou a conversa, indicando as cadeiras que Rony e Harry haviam deixado, em um pedido mudo para que se sentassem novamente, ele mesmo voltando a sua cadeira. – A ligação entre o guaraná e o Carvalho-Guardião passa, necessariamente, por um segredo que não nos foi dado conhecer.
- Poderia ser um pouco mais um pouco mais específico? – Rony, já impaciente com tantas voltas, interrompeu-o.
- Não estaria se referindo ao fato de que a madeira do Carvalho-Guardião se regenera sempre, e por isso é impossível trabalhá-la... Exceto que se saiba o método? – Hemione, depois de dar uma cotovelada de repreensão no marido, chegou a inclinar-se para frente, impressionada com a possibilidade de vir a saber mais sobre o assunto. – Dizem que é um dos segredos mais bem guardados do Mundo Mágico.
- Exato. – A professora Florinda Silva concordou. – Nem eu mesma, que ministro Herbologia, desconheço esse método.
- Mas então quem...? – Harry não teve tempo de terminar a frase. Trazido pelo redemoinho do saci, um senhor muito idoso entrou na sala. Tinha os cabelos brancos e lisos cortados na altura da nuca. Na cabeça, um longo e alto ornamento feito de palha e penas. Não havia dúvidas: era um índio.
- Senhores... – Xoloni se levantou, respeitoso com a chegada do outro. – Quero que conheçam Antônio Sateré-Mawé, tuxaua (7) dos Saterá-Mawe que estão aqui. Os Saterá-Mawe... São os inventores da cultura do guaraná e... Artesões do carvalho-guardião.
Com certeza, aquele dia entraria para os mais frustrantes da vida de Harry.
Depois de várias horas tentando negociar com o líder indígena, os Sateré-Mawe tinham se recusado até mesmo a comentar se o desenho contido no medalhão de Ravenclaw (transposto para um pedaço de pergaminho) tinha algum significado especial. Tão-pouco obtiveram mais sucesso com a flecha encontrada em Avalon, exceto que reconheceram que era uma manufaturada por seu povo.
A idade do objeto? Quem poderia saber, já que a madeira se auto-regenerava?
Enquanto faziam o caminho de volta pelos corredores, o Diretor Xoloni pedia mil desculpas ao trio, mas não podia fazer nada a respeito da resistência dos Sateré-Mawe em revelar o segredo em torno da madeira da qual o Centro era feito. Havia séculos, quanto os bruxos do Brasil haviam se reunido para construir aquele lugar, os índios haviam concordado em ajudar, fazendo do Carvalho-Guardião o pilar que transformava a escola quase em uma verdadeira fortaleza.
A decisão acabara por se mostrar acertada, pois, ao tentar desvendar o segredo guardado pelos Saterá-Mawe, muitos bruxos arrasaram extensos campos onde originalmente cresciam estas árvores, e, infelizmente, as extinguiram nessas tentativas. O Centro Rio Negro era o único lugar que mantivera as árvores a salvo.
Se os professores brasileiros se mostravam ansiosos para ajudar o famoso trio de bruxos ingleses, os sateré-mawes não pareceram nem um pouco impressionados com o fato deles terem derrotado Voldemort, ou com a presença do “Eleito”. Essa foi a única ocasião, pelo que Harry se lembrava, de que não se importaria que o uso de seu nome influenciasse as decisões das pessoas.
Rony e Hermione ouviam o que seus anfitriões lhes falavam, ainda que de cabeça baixa e tão frustrados quanto ele. Harry, no entanto, caminhava distraído em seus pensamentos, imaginando o que poderia fazer que ainda não tivesse feito, quem sabe uma pequena pista... Se os índios não queriam falar, quem sabe os amigos e ele poderiam achar por si mesmos...
Ruídos altos como o farfalhar de tecidos despertaram Harry de seus pensamentos. O barulho era tão alto que pensou que as estruturas do Centro Rio Negro estavam se desfazendo. Pôs-se imediatamente pronto para pegar o maior número de pessoas que podia e escapar, quando a voz da professora Florinda ressoou, vinda daquelas flores que cresciam por toda a escola:
- Chuva da tarde chegando. Por favor, afastem-se dos corrimãos e parapeitos, e se preparem.
Harry, Rony e Hermione, confusos, voltaram-se para a professora, que acabara de colocar de volta a flor-microfone na respectiva árvore. Ela sorriu e abriu a boca para explicar o que estava acontecendo, mas os ramos e galhos das árvores começaram a crescer e se fechar em torno da estrutura do corredor, cobrindo-o e envolvendo-o. Antes que a folhagem se fechasse por completo e a escuridão os envolvesse, vários globos luminosos foram liberados de um ponto que Harry não conseguiu identificar, e deslizaram pelo teto do comprido corredor, cada um parando em um dos pequenos ocos esféricos que existiam a cada dois os três metros, no teto, e ali pararam.
- As árvores se fecham ao mínimo sinal de perigo ou... Chuva. – A professora brasileira finalmente falou. – O que ocorre todos os dias, ao final da tarde, com uma pontualidade de dar inveja aos britânicos. – Sorriu.
- Ah, me lembro de ter lido isso em... – Hermione começou a dizer,
- “Centro Rio Negro: 300 anos”, nós sabemos. – Rony e Harry disseram ao mesmo tempo.
A chuva não durou muito tempo. Tão rápido como começou, parou, e as árvores retrocederam, como se estivessem encolhendo – exatamente em um movimento contrário do crescimento que vira anteriormente. A luz natural voltou a penetrar nos corredores, e os globos de luz se recolheram novamente. Algo dizia a Harry que eles iriam voltar tão logo a escuridão da noite caísse sobre o Pico da Neblina.
- Incrível... – Ele murmurou.
- Senhor Potter... – O Professor de Alquimia se aproximou, com um envelope na mão. – Ouvi dizer que o senhor mantém contato com Severo Snape. Bem... Se não for muito incômodo, gostaria que entregasse esse convite para vir visitar nossa escola, assim que seja conveniente para ele.
- Snape? – Harry se surpreendeu. – Tem certeza que quer Severo Snape aqui?
- Claro! Os avanços dele no preparo da Poção Mata-Cão são muito conhecidos por aqui. Sentiríamos-nos honrados se ele nos visitasse.
- Puxa! – Foi o máximo que Harry conseguiu murmurar, enquanto o Professor de Alquimia se afastava.
O trio pernoitaria ali, de forma que resolveram conhecer melhor a escola brasileira. Enquanto Rony tentava dissuadir Hermione de assistir a duas palestras intituladas “Boto Rosa: Transfiguração Humana ou uma Nova Espécie de Criatura Mágica?” e “Porque os Pégasos Temem as Iaras: A Derrocada do Simbolismo Machista Frente à Força Feminina”; ele caminhou até um dos quiosques próximos e sentou-se, pensando no que iria fazer agora. Parecia que haviam chegado em outro beco sem saída, e a viagem não serviria para nada, afinal.
- Ssssssssss... Harry... Poterrrrr... – Ouviu um sibilar conhecido, algo que reconheceu imediatamente como a língua das cobras. – É uma honra rever meu ssssalvadorrrr... Ssssss.
Deslizando sobre o assoalho de madeira, Harry viu uma cobra enorme, mais ou menos cinco metros, de cor amarelada. Ficou imóvel, fitando perplexo o ser viperino, até que finalmente disse, hesitante e incrédulo:
- Você... É a cobra que vi no zoológico quando era criança?!? (8)
O animal assentiu com um movimento de cabeça. Então, a cobra havia conseguido voltar para casa!
Depois de alguns momentos, Harry percebeu a aproximação de alguém. Ergueu os olhos e viu um dos jovens aprendizes do ancião sateré-mawe.
- Meu tuxaua viu você falar com a cobra.
A declaração simples gelou-o. Olhou para a direção que o jovem índio indicava com a mão, e viu o líder indígena observando-o do nível imediatamente mais alto do que aquele em que estava. A situação não poderia ser pior. Sua capacidade de ofídioglota nunca tinha sido bem-vista, pois o ligava a Slytherin, Voldermort, e, de uma maneira geral, à Arte das Trevas. Desanimado, Harry viu suas últimas esperanças com o velho índio escoarem-se.
- Não é o que está pensando, eu... – Começou a explicar.
- Isso é bom. – O jovem o interrompeu. – Você é poderoso como um ywania-moi. Ele vai consultar o porantim para saber se é aquele a quem devemos compartilhar o segredo. Venha comigo.
Não havia ninguém com quem dividir o seu assombro além da jibóia, que fixara seu olhar vítreo nele. O animal fez um leve sinal de assentimento com a cabeça, indicando em seguida o jovem índio que saíra, incentivando a ir atrás dele.
Já estava seguindo o rapaz, quando encontrou Rony e Hermione no caminho.
- O que houve? – Hermione perguntou, preocupada, ela e Rony andando ao lado de Harry.
- Não sei. O que é um ywania-moi e um parantim?
Hermione o olhou, confusa, mas simplesmente disse, antes de sair:
- Vou descobrir.
Ele e Rony continuaram a seguir o rapaz índio até o nível superior, onde se encontrava o ancião. Chegando na entrada de uma das construções, o jovem fez um sinal para que esperassem lá fora, enquanto ele entrava. Não muito tempo depois, Hermione voltava, ofegante, com a Professora Florinda.
- Sr. Potter... – A brasileira também tinha dificuldades para respirar por causa da corrida até ali. – Ywania-moi é uma derivação de Moei significa “cobra” na língua deles, e é também uma designação de clã. O “clã das cobras” é de onde vêm os pajés dos Mawes... Ou melhor, Sateré-Mawes... “Sateré” é a designação para o clã dos líderes da tribo.
- Os ywania-moi são ofídioglotas? – Rony perguntou, mais olhando cautelosamente para Harry.
- Sim, é uma característica do clã.
O trio se fitou, comunicando-se silenciosamente.
- E o que é um parantim?
- É um objeto sagrado, uma peça de madeira com aproximadamente um metro e meio de altura, com desenhos geométricos em baixo relevo, recobertos com tinta branca. Lembra uma clava de guerra ou um remo trabalhado. Tem várias funções, entre elas a de servir como uma bola de cristal.
Harry engoliu em seco, sabendo que tinha que refazer rapidamente dois de seus conceitos que mais tinham sido arraigados em Hogwarts: que falar língua de cobra era ruim, e que consultar bolas de cristal era bobagem.
- Você pode entrar. – O rapaz índio tinha retornado. – Só você. – Acrescentou quando viu que Rony e Hermione o seguiam.
- Não tenho nada a esconder deles.
- Nós temos. – O índio disse sem qualquer traço de grosseria na voz, apenas dando a entender que eram cuidadosos com quem revelavam seus segredos.
Harry ouviu a voz do velho índio ressoando lá de dentro, dizendo algo a seu aprendiz. Após escutar atentamente, ele assentiu, deixando-os entrar. A professora Florinda disse que esperaria ali fora.
A primeira coisa que Harry sentiu quando entrou na habitação do velho líder, foi um cheiro marcantemente adocicado. Viu várias cuias onde uma pasta tinha sido amassada, e cujo suco era tomado pelos índios ali presentes.
- Guaraná. – Hermione sussurrou em seu ouvido.
O velho não olhou para eles. Estava extremamente concentrado no objeto que reconheceu como sendo o parantim descrito pela Professora Florinda. O tuxaua fixava o olhar nos símbolos entalhados no objeto de madeira, como se estivesse hipnotizado. Depois do que pareceu uma eternidade para Harry, ele levantou a cabeça, olhou-o no fundo de seus olhos, e disse:
- Algo lhe foi tirado, muito tempo atrás. Se conseguir recuperá-lo, terá provado que os espíritos o consideram dignos de conhecer nossos segredos.
- Senhor... Tantas coisas me foram tiradas! E meu tempo... Nosso tempo – acrescentou olhando para os amigos – Está se esgotando.
- Não, jovem. Ele só começou. Não se afobe, nada poderá ser feito sem recuperar o que perdeu, e então, quando os Tempos Novos chegarem novamente, terá outra chance. – O ancião se levantou, caminhando para os aposentos mais afastados, uma clara indicação que tinha dado a conversa por encerrada. – Então, voltaremos a conversar.
Harry achou melhor não discutir, apesar de seu interior se inquietar, protestando por mais respostas. Afinal, para quem achava que tudo estava perdido, tinha recebido muito. De qualquer forma, tinha que descobrir o que, diabos, era “Tempos Novos”...
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[Um mês depois. Outubro de 2007].
- Carlinhos, ele vai voltar! Lupin descobriu como!
Ana atravessara a sala de casa com a filha nos braços, radiante. Para variar, Carlinhos estava passando poção restauradora para queimaduras - desta vez as chamas de um dragão o tinham atingido no ombro. A esposa estava tão absorvida pela excitação, que desta vez não lhe lançou aquele olhar de “um dia estes dragões vão te matar”, que sempre fazia quando ele chegava em casa com algum ferimento provocado por seus “bichinhos”.
- O quê? Quem vai voltar?
- SIRIUS BLACK! – Ana exclamou como se estivesse falando de um famoso astro do rock. Abaixou a voz em seguida, porque Lizzy começou a fazer os costumeiros resmungos de bebê recém-nascido que não está gostando de tanta agitação. - Isso não é maravilhoso?
- Querida... – Carlinhos se aproximou e, depois que Ana ninou a filha até que ela voltasse a dormir, colocando-a na cestinha acolchoada, tocou a esposa nos ombros e falou como se estivesse diante de uma criança: - Nós já conversamos sobre isso, lembra? Black caiu no Véu da Morte, não há como ele retornar de lá. Sinto muito.
- Você nunca escuta o que eu digo? – Ana pôs as mãos na cintura, e despejou as informações de um fôlego só: – Eu disse que LUPIN achou um meio. Naquele livro pavoroso que ele, Hermione e Snape foram obrigados a traduzir e decifrar, o Livro de Fausto (3). – Ana arrepiou-se só de lembrar daqueles textos horríveis. – Pelo menos alguma coisa boa saiu de lá...
- Espere, espere! – Carlinhos a interrompeu, cada vez mais confuso. – Você sai de casa para se encontrar com minha mãe e outras mulheres, e volta dizendo que vão ressuscitar o Black? – Dava para notar o tom de “absurdo” na voz dele.
Ana respirou fundo e contou tudo do começo. (4) Como Lupin havia chamado sete mulheres, incluindo ela, para fazer parte de uma tentativa de resgate de Sirius Black, usando um dos rituais do Livro de Fausto.
- Mas Ana... Ele está morto! – O queixo de Carlinhos caiu. – Não dá para se “resgatar” alguém da morte.
- Aí é que está: ele não está realmente morto. Quando Sirius caiu por trás do Véu, ele estava bem vivo. Na realidade, ele está é preso lá dentro.
- O próprio Lupin afirmou que não havia como trazê-lo de volta. Ele disse com todas as letras que Sirius estava morto!
- Isso porque até então ninguém sabia desse ritual do livro, e... Bem, parece que tem algo relacionado com Serenna também.
- O que quer dizer?
- Não sei. Acho que Lupin não entrou em detalhes porque Serenna parece se sentir... “Desconfortável” com o assunto.
Carlinhos foi se recuperando da notícia e, quando pareceu que tinha pesado as informações, franziu o cenho e disse:
- Não acho uma boa idéia. Como você mesma disse, aquele livro era pavoroso. Como Lupin pode ter certeza que vai poder dominar corretamente os poderes envolvidos nesta... Neste... Ritual? É magia maligna, Ana, você sabe disso tão bem como eu. Não se pode confiar.
- Eu sei. Mas há uma força da qual não há magia das trevas que dê conta. Algo fundamental, que transforma a natureza das coisas. Lembra quando Voldemort não conseguiu possuir o corpo de Harry por muito tempo? Harry tinha um poder que ele desconhecia, e que não podia vencer. E pelo que entendi... Acho que é nesta parte que Serenna entra.
- Mas isso significaria que ela... Meu Deus, Ana, como poderia ser? Ela não o conheceu...
- Eu não sei. – Ana sorriu, também atordoada com a idéia, mas sabia que não se podia esperar muita racionalidade quando magia estava envolvida. – Só sei que há um caminho, e devemos tentar.
- Vocês vão ter que entrar no véu?
- Não, só a Serenna. Quer dizer... Ao menos fisicamente.
- Ana...
- Espere, deixe-me explicar. Segundo os estudiosos mágicos, existem quatro Universos, ou realidades paralelas. O primeiro deles, no qual nós passamos a maior parte do tempo, é este aqui, e que por isso mesmo costumamos chamá-lo de “Realidade”. Quando estamos despertos e conscientes, estamos nele. Os outros três, apesar de diferentes por diversos pontos, têm em comum uma coisa: se chega até eles através da inconsciência ou ainda do “não-existir”. O Mundo dos Sonhos, o Mundo da Vidência ou da Mente, e... o Mundo dos Mortos. Gina, com o Poder de Arádia, terá que nos separar de nossa própria consciência. O dia 31 de outubro é o mais adequado... Digo, “o único adequado”, porque “a Realidade”, e “O Outro Mundo” se aproximam mais. No entanto, o Mundo da Vidência pode nos desconectar, mas não ligar ao Mundo dos Mortos. É aí que eu entro – o poder dos sonhos é o canal que vai me permitir guiar Serenna e a manter ligada com o “lado de cá”. Na realidade, como pode ver, é até simples.
- Não sei, Ana. Você e minha irmã descobriram seus poderes muito recentemente, não tiveram tempo de aprender a dominá-los.
- Carlinhos... – Ela o tocou suavemente no braço, e em seguida olhou amorosamente para a filha, que dormia tranquilamente. – Se eu não tivesse segurança nos meus poderes, ou no das outras seis mulheres, não me arriscaria, pode ter certeza. Tenho muito que me prende aqui, para perder tudo com um ato impensado.
Ele abaixou os olhos enquanto uma luta interna parecia ser travada. Sabia o quanto Sirius Black significava para os membros da Ordem, especialmente para Harry. Também sabia a importância que dominar o seu dom de Mestra dos Sonhos tinha tido para Ana nos últimos meses, e o quanto o seu voto de confiança nos poderes dela significava. Ainda assim, como dominar o temor que algo lhe acontecesse, que viesse a perder a mulher que amava para sempre?
Na realidade, não havia o que escolher, Carlinhos bem o sabia. Era um Weasley, e em sua família nunca se colocava os próprios desejos na frente do bem estar dos outros, especialmente daqueles a quem se queria bem.
Que fosse. Iriam tentar salvar Sirius Black.
Serenna tinha sumido por trás do Véu pouco depois que as outras seis bruxas terminaram de entoar o feitiço: Ana, Tonks, Gina, Hermione, Molly e Minerva. E então, só restou o silêncio enorme sala do sombrio Véu da Morte.
As bruxas mantinham o círculo unido e aberto, enquanto os demais esperavam o tempo passar, também em um silêncio angustiado. Harry tinha até medo ter esperanças e que no final perdesse não só o padrinho naquele maldito Véu, mas também Serenna.
E, se seu padrinho retornasse, como ele estaria? Teria envelhecido? Estaria bem? Sua consciência estaria intacta? Queria reencontrar Sirius, apresentá-lo aos filhos, todo orgulhoso. Mas, acima de tudo, queria que ele ficasse bem. Há muito tempo que a imagem terrível de Sirius caindo lentamente em direção ao Véu o atormentava, ainda que o sentimento de culpa o tivesse abandonado muito antes que a guerra terminasse. Agora só queria... Só queria ele de volta. Ora bolas, iria cuidar dele, não importava como saísse de lá.
Se saísse.
- Eles estão saindo. Já consigo vê-los – Moody informou, chamando a atenção dos homens para o círculo logo abaixo.
Sentindo como se voltasse àquele instante terrível no seu quinto ano de escola, Harry viu o véu balançar, como se tocado por leve brisa. Desceu até o tablado onde ele estava colocado, aguardando, respiração suspensa, até que o inusitado aconteceu.
Como se tivesse acabado de entrar pelo outro lado, naquele exato momento e não há quase doze anos atrás, Sirius surgiu do meio do véu, terminando a queda que iniciara quando o feitiço de Bellatrix o atingiu.
Seu corpo foi atirado longe, fora do estrado, batendo ruidosamente no chão. Lupin juntou-se a Harry para acudi-lo e foi rápido em usar feitiços curativos e revitalizantes e, em poucos minutos, Sirius acordava.
O animago abriu os olhos, vagarosamente, acostumando-se com a luz e observando os rostos à sua volta. Reconheceu Lupin, viu os outros... Aqueles ruivos pareciam os filhos de Arthur e... o outro homem... olhos verdes e cicatriz na testa, só poderia ser:
- Harry! – Ele exclamou – Por um instante pensei ainda estar vendo seu pai ao meu lado.
- Meu... pai? – Harry indagou, atônito – Você estava com meu pai?
- Claro! Ele e Lilly estavam lá... Eles e... – ele fitou Lupin e exclamou – Remus, você não vai acreditar. Ela existe! A garota dos meus sonhos... ela é de verdade!
- Eu sei. – Lupin respondeu, com um sorriso. (6)
Tudo o que aconteceu em seguida foi muito rápido. Serenna jazia desacordada, com o irmão a segurá-la, desesperado, enquanto as mulheres se reuniam ao redor. Por um instante, pareceu que Snape e Sirius iriam se agredir, mas Ana conseguiu fazer Snape acalmar-se. Quando finalmente Moody e Hermione chamaram a atenção para o fato de que o ritual não estava completo, e que Sirius deveria realizar a parte final logo, o tempo já estava quase acabando.
O nascer do sol pareceu anunciar que tudo havia terminado bem, quando Serenna voltou a si. Respirando aliviados, todos voltaram as atenções para Sirius Black, que havia, de certa forma, “retornado dos mortos”. Havia tanto a ser explicado para ele, tantas coisas tinham acontecido naqueles doze anos de ausência...
A morte de Dumbledore. As horcruxes. A guerra. Os livros de J.K. Rowling! Mas isso poderia ser feito outra hora. No momento, tudo o que Harry queria era levar o padrinho para casa, e descansar.
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NOTAS
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(1) Não se assustem, logo terão mais explicações sobre isso.
(2) Harry Potter e o Retorno das Trevas, da Sally Owens.
(3) “Trouxas Sensitivos”, de Blenheim Stalk: este livro é citado em “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, em uma nota de rodapé. O livro teria sido publicado em 1972.
(4) Ler “Harry Potter e o Retorno das Trevas”, da Sally Owens, que se utiliza do enredo do poema “Fausto”, de Goethe. No poema, o Dr. Fausto, um cientista desiludido com o conhecimento de sua época, faz um pacto com o demônio Mefístoles. Sally Owens une, com uma habilidade empolgante, o universo potteriano com a tragédia de Fausto.
(5) Ler “Close To You”, da Regina McGonagall. Nesta fic – e na anterior a ela, “O Paciente Inglês” – o leitor descobre tudo sobre a irmã gêmea de Severo Snape, Serenna, e ainda a misteriosa ligação dela com Sirius Black.
(6) Trecho tirado de “Close To You”, da Regina McGonagall.
(7) – Tuxaua – O chefe do lugar, que toda aldeia possui. Ele é investido do poder de resolver brigas e conflitos internos, convocar reuniões, marcar festas e rituais, orientar as atividades agrícolas, mandar construir casas, etc. Cabe a ele também hospedar os visitantes, demonstrando sua generosidade e procedendo à função cerimonial de oferecer çapó - guaraná em bastão ralado na água, bebida cotidiana, ritual e religiosa, que é consumida em grandes quantidades.
(8) – Harry Potter e a Pedra Filosofal.
As jibóias podem viver até vinte e três anos. Existem duas espécies: a Boa constrictor constrictor, de cor amarelada, mais dócil, que vive na região amazônica e no nordeste; e a Boa constrictor amalis, de cor mais acizentada, e mais agressiva. Claro, a cobra que o Harry viu é uma “constrictor constrictor”.
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COMENTÁRIO
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Não tenho nem como me desculpar pela demora monumental, desta vez. Exceto, talvez, que eu me recusava a apresentar um texto feito de qualquer jeito para vocês. Ainda assim, se escapou alguma coisa, troquei ou confudi algo, por favor, perdoem-me. (É muita informação! Hehehe).
Não vou conseguir fazer a resposta individual dos comentários dessa vez, mas podem ter certeza que li todos com muito carinho e cada um deles significou muito para me estimular a continuar a escrever esta fic. Valeu gente! Beijão para todos vocês.
Bem, aí vão algumas informações complementares:
IBERABA (indígena) significa “O brilho da água”. Achei apropriado para o nome de um barco que navega capitaneado por uma bruxa chamada Janaína (Rainha do Mar), em um dos rios mais famosos da região amazônica.
Os pégasos são um “empréstimo” da mitologia grega, uma vez que eu tinha que pensar em um jeito de se viajar sem magia, mas ao mesmo tempo com “magia”, ou seja, dentro dos recursos bruxos. Daí eu pensei: “Ah, somos um país multicultural, onde importar é comum... Tem tanta coisa que foi “abrasileirada”... Porque não os pégasos?” Para quem não sabe, “Pégasos”, é o nome do cavalo com asas que nasceu do sangue da Medusa (sim, aquela mesma dos cabelos de cobra e que petrificava as pessoas só de olhar para elas), quando esta foi decapitada. Conta a lenda que ele “tinha o pêlo tão branco quanto a neve, e os olhos tão negros quanto o carvão”.
XOLONI (africano) significa “perdão”.
YANAMOTO (japonês) significa “base da montanha”, e HIDEKI (japonês), “árvore maravilhosa”.
Noventa por cento das informações sobre os Sateré-Mawe (ou Maué) são verdadeiras. Eles são os cultivadores originais do guaraná, que é uma bebida sagrada para eles (mais à frente pretendo falar sobre a Lenda do Guaraná). E eles são mesmo conhecidos por saberem guardar segredos muito bem. Até hoje, os produtores brancos do guaraná cobiçam o segredo de como os Saterá-Mawe cultivam o guaraná deles, que é de qualidade infinitamente superior.
Bem, por enquanto era isso... Até o próximo capítulo e... Espero que tenham gostado desse. Beijos!
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