Problemas de Memória
Julho de 2007.
Verão na Inglaterra, e férias escolares.
Os seis primeiros meses do ano de dois mil e sete foram vividos de forma singular para os personagens desta nossa história. Basta dizer que os fatos ocorridos neste período, cuja narrativa não cabe a mim, deixaram profundas marcas, e lembranças que nenhum deles gostaria de reavivar. (1)
“Pobre do meu filhinho”, pensava Ana, enquanto alisava carinhosamente o próprio ventre que, protuberante, denunciava os quase sete meses de gravidez. “Nem veio ao mundo e já teve que passar por tudo isso”. Liberando um suspiro, sussurrou bem baixinho:
- Já que esse negócio de ser herói parece ser a sina da família, mamãe vai explicar uma coisa para você, meu amor. Há algo sobre os vilões que você não pode esquecer. Por mais que a gente atire neles, lance-os em um precipício, pique-os em pedacinhos, exploda-os, ou que caiam em um tonel cheio de ácido sulfúrico... Os danados têm o mau hábito de achar um meio de voltar!
Ainda era cedo, mas, ao contrário dos dias anteriores, ela se sentira bem-disposta naquela manhã. Suas costas não estavam tão doloridas como costumavam estar, por causa do peso da barriga.
De pé, no meio de seu quarto, observou o marido, mergulhado no mais profundo dos sonos. O rosto relaxado o fazia parecer um menino.
Carlinhos passara os últimos dois meses acostumando-a mal com o café da manhã pronto assim que acordava, quando ele próprio não o trazia na cama para ela. No entanto, os dragões entraram em época de reprodução, o que significava trabalho triplicado na reserva em Gales. Ana revirou os olhos, resignada e divertida. Não havia mesmo como esperar que seu exausto marido tivesse a mesma disposição de antes: como dizia o ditado popular, “não há Mal que sempre dure, nem Bem que não se acabe”.
Aproximou-se da cama, verificando se o vidro com a poção restauradora contra queimaduras estava cheio. Quando lançou o olhar para o braço enfaixado do marido, torceu o nariz em um misto de preocupação e desagrado. Sabia que Carlinhos amava os dragões, e não se importava com essas coisas. E mais de uma vez os dragões haviam salvo a vida dela e daqueles a quem queria bem. No entanto, quando um acidente acontecia (o que não era raro) e ele voltava com alguma parte do corpo ferida... Aquilo a lembrava do perigo que ele corria todos os dias, e ficava divida entre o orgulho da coragem e força do marido e a vontade de pedir que, pelo amor de Deus, deixasse aquele emprego.
Suspirou novamente, agora tentando se acalmar. Os dragões não tinham culpa. Era o instinto deles. Pelo menos Galton, o “dragão de estimação” de Carlinhos, como ela o chamava para provocar, era jovem demais para entrar em época de reprodução. Além disso, não tinha o direito de ficar tão apreensiva. Ela também não trabalhava na coisa mais segura do mundo, embora estivesse se limitando à parte burocrática por causa da gravidez.
Acariciou levemente o rosto adormecido do marido, vendo com um sorriso ele resmungar alguma coisa sem, contudo, acordar. Com todo o cuidado, saiu do quarto e fechou a porta.
Lá embaixo, o relógio da cozinha lhe informava que tinha tempo de sobra para fazer o café. Lembrou-se de um comentário de Serenna sobre cozinhar do jeito antigo e resolveu matar a saudade da época em que tinha que usar somente as mãos para preparar uma refeição. Continuava com a sua incompatibilidade com o fogão, mas certamente conseguiria preparar algo simples.
Pôs a água para ferver, enquanto buscava o pó-de-café e os acessórios para coá-lo. Ao sentir o cheiro do pó, sentiu seu estômago revirando. Não porque estivesse tendo enjôos – essa parte da gravidez havia passado e, mesmo quando os tivera, foram poucos e bem fracos. Mas seu paladar para café, acostumado à qualidade do brasileiro, ressentia-se do gosto de terra que tinha aquela coisa que os ingleses “ousavam” chamar de café.
E para acompanhar... Pensou nos cafés da manhã na Toca e se pôs a preparar algumas salsichas, depois ovos fritos. “Bárbaros!”, diria tia Bianca, se visse isso. Comer frituras no café da manhã só podia ser coisa de bárbaros, na opinião dela. Na realidade, Ana também não tinha muito estômago para eles àquela hora do dia, mas isso não a impedia de devorar esse mesmo cardápio quando estava na Toca. Bem, hoje ficaria com o pão com manteiga, e deixaria as frituras para o marido – que os devoraria com o costumeiro apetite dos homens Weasley.
- Que cheiro gostoso... – Ouviu a voz de Carlinhos soar atrás de si, arrastada e enrolada por causa de um bocejo.
Ele a abraçou por trás, pousando a cabeça no ombro direito da esposa. Mesmo não podendo ver o rosto dele, sabia que estava com os olhos fechados, como se relutasse em acordar.
- Está cedo ainda. – Informou-o com um sorriso complacente. – Por que não volta para cama e descansa mais um pouco?
- Não – Ergueu a cabeça e a balançou energicamente, tentando afastar o sono de vez. Olhou para o fogão, lançando um olhar cobiçoso para as salsichas.
“Sempre se pode contar com o previsível – e constante – apetite dos homens Weasley”, Ana pensou, reprimindo uma risadinha.
- O que vai fazer hoje? – Ele sentou-se na mesa de quatro lugares que havia na cozinha.
- Estava pensando em comprar algumas coisas para o bebê. – Respondeu, colocando o cesto com o pão em cima da mesa. Era sábado e teria mais tempo para ir de loja em loja.
- Ótimo! – Os olhos dele se iluminaram, dissipando os últimos vestígios de sono. – Vou com você.
Ana o olhou seriamente, e franziu o cenho:
- Ah, não! Sei perfeitamente qual é a sua idéia de “coisas necessárias” para o bebê, ou seja, macacãozinhos do Chudley Cannons, e móbiles de Firebolts em miniatura.
- E não se esqueça de berços rosa... – Ele abriu um sorriso claramente provocativo.
- Carlos Weasley! – Ela parou e respirou fundo. – Meu filho não vai dormir em um berço rosa!
- Filha – Corrigiu, alargando o sorriso e exibindo a sua tão característica confiança. Aproveitando que Ana tinha se voltado para ele, segurou sua barriga protuberante, inclinando-se para ela. – Não ligue para a mamãe, princesa. Ela só é um pouco cabeça-dura, mas é legal.
- Eu sou...??? – Ana abriu a boca, começando a protestar. Essa era boa, a Teimosia em pessoa dizendo que “ela” era cabeça-dura!
O casal havia optado por não saber o sexo do bebê antes do nascimento. O problema era que Carlinhos tinha posto na cabeça que era uma menina e andava comprando coisas totalmente femininas para o filho de ambos.
Pensando bem, resolveu não impedi-lo de ir com ela porque, afinal, poderia usá-lo para o quê mais as mulheres procuram em um homem: carregar as suas compras.
- Você pode ir comigo, desde que me prometa que vai parar de comprar coisas de menina para o nosso filho...
- Filha – Ele insistiu sem levantar o rosto das salsichas que devorava, sorrindo quando ouviu Ana bufar.
- Pode me dizer por que, em nome de todos os santos, tem tanta certeza que é uma menina???
- Intuição de pai. – Respondeu, simplesmente.
Após alguns segundos sem que Carlinhos desse mostras de que iria considerar a condição anunciada pela esposa, ele finalmente olhou para a expressão firme de dela e acrescentou:
- Prometo que você vai inspecionar tudo o que eu comprar. Satisfeita?
Ela levantou uma sobrancelha, meditando o que poderia existir atrás das palavras. Afinal, ele não repetira a proposta dela, mas a reformulara em uma outra. Aí tinha.
- Eu vou inspecionar tudo “antes” de você comprar. – Contrapôs, estreitando os olhos como se estivesse negociando com um esperto empresário.
- Feito. – Carlinhos inclinou-se e beijou a bochecha dela, em sinal que o acordo estava selado. Depois de alguns segundos, mudou deliberadamente de assunto. – Alguma novidade quanto ao “caso Lipe”?
O “Caso Lipe” era como tinham apelidado a possibilidade do menino ir para Hogwarts.
- Não, mas deve se resolver ainda hoje. – Ela pegou uma fatia de pão e passou manteiga nela. - McGonagall tem uma reunião com o Conselho Escolar e quando sair de lá, já terá uma resposta. O ano letivo começou em fevereiro, no Brasil, mas como Felipe ainda não tinha onze anos...
- Mas ele prefere ir para Hogwarts, não é?
- Carlinhos... – Ana sorriu, complacente. – Todo mundo gostaria de ir para Hogwarts!
***
Hermione corria. A escuridão a envolvia e, no primeiro momento, a única coisa que estava em sua mente é que a perseguiam. E o terror que sentia de seus perseguidores era tão grande que não se permitiu questionar suas ações.
Correr. Eles não teriam misericórdia. Correr. Sentiu o chão de terra em seus pés. Não a deixariam falar. Se ao menos pudesse usar seus poderes para se defender... Não! Não poderia fazer isso. Correr, correr, correr.
A escuridão recuava o suficiente para que silhuetas de árvores fossem vistas. Eram fanáticos, ambiciosos ou ambos. “Quem?”, sentiu algo dentro dela gritar e reconheceu a si mesma, mas a reação tinha sido interna, como se sua consciência estivesse com esta pessoa que agora corria, que era ela, mas, ao mesmo tempo, não era.
Em reposta “ela” apenas aumentou a velocidade. A atenção de seu eu-alheio estava além dela mesma. “Eles” não hesitariam em tirar a vida de um ser humano, por mais indefeso que fosse.
A fuga alucinada durou muito tempo, até que o local onde tinha chegado lhe pareceu familiar.
Deu mais alguns passos e se viu diante de água. Muita água. Não se podia ver além de alguns metros por causa de um denso nevoeiro que encobria tudo. Mas Hermione sabia que era um lago e, apesar da aparência sombria do lugar, sentiu-se em casa.
Sons de cães. Ó, pela Deusa, os cães haviam achado seu rastro. Instintivamente, apertou mais o embrulho que tinha nos braços. O seu “eu-interno” não havia percebido que o carregava, mas, de repente, era como sempre soubesse. Olhou para seu pequeno fardo e viu o rosto de um bebê. No segundo seguinte, os cabelos negros se transformaram em ruivos e o rosto... Ó não! Era Sirius!
O desespero tomou conta de Hermione completamente. Tinha que salvar seu filho. Apressou-se para um dos barcos de madeira, depositando o filho nele. Já não tinha o rosto de Sirius, mas o do outro bebê moreno. Não importava: sabia que era seu filho, tinha que leva-lo para longe.
Ou o matariam.
Sentou-se no barco e remou com todas as suas forças. Os cães chegaram à margem. Não podiam mais seguir seu cheiro por causa da água, mas os cavaleiros que deviam estar vindo não demorariam a concluir que ela entrara na água e a seguiriam. Mesmo com o nevoeiro e não podendo enxergar nada. A menos que...
Ó, pela vida de um inocente... Somente mais uma vez, eu imploro! Dê-me o poder, Mãe!
Hermione acordou banhada em suor. Ainda podia sentir o coração batendo e a garganta apertada de tanta angústia. Com cuidado para não acordar o marido, foi até o quarto de Sirius. Precisava ver se ele estava bem.
Encontrou-o dormindo tranquilamente, a barriguinha para cima, o rosto virado para um lado. Sorriu, parecendo sonhar com algo feliz.
Ela finalmente relaxou. Ao levar às mãos a próprio rosto, percebeu que estivera chorando.
“Foi um sonho”, disse a si mesma. “Só um sonho ruim”.
***
A cidade de Cambridge é famosa pela história acadêmica e pela beleza de sua paisagem. No passado, o intenso comércio a enriqueceu a ponto de, no século XIII, assumir o papel de novo centro universitário. Por isso, nas épocas de férias ficava praticamente despovoada.
Os “colleges” recobertos de vegetação, alinhados ao longo do rio Cam, sempre tiraram o fôlego de quem os contemplava, mas Cambridge e seus arredores estavam especialmente atrativos naquele verão. Sorte para os Lupin, que moravam em um simpático chalé, um pouco afastado da cidade, quase nos limites com as depressões e os pântanos dos quais os mercadores do passado se desviavam para seguir em suas rotas de comércio.
Lá, eles tinham a visão privilegiada da cidade, com a vantagem de estarem cercados das árvores do bosque em vez dos extensos gramados verdes ou de prédios.
Remo Lupin sabia que a casa estava quieta demais. Nenhum som de Tonks quebrando ou tropeçando em algo, e nem de Hector aprontando alguma. Ele tinha se distraído por algumas horas com o objeto que estava estudando. Então, uma espécie de alarme interno tocou, dizendo-lhe que a vida na sua casa não podia ser tão silenciosa.
Estava prestes a verificar o que estava acontecendo quando o fogo se acendeu na lareira. As chamas se tornaram verdes. Segundos depois, a cabeça de um jovem moreno e de bochechas rechonchudas apareceu entre elas.
- Longbotton! Que bom te ver, meu rapaz!
Neville sorriu, ainda que encabulado, diante das boas-vindas de seu antigo professor. Remo Lupin ganhara sua estima desde o dia em que tratou de seu pior medo na infância – Snape - de forma tão sensível. Não é preciso explicar tal passagem para nós, os fãs, não é? Basta dizer isso: Bicho-papão Snape vestido como a senhora Longbotton.
Depois de ficar alguns meses no vazio das lembranças da Segunda Guerra Bruxa, Neville finalmente seguiu a carreira de Herbologista. Agora, o jovem ex-grifinório tinha praticamente uma vida de nômade. Seu entusiasmo pelo assunto o fazia viajar para os mais diferentes cantos do mundo, aprendendo tudo o que podia sobre as plantas mágicas. O difícil era mandar correspondência para ele, mesmo se considerando os meios de comunicação bruxos, uma vez que estava sempre indo de um lugar para o outro.
- Igualmente, professor! Desculpe aparecer assim na sua lareira – O rapaz pareceu ainda mais acanhado. - Mas é que somente hoje recebi a sua carta.
- Não tem problema, Neville. – Lupin assegurou. – Como estava a Lituânia?
- Fria – o outro respondeu sinceramente. – Em compensação, eles têm um trabalho bem desenvolvido com plantas de bosques mágicos... – Neville se interrompeu subitamente, percebendo que tinha sido uma pergunta educada, e Lupin não queria saber sobre as plantas anfíbias dos pequenos lagos lituanos. – Bem, eu estava analisando o desenho que me enviou e...
Lupin havia feito uma reprodução dos altos relevos que estavam medalhão que Ana tinha achado, meses atrás.
- E? – Incentivou o rapaz, em uma expectativa mal-contida.
- Embora as flores que servem de contorno para a gravura realmente dêem a impressão de serem orquídeas... E posso entender porque olhos destreinados chegariam a esta conclusão... – Ele enrubesceu. – Desculpe, professor...
- Não, tem razão, eu realmente não sou especialista. Você não disse nada de errado. – Lupin tranqüilizou-o, querendo que ele contasse logo o que tinha descoberto.
- Bom... – Neville limpou a garganta. – A verdade é que esta flor do desenho tem algumas diferenças definitivas em relação às orquídeas. Estas são flores nativas da Floresta Amazônica.
O ex-professor suspirou profundamente, como se sua última esperança tivesse ido embora.
Lupin havia vislumbrado uma possível interpretação dos símbolos gravados no objeto, caso fossem realmente orquídeas. No entanto, algo lhe dizia que não seria tão fácil assim. Tudo naquele medalhão era confuso, e não seriam as fontes costumeiras que lhe dariam as respostas.
- Era isso que eu temia... Mas simplesmente não faz sentido! – Falou em voz alta, mais para si mesmo do que para o rapaz. - Sentido nenhum!
- Sim... – Neville concordou timidamente. – Mesmo não entendendo do assunto, consigo ver que a combinação de símbolos é bem maluca. Mas não tenho dúvidas que a flor é amazônica. Passei muitos meses do meu período de colaboração com o Centro Rio Negro vendo essa mesma planta todos os dias.
- Conhece alguma história de passagem de povos celtas pelo lugar?
- Infelizmente não, professor. Não é minha área... – o rapaz ergueu os ombros. – No entanto, se quiser, eu posso entrar em contado com alguns dos professores do Centro Rio Negro.
Lupin agradeceu e aceitou a oferta. Despediu-se do ex-aluno e o convidou para jantar na casa deles, qualquer dia desses. Imaginava que, se Augusta Longbotton não havia mudado, isso queria dizer que o rapaz não esperaria muito para planejar a próxima viagem para bem longe da casa da avó.
Desde que Ana lhe entregara o medalhão, tivera uma sucessão de mais insucessos do que êxitos. Então, havia resolvido pedir a ajuda de Neville, cujo resultado ele tinha acabado de receber. Se não tivesse certeza da autenticidade do objeto, iria dizer que alguém resolvera fazer uma brincadeira juntando o emblema de Ravenclaw, símbolos celtas e plantas tropicais.
Mas o que o estudo daqueles símbolos celtas revelou o preocupava, e muito. Por isso não desistiu de decifrá-lo.
Em um dos lados do medalhão, primeiro plano, havia nós celtas representando uma garça. Lupin sabia que a garça era o símbolo da “Senhora do Lago”, mas também significava tanto mudança quanto punição por decepção. As bordas estavam recobertas com pequenos pentagramas unidos uns aos outros. Era uma clara referência à conexão entre extremos. O fundo da gravura era uma espiral no sentido anti-horário, representando o sol de verão.
Na outra face, o fundo era o oposto, ou seja, a espiral em sentido horário, o sol de inverno. Nas bordas, como uma moldura, havia folhas e flores, as mesmas que Neville disse serem de uma planta amazônica. E, é claro, o corvo. Estava um pouco modificado, evidentemente para imitar a posição da ave no emblema de Rowena Ravenclaw. No entanto, os nós que o representavam eram os mesmos.
Lupin sentiu um arrepio na espinha ao pensar no significado do corvo: a Deusa Morrigan. Deusa da guerra e... da morte.
Esperava que aquilo não fosse um aviso. Mas do pouco que sabia sobre a cultura celta – o que tinha restado dela -, acreditava que seus desejos não seriam atendidos.
“Por Merlim, o que eu estou fazendo com esta coisa em casa, então?”, a idéia o atingiu como um raio. Se fosse uma pessoa sozinha, como antes, então não teria problemas. Mas agora tinha Tonks e Hector. Nunca se perdoaria se acontecesse algo com eles.
Resolveu guardar o medalhão em uma gaveta com fechadura que tinha na escrivaninha de seu escritório, mas não encontrou a chave. Tonks havia limpado a sala e devia a ter posto em outro lugar. Mesmo exasperado, sorriu com a idéia. Só mesmo Tonks para por uma chave fora de sua fechadura.
Pôs o objeto na gaveta, mesmo assim. Iria ficar ali por pouco tempo, de qualquer forma. Agora, a primeira coisa a fazer era repassar o que descobrira.
Inclinando-se para a lareira, jogou um pouco de pó-de-Flu. Joelhou-se e pôs a cabeça dentro dela.
- Olá, Harry. – Disse, tentando por na voz uma entonação despreocupada que estava longe de sentir. – Acho que não tenho boas notícias...
***
Hector sabia que tinha sido exatamente assim que as coisas começaram no ano anterior. Tinha ouvido uma conversa que não deveria ouvir e simplesmente não conseguiu evitar meter-se onde não era chamado.
Sua mãe e ele estavam na parte dos fundos da casa, desgnomizando o quintal. Bem, pelo menos tinham tentando. Aquelas criaturinhas eram atraídas por lugares com árvores e plantas mágicas, por isso sempre apareciam nos quintais e jardins dos bruxos. Como nem Lupin ou Tonks fosse do tipo de ser lembrar de podar o jardim... Bem, as plantas mágicas tinham crescido e se espalhado pelo quintal todo, o que atraíra uma quantidade enorme de gnomos.
Essa era a razão do silêncio de ambos naquela manhã.
A princípio, ele e a mãe haviam acreditado que dariam conta sozinhos. Os pestinhas estavam muito bem escondidos entre as folhas e as pedras, e os bruxos não perceberam que eram tantos. Mas foi só começarem a caçá-los e centenas de corpinhos minúsculos com cabeças grandes e carecas começaram a correr de um canto para o outro.
Tonks tentou ao máximo não pedir ajuda ao marido. Tinha certeza que iria ouvir um sermão sobre a manutenção da casa – e ela seria obrigada a lembrá-lo que não era a única a se esquecer da desgnominização, é claro. Mas, quando o quintal ganhou a aparência de um formigueiro fervilhando por causa da agitação dos gnomos, foi obrigada a reconhecer que Hector e ela não dariam conta.
Mandou Hector chamar o pai, enquanto ela impedia que as criaturinhas, em sua corrida para escapar, procurassem abrigo dentro de casa. Quando o garoto entrou e encontrou o pai conversando baixinho com Harry pela lareira, com aquela expressão cansada no rosto, teve certeza que “tinha” que ouvir.
Sua mãe havia contado que antes de conhecê-la o pai vivia com aquela mesma expressão. Era o rosto da solidão, dizia Tonks. Quando alguém estava tão sozinho e desesperado que era difícil achar motivos para sorrir. Hector tinha visto o pai daquele jeito poucas vezes na vida, e não gostava quando isso acontecia.
Ouviu a conversa com espanto crescente. Ainda estava meio atordoado com tantas informações detalhadas quando Lupin se despediu do ex-aluno e fez menção de voltar em direção do corredor, onde Hector estava escondido. O garoto acordou com o susto de ser pego escutando conversa alheia, e, retrocedendo alguns passos, fingiu que estava acabando de chegar.
O pai estranhou seu jeito assustadiço e perguntou o que estava acontecendo. Mas, é claro, Hector tinha na “Revolta dos Gnomos”, recém-iniciada no quintal, uma boa desculpa para a sua cara de culpa. Lupin sorriu ao ouvir a história, parecendo remoçar uns dez anos.
Fingindo que iria procurar seu gato, Ferdinando, para ajudar a caçar os gnomos, deixou o pai ir na frente. Não perdeu tempo em entrar no escritório para procurar o tal medalhão. Tinha ouvido-o comentar com Harry que o objeto estava guardado lá.
Na visão de Hector, seu pai tinha pouquíssimos defeitos. Mas um deles era ser previsível. Ele sempre guardava as coisas que não queria que o filho pusesse as mãos em uma gaveta da escrivaninha. Gaveta essa que ele sabia que estava sem chaves, porque Ferdinando a tinha engolido no dia anterior. Não quis entregar o bichano, então, estava esperando para... Bem, reaver a chave assim que o gato a “digerisse”.
Pegou o medalhão e observou os estranhos desenhos. Tinha que ter uma cópia deles! Mas como?
Então, lembrou-se de uma vez que Mel havia pego um pedaço de papel e, com um lápis, começou a riscar por cima dele para copiar o desenho que estava gravado em uma das pedras do relógio de sol. Quando perguntou por que estava fazendo aquilo, ela disse que iria manda para o irmão: “Este é o exato local onde a cabeça de Draco Malfoy bateu, quando recebeu um soco de Hermione Granger, em 1993!”, ela dissera, com um sorriso.
Resolveu fazer o mesmo. Pegou papel e lápis da escrivaninha do pai, e fez duas cópias dos dois lados do medalhão. Uma, ficaria com ele. A outra, ele enviaria para Andy. Com certeza, o amigo iria ajudá-lo a tentar descobrir mais coisas. Afinal, foi graças a Andrew que descobriram grande parte das coisas sobre o espião em Hogwarts, no ano anterior.
***
Ana e Carlinhos haviam percorrido várias das lojas do Beco Diagonal, buscando coisas para o bebê. Tinham demorado mais do que o necessário porque frequentemente ficavam “babando” enquanto observavam uma roupinha, um brinquedo ou toalha, imaginando seu bebê os usando.
Não demorou muito para ela descobrir o que seu marido tramava quando fez aquela promessa, ainda em casa:
- O que acha desse travesseirinho, querida? – Mostrou um cuja fronha exibia magicamente corações batendo, alegres margaridas girando e borboletas batendo asas. Tudo sob um fundo lilás.
- Não – Ela foi categórica.
Carlinhos não alterou o bom-humor, como se não tivesse ouvido a negativa da esposa. Continuou olhando para o pequeno travesseiro com ar de adoração e disse à vendedora que iria levar. Quando Ana lhe lançou um olhar de incredulidade, limitou-se a dizer:
- Eu prometi que iria te mostrar tudo antes de comprar. Não que não iria comprar se você não aprovasse.
Bufou. Se era guerra que ele queria, guerra era o que ele iria ter. Tivera toda uma conversa com Gina e Hermione sobre como funcionava a mente de um Weasley, e ela acreditava saber uma ou duas coisinhas para lidar com a teimosia do marido.
À medida que a manhã foi passando, Ana podia dizer que havia conseguido manobrar as coisas de modo que a maioria dos itens fosse “neutro”. Alguns itens cheios de lacinhos tinham escapado, mas era de se esperar, tendo um marido tão obstinado. Era uma mulher compreensiva, e sabia que tinha que respeitar individualidade e as opiniões de seu esposo.
Mais tarde tiraria os lacinhos, é claro.
Finalmente, o item de maior polêmica: o berço.
Mal entraram na loja, depararam-se com uma figura há muito tempo desaparecida em suas vidas:
- Carlinhos! – A voz enjoativa de Felícia Althorp se fez ouvir às suas costas.
Carlinhos se virou para cumprimentá-la, mas Ana precisou de mais alguns segundos para respirar fundo e reunir paciência. “Lembre-se, você é uma dama”, repetiu para si mesma.
- Eu tenho novidades: - Felícia anunciou. - Vou me instalar definitivamente em Londres! Não é ótimo?
- Er... – Carlinhos ficou sem fala por alguns instantes. – Nós também temos novidades, não é, meu amor? – Ele se dirigiu a Ana, puxando-a para seu lado.
Só então Felícia se deu conta da presença de Ana. Aliás, ela “nunca” percebia a presença da esposa de Carlinhos, como se ela não fosse coisa valiosa o suficiente para ser notada.
- Advinha – Ele disse ao mesmo tempo em que Felícia descia o olhar, com horror, para o ventre protuberante de Ana. – Estamos grávidos!
O evidente tom de orgulho na voz de Carlinhos deve ter feito mal à Felícia, porque ela ficou subitamente pálida.
- Posso ajudá-los? – Um dos vendedores se aproximou.
Carlinhos começou a explicar ao homem que estavam procurando um berço e o vendedor pediu que o acompanhassem até o outro lado da loja. Pedindo licença, o tratador de dragões se despediu de Felícia, dando-lhe as costas. Ana ia segui-lo quando sentiu que a outra lhe segurava o braço.
- Fez isso de propósito. – Felícia disse entre os dentes, de modo que não pudessem ser ouvidas pelos dois homens que se afastavam, sem perceber que Ana não os seguia. – Engravidou para prendê-lo a você.
Sentiu o bebê chutar fortemente em seu ventre. Seu filho devia estar dizendo que não gostava daquela mulher. Se fosse isso, não podia culpá-lo: ela mesma daria um pontapé naquela loira, se pudesse.
- A única coisa que nos prende um ao outro é o imenso amor que sentimos. – Aproximou o rosto e estreitou os olhos perigosamente. - Não quero e nem preciso forçar um homem a ficar comigo. Não julgue o resto da humanidade por você.
Libertou seu braço com brusquidão e seguiu para o canto da loja onde estavam os berços. Apressou-se e tentou fingir que nada havia acontecido, mas Carlinhos percebeu que ela não o seguira imediatamente. Daí para concluir que tivera um desentendimento com Felícia foi fácil.
O marido sorriu e a puxou para si carinhosamente, murmurando em seu ouvido: “Aposto que acabou com ela!”. Depois dessa, Ana teve que rir.
O vendedor que os havia atendido apareceu com um berço flutuante atrás de si, comentando esse era exatamente como Carlinhos havia pedido. Ao ver o móvel, ela não conseguiu disfarçar uma exclamação entre desgostosa e divertida.
- O que foi? – Carlinhos defendeu-se. – Não é rosa. É colorido.
Realmente, não era só rosa. O berço tinha tonalidades de rosa, azul, lilás e verde-água, em uma combinação que fazia o móvel parecer ter saído de um dos filmes da “Barbie”.
- Teria um berço todo branco, por favor? – Perguntou ao vendedor simpaticamente, ignorando os resmungos do marido sobre os gostos trouxas que ela insistia em ter.
***
Rampell já estava no apartamento deles quando voltaram. O velho elfo doméstico explicara muito animadamente que sua mestra o havia mandado, porque “jovem mestra Ana vai ter um bebê em breve e não pode se cansar”. E, sempre que Rampell era mandado para lá, Ana nunca conseguia manda-lo embora sem temer que o elfo se desmanchasse em lágrimas.
Teria que ter uma conversa séria com a tia-avó mais tarde. Desse jeito, iria acabar sendo expulsa da F.A.L.E.
A campainha tocou.
- Deve ser a Serenna. – Ana disse, indo abrir a porta. – Combinei de ela vir almoçar aqui, com os filhos.
- Oh – Carlinhos não conteve uma exclamação de desgosto, ainda que tenha tentado disfarçar. – Snape também vem?
Ana lançou um olhar carrancudo para o marido, mas sabia que as reações das pessoas à Severo Snape haviam feito um progresso e tanto, por isso resolveu não exigir demais.
- Não. Parece que Snape queria mostrar algum lugar relacionado à família deles ao Alan. Os dois foram viajar e só voltarão na segunda-feira.
Ninguém que Ana conhecia e que soubesse quem Severo Snape era – sendo trouxa ou bruxo -, aceitava com tranqüilidade aquela história do Snape ter achado uma irmã-gêmea perdida no Brasil. (2)
Mas era verdade. Ela mesma havia comprovado a veracidade dos fatos. E tinha ido várias vezes ajudar a irmã-gêmea de Snape – e agora sua amiga - a encaminhar as questões legais de sua mudança para a Inglaterra.
A moça havia sido criada como uma trouxa por uma família brasileira. E, como Sarah Laurent – o nome que recebera deles – crescera cercada de amor, mas sem conhecer sua origem trouxa.
Serenna tinha adotado duas crianças, também brasileiras. Aline e Léo eram muito inteligentes e seus comentários sobre o “tio” sempre a divertiram. Ana ousava dizer que, além da própria Serenna, eles eram os únicos capazes de dizer qualquer coisa a Snape sem temer um Avada. Claro, havia Alan, mas nunca tinha visto o menino provocar o pai adotivo, então não sabia como o velho professor de Poções agiria.
Ana abriu a porta com a certeza de que veria Serenna e seus filhos do outro lado. Enganou-se.
- Surpresa! – Luíza exclamou sem-jeito, ao notar o espanto da amiga.
De repente, para Luíza, surgir sem ser avisada não era mais uma boa idéia. Devia ter dado um jeito de avisar Ana antes de deixar o hotel. Como, ela não sabia, já que ninguém sabia o número de telefone dela.
Segundos depois de a amiga abrir a porta, já estava pensando em um jeito de se desculpar, mas o inacreditável aconteceu: um estranho animal de orelhas pontudas e olhos esbugalhados apareceu na sala, cantarolando, com mil panelas e travessas fumegantes flutuando atrás de si. Ouviu um grito estrangulado e percebeu que ele havia saído de sua própria garganta.
Ana lançou um olhar por sobre os ombros e compreendeu o quê tinha assustado Luíza. Merlim! Rampell era um elfo doméstico acostumado a não se esconder. Possivelmente a velhice também contribuía para que ele ficasse descuidado.
- Lú! – Pálida, Ana sorriu como se nada tivesse acontecido e, abraçando a amiga, puxou-a para dentro, fechando a porta atrás de si. Tinha que agir rápido. – Quanto tempo!
Carlinhos pôs-se de pé, em alerta, seu rosto passando de Ana para a outra brasileira com preocupação.
- O q-que é... era... – Luíza gaguejava, enquanto o elfo murmurava um “ops!” e desaparecia.
- Um elfo doméstico. – Ana respondeu, dizendo em seguida: - Desculpe, Lú, tenho que fazer isso...
- Isso o quê? – A voz de Luíza saiu entrecortada, enquanto ainda olhava horrorizada o lugar onde Rampell havia estado.
- Isso – Pegou a varinha e apontou para ela. – “Obliviate!”
Um raio de luz brilhante saiu da ponta da varinha de Ana, indo chocar-se contra Luíza. A Auror escondeu rapidamente o objeto mágico, enquanto esperava a amiga se recuperar. Mas Luíza recuou até a parede, em um típico movimento de medo:
- O que você fez? – Ela olhava de Ana para Carlinhos, apavorada. – O que isso tudo significa?
Ana não podia acreditar. O feitiço de memória não tinha funcionado!
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(N/A): Sem grandes comentários dessa vez, mas tenho certeza que muito de vocês já devem ter entendido onde quero chegar. Aqueles que já leram um certo livro ou então um certo filme... Bem, bem. Ainda haverá mais pistas.
Em breve vou postar lá no Espaço MSN dicas, para quem ainda não descobriu.
Agora o “pano de fundo” foi estendido e a fic vai parecer mais “potteriana”. Ou seja, a fase “zen” passou.
Beijos para todos vocês, e espero que estejam aproveitando o verão!
Agradecimentos especiais à Sally Owens, Srtáh Míííhh, Gina W. Potter, Ana Carol Murta, Grazy DSM, Natthy, Lívia Cavalheiro, Regina McGonagall, Trinity Skywalker, Kika e Lince Negra.
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Notas
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(1) Harry Potter e o Retorno das Trevas, da Sally Owens.
(2) O Paciente Inglês, da Regina McGonagall.
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