Divagações e Despedidas



Era mais um dia chuvoso na rua dos Alfeneiros. De uma das janelas do segundo andar do sobrado de número quatro, vislumbrava-se o vulto de um jovem a olhar insistentemente para o céu escuro. Na verdade, o rapaz podia estar ali fisicamente, mas era nítido que seus pensamentos direcionavam-se para outro lugar.

Harry Potter estava pensativo naquela manhã sombria. Aliás, como em todos os outros dias da semana, no último mês, desde que voltara para a casa dos Dursley. Ultimamente, passava grande parte do dia trancado em seu quarto, pensando. No passado e, principalmente, em seu futuro.

Neste momento, especificamente, lembrava da primeira vez que recebera uma carta. Fora uma das coisas mais emocionantes que lhe haviam acontecido. A carta tinha sido entregue por Hagrid e comunicava que ele tinha uma vaga na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts!

Nesta ocasião, Harry descobriu que era um bruxo. Mas não tinha a menor idéia o quão era famoso no mundo mágico e como sua vida mudaria a partir daquele momento.

Ali parado, olhando a chuva a tamborilar na janela de seu quarto, todo o sofrimento pelo qual havia passado deste então retornava à sua mente e o garoto desejava ardentemente que nada daquilo tivesse acontecido.

Ao pensar na morte de seus pais, no ataque de Voldemort - que havia lhe dado a famosa cicatriz em forma de raio, no assassinato de Cedrico, de Sirius e de Dumbledore, na covardia de Severo Snape e de Draco Malfoy, queria não ter recebido aquela carta.

Nunca imaginou que sua vida pudesse ficar pior do que estava. Tudo bem, quando morava com tia Petúnia e tio Valter era tratado como um lixo e vivia das sobras daquilo que pertencia a Duda, seu primo idiota, mas pelo menos nunca precisou presenciar a morte de pessoas queridas. Nem vivia à sombra de uma tarefa da qual não tinha como fugir.

Harry sabia o que tinha que fazer. Na verdade, desde que descobrira que Voldemort fora o responsável pela morte de seus pais, sabia que teria que ir atrás dele. Mas agora isso era real, o confronto estava próximo e mesmo contando com o apoio da Ordem da Fênix, de Rony e de Hermione, era ele quem tinha que matar Voldemort e estaria sozinho quando a batalha final acontecesse.

E o faria não por causa da profecia que dizia que “nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver”. Ele tinha compreendido que não era essa profecia que determinava seu destino. Ele iria atrás de Voldemort por que tinha que ir, por que queria ir. Por que era o único que poderia parar o pior bruxo das trevas já nascido, acabando com seu reinado de terror, morte e sofrimento.

No entanto, tinha medo; não de morrer pois isso era uma das conseqüências de sua decisão, mas de perder as pessoas que amava. Tinha medo de que algo acontecesse a Rony, Hermione ou Gina. Subitamente seu coração deu um pulo. Gina. Não suportaria se algo acontecesse a ela. Nunca se perdoaria se Voldemort a usasse para se aproximar dele novamente. Isso já havia acontecido uma vez e ele não podia permitir que acontecesse de novo.

Por isso teve que se separar dela. Foi uma das decisões mais difíceis que já tomara em sua jovem vida. Mas não tinha escolha. Só esperava que, caso sobrevivesse à guerra, ela o perdoasse e o aceitasse de volta.

***

A chuva continuava caindo de forma torrencial quando Harry, ainda olhando pela janela, reparou numa figura grotesca a observa-lo. Reconheceu de imediato o ex-professor de Defesa Contra as Artes das Trevas, ex-auror do Ministério da Magia e atual membro da Ordem da Fênix, Olho-Tonto Moody, e ficou imaginando o que raios ele fazia ali parado, do outro lado da rua, debaixo de tanta chuva.

Desceu correndo as escadas da casa, ignorando os gritos do tio Válter acerca do barulho, e saiu para encontrar-se com o amigo.

- Professor, o que faz aqui? – perguntou Harry, tentando proteger seus óculos dos grossos pingos de chuva.

- Viemos buscá-lo Harry. Queremos você na sede da Ordem da Fênix. – disse o professor parecendo muito à vontade com as roupas completamente encharcadas.

- Viemos? Quem? Só estou vendo o senhor. Aconteceu alguma coisa?

- Não se preocupe, está tudo bem. Estamos todos bem. Shacklebolt, Tonks e Lupin estão escondidos nas imediações, dando cobertura. Temos que ser cuidadosos. Na verdade, achamos que você precisa ser treinado para, você sabe, estar preparado para seu encontro com Você-Sabe-Quem.


- Entendo. Bem, acho melhor sairmos da chuva professor. Vamos pegar um resfriado!!!

- Seus tios não vão gostar nenhum um pouco de me ter em sua casa – falou, sorrindo, Olho-Tonto Moody.

- Eu não me importo. De qualquer forma, acho que nunca mais vou vê-los mesmo, então não estou nem aí se vão gostar ou não. – Harry fez um gesto significativo com os ombros.

Caminharam em direção à casa dos Dursdley e Harry subiu as escadas rapidamente para arrumar suas coisas, enquanto o professor o aguardava no hall de entrada. Quando desceu, Harry reparou que Duda estava escondido atrás do sofá da sala e que tia Petúnia, que estava parada, catatônica, à porta da cozinha, tinha uma faca na mão e uma expressão de absoluto terror no rosto. Tio Valter, por sua vez, permanecia estático em frente a Olho-Tonto Moody e parecia à beira de um ataque apopléctico.

Harry não pode deixar de sorrir diante daquela cena surreal. Mas também sentiu uma pontada de tristeza ao constatar que iria partir daquela casa, para nunca mais voltar. Bem ou mal, aquele tinha sido seu lar por 17 anos e, apesar de nunca ter se comportado como tal, tia Petúnia era sua parente mais próxima.

Pensou em como as coisas teriam sido diferentes se ela tivesse lhe dado um pouco de carinho ou de compreensão, em como teria sido sua vida se tivesse crescido em uma família comum.

Mas de repente Harry percebeu que isso nunca poderia ter acontecido. Ele não era uma pessoa comum. Ele era um bruxo, assim como seus pais, e isso estava em seu sangue. Jamais poderia ser feliz em outro ambiente, nunca se sentiria completo e adaptado, pois aquele não era o seu mundo.

Mas, de certa forma, entendia o motivo que levava seus tios a terem tanta aversão ao mundo mágico. O próprio Harry começava a acreditar que ser bruxo não era tão bacana e emocionante quanto achava antigamente. Não podia, depois de tudo o que vinha acontecendo com ele, desde que se descobrira bruxo. Isso aplacou, um pouco, a amargura e a revolta em seu coração contra os tios.

- Tia Petúnia, tio Valter, estou indo embora... Para sempre. – disse Harry encarando a tia.

- Como assim “Para Sempre”? – perguntou a tia com uma expressão que pareceu ao garoto, surpreendentemente, de tristeza.

- É simples. Estou saindo desta casa. Vou completar 17 anos daqui a duas semanas e, no mundo bruxo, isso representa a maioridade. Assim, vou cuidar da minha vida e livrá-los da minha presença que, aliás, nunca foi muito agradável para vocês – disse Harry, num tom de ressentimento.

- Harry, não fale deste jeito. O que esse, humm, senhor, vai pensar? – disse tio Valter, tentando acabar com o clima desagradável que o comentário de Harry criou.

- Tá certo, querido titio. Então quer dizer que vamos fingir que vocês sempre me amaram, que me trataram como um filho durante todos esses anos e que vão sentir profundamente a minha falta de agora em diante? – o tom de Harry agora beirava o sarcasmo.

- Não seja mal educado moleque – disse o tio encarando-o como se ele fosse um doente contagioso. – Depois de tudo o que fizemos por você, podia demonstrar um pouquinho de gratidão....

- Ahhhh sim... Realmente vocês fizeram muiiiiita coisa por mim mesmo...... Nunca fui tão feliz e me senti tão amado quanto no tempo em que dormia no quarto debaixo da escada, usando as roupas velhas e rasgadas do Duda e sendo espancado por esse filhote de mamute que vocês chamam de filho. – disse Harry parecendo que ia partir para a agressão física.

- Calma Harry. Essa discussão não vai levar a lugar nenhum. – falou Olho-Tonto Moody, segurando o garoto pela gola da jaqueta.

- E você, sua aberração, quem é? O que faz na minha casa? – tio Valter perguntou ao professor de forma muito deselegante.

- Olha aqui, seu ignorante, não utilize essas palavras grosseiras na frente do garoto ou eu.... – respondeu Moody já levando a mão ao bolso de seu casaco, ameaçando sacar sua varinha.

- Eu uso as palavras que quiser pois estou na minha casa – berrou tio Valter – O que você vai fazer? Me transformar em um macaco? Ou em uma planta? É só isso o que gente da sua laia sabe fazer é? Não sabem discutir civilizadamente? Tem sempre que recorrer a esses truques baixos de enfeitiçar as pessoas?

- Discutir civilizadamente? Você só pode estar brincando! Desde quando é civilizado tratar uma pessoa como vocês trataram o garoto a vida toda? – argumentou o bruxo.

Tia Petúnia, que ainda mantinha a faca em riste, estava com os olhos fixos em Harry com uma expressão que o garoto não soube definir. De repente, alheia à discussão entre os dois homens, puxou o menino pela mão.

- Venha Harry, precisamos conversar. – e, voltando-se para Olho-Tonto e tio Valter disse: - Vocês dois, não nos interrompam e, por favor, não estraguem os móveis com feitiçaria ou, pior ainda, com uma luta corporal.

***

Harry estava perplexo diante da atitude de tia Petúnia. Ela parecia anormalmente calada desde o momento em que o sobrinho tinha dito que iria embora para sempre. Agora, ali na cozinha, andava de um lado ao outro, segurando um envelope em uma das mãos e um objeto de metal na outra.

- Harry, eu sei que não fui uma tia muito amorosa e carinhosa durante todos esses anos... – começou tia Petúnia.

- Muito? Na verdade, a senhora não foi nada amorosa comigo. – falou Harry rispidamente.

- Eu sei. Mas é que eu nunca quis me apegar a você. Sempre detestei essa história de feitiçaria, o mundo de sua mãe, de seu pai e agora o seu mundo também. Acho que descontei em você minha raiva, minha mágoa... Bom, não posso apagar o que fiz, ou deixei de fazer, todos esses anos. Gostaria, mas não posso. Mas, pelo menos agora, posso fazer algo, tenho uma coisa para te entregar, uma coisa que pertenceu à sua mãe.

- Uma coisa? Que pertenceu à minha mãe? – Harry fitou o rosto da tia, ansioso.

- Exatamente. Eu recebi essa carta, após a morte de seus pais – e mostrou ao garoto um envelope grosso – Foi mandada por um certo Sr. Black – Harry acenou a cabeça, demonstrando à tia que sabia quem era – Na verdade, não era propriamente uma carta e sim um bilhete com um medalhão de metal. Esse aqui. – disse a tia, entregando-lhe o objeto.

Harry não podia acreditar, era um medalhão de bronze, praticamente do tamanho da palma de sua mão e, no centro do objeto, uma delicada imagem do rosto de sua mãe em relevo. O garoto ficou extremamente emocionado. Nunca tivera nada tão pessoal relacionado à mãe. Vieram-lhe lágrimas aos olhos.

- Eu guardei esse medalhão durante todos esses anos. Era a única lembrança que eu tinha dela. Não queria me desfazer disso,nem dá-lo a você. Achei que havia tempo, que um dia você entenderia que era bobagem essa coisa de bruxo e, quem sabe, poderíamos nos entender. Mas, agora você vai embora e sinto que é meu dever dá-lo a você. É justo que fique com ele, afinal, ela era a sua mãe.

O garoto encarou tia Petúnia, percebendo que ela olhava-o fixamente, com uma expressão que jamais pensou que veria em seus olhos, de carinho. De repente, sem dizer uma palavra, ajoelhou-se à sua frente e envolveu-o nos braços, chorando copiosamente.

E então, pela primeira vez na vida, Harry sentiu que aquele abraço era o mais próximo que jamais estaria de sua mãe. E também chorou, pois, de uma certa forma, esperou por aquela demonstração de afeto a vida inteira e ela somente apareceu no momento em que se preparava para nunca mais voltar, mas não retribuiu o abraço da tia.

- Me desculpe Harry. Eu deveria ter dado mais atenção a você, ter te tratado melhor. Deveria ter substituído sua mãe, já que você a perdeu quando era tão pequeno. Mas sempre me apavorou a idéia de que você pudesse ser igual a ela, que pudesse se meter com bruxaria. Nunca aceitei essa história de Lílian ser uma bruxa. Sempre senti muita falta dela, afinal, era minha única irmã, fazíamos tudo juntas, éramos muito unidas. Então, ela recebeu aquela carta dizendo que era uma bruxa, e que deveria ir estudar nessa sua escola. E odiei toda a atenção que meus pais passaram a dar a ela por conta disso, afinal, antes éramos iguais, de repente ela passou a ser especial, tinha um dom e eu.... eu sobrei, não era nada.... E ela foi, me abandonou. E depois disso, sua mãe nunca mais foi a mesma. Ela ainda passava as férias em casa, ainda me tratava com carinho, mas nunca mais fomos tão unidas. Eu não era mais tão importante, tão especial... Isso me abalou de tal forma que eu comecei a detestar tudo o que se referia ao mundo mágico. Quando ela se casou com seu pai, minha mágoa contra ela aumentou. Eu não me conformava. E depois ela morreu, por causa daquele bruxo horroroso, por causa de magia. E eu a perdi para sempre e nunca pude dizer a ela o quanto a amava, o quanto ela era importante para mim, o quanto ela me feriu quando se foi. E eu sofri muito e jurei que não passaria por isso novamente, pois isso nunca quis me apegar a você.

Petúnia soluçava e Harry chorava nos ombros de sua tia, mas não disse uma palavra. Ajoelhou-se, também, e abraçou-a de volta. E ficaram assim por alguns minutos até que o garoto resolveu que estava na hora de ir.

- Olha tia, tá tudo bem. Eu te perdôo, não precisa ficar assim. – disse Harry dando tapinhas no ombro da tia. – Muito obrigado por ter me dado isso. É muito bom ter algo que pertenceu à minha mãe.

- Que bom Harry. Mas você não precisa ir embora definitivamente, quero dizer, você pode vir nos visitar sempre que quiser. Eu prometo que as coisas serão diferentes.

- Certo, talvez algum dia eu volte, para uma visita. Mas podem acontecer muitas coisas nos próximos meses. Eu tenho uma tarefa a cumprir e pode ser que não sobreviva a ela, então não posso prometer nada.

- O que você quer dizer com isso “talvez eu não sobreviva a ela”? – perguntou tia Petúnia com preocupação na voz.

- Bom, eu tenho que liquidar aquele desgraçado que matou meus pais. E depois acabar com a raça dos bruxos que mataram meu padrinho e o professor Dumbledore.

- O quê? Dumbledore está morto? – gritou a tia.

- Está. Foi assassinado. E eu tenho que pegar quem fez isso com ele.

- Mas Harry, é muito perigoso e você é só uma criança!!!! Não posso permitir isso.

- Não sou mais uma criança e já passei por muito mais coisas nestes últimos 6 anos do que a senhora em toda a sua vida. E não há nada que a senhora possa dizer ou fazer que me faça mudar de idéia. Então, muito obrigado por tudo, por ter me dado o medalhão – disse o garoto colocando-o no pescoço – Mas estou indo.

- Bom, não posso pretender, nesta altura de sua vida, mandar em você. Mas, tome cuidado sim?

- Eu tentarei. – disse Harry e saiu pela porta da cozinha, com passos firmes.

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