Eternidade (parte 1)
N/A: Pela própria natureza deste capítulo, não haverá N/A ao final. Agradecerei a todos os que leram e comentaram com tanto carinho após o epílogo, o qual virá em breve. Como combinado na Comunidade das fics no Orkut, este último capítulo, por seu tamanho descomunal (o pobre do Growpe não chega nem no ombro), será postado em duas partes. E, se for possível quero comentários ás duas partes viram? Mas para que ninguém sofra, eu vou postar a segunda parte logo mais à noite. Espero que apreciem a leitura.
Beijos da Sally
Capítulo 40
Para Camila Martins, seu presente de aniversário querida. Feliz décimo segundo!
Eternidade – Parte 1
“Os dogmas assustam como trovões
E que medo de errar a seqüência dos ritos!
Em compensação,
Deus é mais simples do que as religiões”
Mario Quintana
Acima deles, se estendia um céu azul escuro, quase negro, pontilhado de estrelas distantes e sem brilho, marcado nas pontas com rastros de nuvens fumacentas, aqui e ali. Remo havia dito que seria noite de lua nova, Lua Negra, muito própria para sortilégios e rituais maléficos, e Snape traçara um complicado mapa astronômico para tentar identificar a hora exata escolhida para o ritual. “Os beusclainhs”, ele dissera, “só crêem em magia ritual. Nossa melhor chance é atrapalhá-los.”
Em todo o caso, a noite não convidava bons pensamentos. Estava escura e abafada, o ar rarefeito recendendo à maresia, peixes mortos e pedras molhadas. O paredão denso que se elevava atrás deles não ajudava muito a deixar o lugar com uma aparência mais agradável.
– Ah, “por favor”! Pelo que há de mais sagrado, Weasley! Pare de andar de um lado para o outro! Isso está me deixando nervoso.
Rony parou de se movimentar pela praia de pedras, mas não tirou os olhos do alto mar. Ao contrário, levou o oinióculo ao rosto pela enésima vez antes de responder, sem elevar a voz mais que o necessário para que o outro a ouvisse.
– Sua existência me deixa nervoso, Malfoy. Podemos fazer algo a respeito, se quiser.
Draco estava sentado em uma pedra alguns metros atrás de Rony e deve ter se movimentado para responder, porque a próxima a falar foi Tonks.
– Melhor calar a boca, “Malfoyzinho” – disse com nojo. – Você está em minoria aqui.
É certo que Draco Malfoy é um cretino idiota, mas ele não é totalmente desprovido de cérebro e talvez, por isso, tenha preferido ficar apenas resmungado sobre onde achava que Rony e Tonks deveriam ir, ao invés de responder diretamente para eles. Snape lhe lançou um olhar de advertência e ele fechou a cara, aborrecido. Em outra circunstância, Rony certamente teria respondido à altura – provavelmente à altura do queixo de Draco –, mas naquele momento nada importava ou interessava. Nada que não tivesse a ver com o fato de que, para além daquele mar, as pessoas que mais lhe importavam no mundo estavam arriscando as suas vidas, enquanto ele ficava ali, parado, esperando. Odiava isso.
– Nada ainda – lançou um resmungo seguido de uma trilha de palavrões, dos quais ninguém reclamou. – Plano idiota.
Snape cruzou os braços, mas não retrucou. Os olhos dele eram apenas duas linhas finas coladas ao horizonte.
– É nosso melhor plano, Rony – disse Remo. – Acalme-se, logo teremos o sinal.
As pessoas paradas na praia, e eram muitas, se mantiveram no mesmo silêncio tenso. Foi Fleur que disse o que ninguém queria expressar em voz alta.
– E se o sinal non vierr?
– Voaremos mesmo assim – respondeu Gui com muita certeza. – Daremos apenas uma hora, e, com ou sem sinal, vamos até lá!
– Em uma hora podem matá-los umas duas vezes – comentou Draco, voltando a falar.
– Eu posso fazer o mesmo com você – rosnou Tonks antes que qualquer outro se manifestasse.
Fleur se aninhou ao marido choramingando.
– Eu querro a minha garrotinha...
Ele a consolou, apertando o abraço, mas parecia que ninguém tinha condições de dizer muita coisa. Tinham os dentes cerrados, as bocas ressequidas. Os sentimentos de todos ali estavam muito além do medo puro e simples.
Dois plocs altos se fizeram ouvir logo atrás de Rony. Seus irmãos gêmeos tinham acabado de desaparatar na praia.
– Tudo pronto lá em cima – informou Fred anormalmente sério e fazendo um gesto de cabeça para o paredão alto que se estendia além da faixa litorânea pedregosa.
– Estão apenas esperando o sinal – completou Jorge, que ainda tinha as marcas no rosto e nas mãos das torturas feitas pelos Comensais quando invadiram sua casa para raptar as crianças Weasley.
– Nós também – respondeu Quim sem tirar os olhos no oinióculo.
– Cadê o Neville? – quis saber Rony, tentando ver atrás dos irmãos.
– Ele vai com o outro pelotão – informou Fred.
– Sério?
– É – confirmou Jorge – dá-lhe, Neville!
Rony deu um pequeno sorrisinho, antes de voltar a espreitar o mar.
– Há quanto tempo, agora? – perguntou Alicia chegando perto deles. Havia uma nota clara de aflição na sua voz.
– Quase vinte minutos – respondeu Remo, consultando o relógio de pulso.
De novo, aquela onda de silêncio, apenas o mar indo e vindo, monótono, compassado. Rony consultou o oinióculo, mas o horizonte ainda lhe parecia limpo. Ele laçou um olhar para trás. Devia haver umas cinqüenta ou sessenta pessoas as suas costas. Aurores, ex-colegas de escola, amigos. Ninguém ali estava para brincadeira, mas Rony ficou pensando se a maioria deles tinha a exata dimensão do que iam enfrentar. Durante o dia em que ele e Hermione tinham juntado as gotas de sangue dos voluntários ao Graal, os dois tinham tentado explicar o que seria enfrentar os beusclainhs, o que seria lutar num terreno que eles não conheciam e tudo o que estava em jogo. Nada havia demovido aquele pessoal de ajudá-los. Rony estava cheio de gratidão por todos, mas também apreensivo. Uma garra no estômago lhe informava que nem todos retornariam. O heroísmo deles, de repente, lhes parecia uma temeridade sem sentido. Ele mesmo daria qualquer coisa para, agora, estar seguro em casa, com sua a mulher e o seu filho. Sabia que muitos haviam deixado suas famílias para trás para lutar ao lado deles. Era como se confiassem que, por estarem ao lado de Harry Potter, nada lhes aconteceria. Rony gostaria muito que essa fosse uma esperança possível. Mas não era. Conhecia as idéias e disposições de Harry naquele momento. A certeza do amigo no auto-sacrifício não lhe parecia augúrio melhor que a confiança quase infantil de muitos dos lutadores de que tudo daria certo no final.
Rony fechou os olhos por dois segundos: “que tudo dê certo no final”, desejou com todo o seu coração.
– ESTÁ LÁ! – anunciou Quim.
– ONDE? – berraram várias vozes, inclusive a de Rony que voltou a olhar pelo oinióculo.
– LÁ! – disse Gui em voz alta apontando para o alto mar.
O grupo se agitou e muito chegaram a montar em suas vassouras.
– Acalmem-se! – ordenou Snape e quase todos os que tinham sido seus alunos se encolheram. – Ainda não temos o sinal.
O resto murchou e voltou a espreitar o mar, mas também o céu.
Um vulto maciço acompanhado de outro que mal lhe chegava ao peito apareceu um pouco mais longe na praia e se moveu rápido até eles. Rony não precisou que estivessem muito próximos para reconhecer Hagrid e o andar trôpego de Olho-Tonto Moody.
– Desculpem a demora eh – disse o grandalhão.
– Hagrid! Olho-Tonto! – exclamou Artur Weasley, que até então tinha estado muito quieto. Ele interpelou os dois, um pouco transtornado. – Achei que ficariam em Hogwarts.
– Fique tranqüilo, Artur. As defesas do castelo estão bem azeitadas. Se acham que vão encontrar só crianças indefesas, terão uma bela surpresa – assegurou Olho-Tonto.
Rony entendia a preocupação do pai. Molly, Ana e Joanne tinham ido para Hogwarts. A proteção da neta e da nora grávida tinha inclinado Molly a não participar do ataque à ilha de Enos Throop. Contudo, fora preciso Harry para convencê-la plenamente, dizendo que confiava apenas nela para deixar Joanne. Depois, fora necessário descobrir onde era mais seguro para elas ficarem. Harry e Quim decidiram que a maior proteção deveria ser dada Hogwarts, pois, caso eles falhassem, não tinham a menor dúvida sobre qual o lugar que Voldemort iria querer tomar conta para recomeçar sua ascensão. Uma força-tarefa de Aurores tinha sido destacada para a escola e muitos dos pais de alunos – que puderam ser avisados e se dispuseram – igualmente se uniram à vigília.
– Eu deixei o Growpinho e a Niguria tomando conta deles, Artur – complementou Hagrid com orgulho. – E, bem, o nome de Harry Potter ainda faz milagres. Os centauros, dessa vez, se ofereceram para ficar de olho na escola.
– Quem é Niguria? – a voz casual de Luna Lovegood (agora Creevey) pareceu deslocada por não ter nenhum traço da objetividade que parecia ser a marca das conversas ali.
– Ah é a namorada dele, do Growpe. É prima da Olímpia, digo, Madame Maxime. Não, Artur, não se preocupe, ãh. Para uma giganta ela é bem maternal. Ficou encantada em proteger crianças.
Rony pode distinguir os gemidos de várias bruxas atrás dele. Obviamente nenhuma delas acreditava que pudesse haver qualquer coisa de maternal numa giganta. Opinião que, muito claramente, Artur Weasley compartilhava. Remo pôs o braço por cima dos ombros dele e garantiu que, com Minerva a frente da escola, estava tudo sob controle. A única indiferente ao mal estar causado pelas informações de Hagrid era Luna. Ela crivou Hagrid de perguntas sobre o relacionamento de Growpe, como quem se interessa em uma revista de fofocas.
– Garota esquisita – rosnou Moody perto de Rony, que lhe arqueou as sobrancelhas. – parecia tão lúcida quando nos convenceu que levar um pelotão montado em testrálios para um campo de batalha com os beusclainhs seria um erro. E agora isso.
– Essa é a Luna – respondeu Rony com tranqüilidade, voltado à sua postura de espera, com os olhos no oceano. – Mais algumas dessas e você vai perceber que é impossível viver sem ela por perto.
Moody o focou com o olho mágico por um segundo e depois se afastou resmungando alguma coisa.
– Rony – trovejou Quim a alguns metros dele. – Acho que você deve subir. É melhor estarmos todos apostos.
O rapaz assentiu para o chefe e já ia se afastar para aparatar quando viu Draco, ainda sentado na mesma pedra com ar de tédio. Ele podia ter feito um Voto Perpétuo ou que fosse, mas Rony teria de nascer de novo para poder confiar em Draco Malfoy.
– Não esquente – disse Jorge à sua direita como se tivesse lido os seus pensamentos.
– Estaremos de olho nele o tempo todo – confirmou Fred.
– E seremos quatro.
Alicia e Kátia estavam postadas ao lado dos maridos.
– Não – falou uma voz Weasley saindo do escuro. – Se preocupem em pegar os meus sobrinhos. Eu cuido do projeto abortado de Comensal.
Jorge olhou Percy com estupefação.
– Estou estonteado Percy! Mais uma piada dessas e você vai ter de se separar da Patrícia querida. Acha que ela agüenta duas horas ao lado de um homem com senso de humor?
– Está enganado, Jorge: a pergunta é – completou Fred – um homem com senso de humor agüenta duas horas ao lado da Patrícia querida?
Rony e as duas cunhadas não resistiram a sorrir.
– Deixem o Percy em paz – recomendou Gui, chegando por trás e dando um cascudo em cada um dos gêmeos, que riram.
– Não se incomode – disse Percy com dignidade, antes de resmungar. – Pior que às vezes acho que eles têm razão.
Os gêmeos fizeram uma breve comemoração, que não foi maior porque Gui voltou a cascudear os dois. Dessa vez eles reclamaram.
– Por que ainda está parado aí? – o mais velho dos rapazes Weasley interpelou Rony. – O Carlinhos já está te esperando.
– Tô indo – disse Rony, antes que o cascudo se dirigisse a ele, e se afastou do grupo a passos largos. Logo, percebeu que Hagrid vinha caminhando ao seu lado.
– Achei que ficaria em Hogwarts, Hagrid.
– E perder vocês três de vista? Nunca. Se é para morrer, que seja ao lado dos meus melhores amigos – disse dando um tapa afetuoso nas costas de Rony, que mesmo sendo alto e forte, desequilibrou uns passos para frente, mas sorriu. – Além disso, eu não dispensaria essa oportunidade por nada. – Ele apontou a mão grande como uma pá para o alto do promontório que se estendia assim que a praia terminava.
Havia nuvens lá, mas não como as que, de tempos em tempos cruzavam o céu, ofuscando ainda mais as estrelas. Era um bafejar compacto, ruidoso, excitado que vinha lá de cima. Assim como os homens na praia, doze dragões treinados também sentiam o cheiro da batalha que se aproximava. E esperavam.
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Como o Lord das Trevas previra, apenas um homem surgiu no alto da ilha-fortaleza. E ele também não tinha se atrasado nem um minuto, exatamente como Voldemort disse que ele faria. A postura de Auror atento era reconhecível. Mas, mesmo em menino, ele já era arrogante e metido daquela maneira. De qualquer forma, tinha-se de admitir que Harry Potter empunhava a varinha com uma firmeza invejável, ainda mais para alguém na situação dele. Os olhos, por trás dos óculos de aro redondo, vasculhavam o alto, quase plano, da ilha. Uma vasta pradaria verde-escura, cortada volta e meia por grandes e médias pedras cinzentas e tochas incandescentes que, cravadas no chão, procuravam sem sucesso quebrar a escuridão. Mas o homem, certamente, não via ninguém. Ele ainda procuraria por um tempo, cauteloso. Não apressaria o combate.
Ah, sim. Ele viera combater. Disso, Lord Voldemort tinha plena certeza. E combateria com bravura, não desmereceria o sangue de seus pais. Morreria, se necessário fosse, e sem titubear. Contudo, Harry Potter não precisava morrer. Seria um grande desperdício. E Voldemort tinha os argumentos certos para convencê-lo disso.
Os Comensais, em seus esconderijos, olhavam o homem com imenso ódio. Voldemort não podia deixar de se perguntar se, ao final, eles seriam capazes de compreender seu grande plano. Não que houvesse alguma escolha àqueles que o seguiram até ali, se continuariam ou não a obedecê-lo. Não, não havia nenhuma escolha. O único que poderia fazer escolhas naquela noite, seria Harry Potter. E ele perderia em qualquer uma delas.
Mesclados ao chão e às pedras, os beusclainhs farejavam as atitudes do homem. Era possível sentir que, de alguma forma, eles o respeitavam. Em especial, Marmodeu. Ele fora o líder até a volta de Mefistófeles. Era seu lugar-tenente, agora e contara tudo o que sabia sobre Harry Potter para o seu chefe, deixando-o igualmente curioso. Os dois mal podiam esperar para ver até onde o ódio poderia levar alguém com os poderes do jovem Potter. Poderes que ele havia usurpado de Voldemort ao eliminar as suas Horcruxes! Poderes que, com absoluta certeza, retornariam ao seu legítimo dono naquela noite. Entretanto, Mefistófeles era mais sutil que Marmodeu. Testar Potter não lhe era suficiente e tão pouco destruí-lo. Não era apenas o ódio que o rapaz poderia sentir lhe interessava. Ele queria era ver a “bela e intacta” alma do Eleito se partir. Ah sim! Mefistófeles teria muito prazer nisso.
Apesar dos problemas inerentes àquela raça nada confiável de demônios, Voldemort estava satisfeito com os acordos que fizera. Teria de pagá-los, claro. Mas isso não seria problema. Ao fim, seria um bom exemplo para os insanos que quisessem se opor à nova ordem que estava para nascer naquela noite. Era óbvio que, depois, os acordos seriam revistos. Mas, com Lord Voldemort de volta ao poder, os beusclainhs não teriam do que reclamar, pois não haveria casa trouxa que não lhes fosse franqueada e sempre haveria um ou outro bruxo rebelde que lhes serviria. A nova ordem não permitiria dissidências. Ela seria mais ampla e mais profunda que qualquer outra organização projetada. Seria uma sociedade perfeita.
Sim. Era possível ver um grande e radioso futuro pela frente. E tudo entre o Lord das Trevas e esse futuro era novamente aquele garoto. Ora, um homem inteligente saberia aprender com os enganos do passado. Voldemort não cometeria erros tolos dessa vez. Não subestimaria Harry Potter, por mais que o odiasse e desprezasse. Seria estúpido se deixar invadir por sentimentos como aqueles. Ele cometera esse erro com o velho. Não fora frio o suficiente e Dumbledore o atrapalhara por décadas. Seria frio com Potter. Seria o que o garoto era incapaz de ser. Teria o controle que aquele menino não teria condições de alcançar em séculos. Iria desestabilizá-lo, fazê-lo perder-se, colocá-lo de joelhos. Tilial, o beusclainh que tão competentemente havia seduzido e aliciado Richard Oates para lhe fornecer aquele corpo precário, estava ansioso por usar seus talentos de torturador com o todo-poderoso menino-que-sobreviveu. E, mesmo que ele falhasse, haveria outras formas de transformar todos aqueles bons sentimentos em ódio puro. Potter não teria a menor chance. Como sua mãe e pai, ele seria corajoso, mas no fim ele imploraria. Então, misericordiosamente, Lord das Trevas lhe ofereceria a libertação.
Não haveria erros. Porque, dessa vez, Voldemort não tinha apenas todos os trunfos a seu favor. Dessa vez, ele tinha algo mais. Ele compreendia Harry Potter melhor que qualquer outro o compreendera. O garoto já perdera mais do que poderia suportar. Ele daria qualquer coisa para não perder... mesmo que soubesse que já havia perdido tudo.
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O alto da ilha estava vazio. Ao menos aparentava vazio.
– ‘Onde eles estão?’ – Hermione sussurrou bem perto dele. A voz tremia e, se a capa de invisibilidade fosse somente um pano, talvez fosse possível vê-la tremer também.
Harry perscrutou cada centímetro que seus olhos puderam abarcar. Nada. Então, ele fechou as pálpebras e respirou fundo. Sua cicatriz que antes formigava apenas com a memória da última invasão de Voldemort a sua mente, voltara a parecer viva e abrasadora. Quando voltou a abrir os olhos, falou muito baixo, mal mexendo os lábios.
– ‘Não se engane. Eles estão aqui. Todos eles’. – Sentiu Mione prender a respiração. – ‘Não se afaste de mim’.
Ela deve ter concordado, pois todos os passos que Harry deu, se encaminhando para a parte mais central do terreno, foram acompanhados de perto pela amiga. Estava sendo observado, e não eram somente os pelos arrepiados da nuca de Harry que o informavam disso. Todo o seu corpo formigava. Havia ondas diferentes de magia circulando por ali. Mas Harry era o senhor do tempo. Quem precisava de datas, estrelas, luas eram eles e não Harry. O rapaz decidiu esperar que eles se mostrassem.
– ‘Harry? Nós conseguimos, eu entrei com você. Vamos chamá-los’.
– ‘Não. Ainda não. Está com a espada nas mãos?’
– ‘Sim’.
– ‘Vem comigo, então’.
Adiante, pedras do tamanho de ovos pré-históricos se espalhavam formando um precário círculo sobre uma parte muito plana da ilha. Novamente um círculo de pedras, o terceiro. O campo de Aradia, Stonehenge e aquele sem nome diante deles. Harry caminhou cauteloso até o centro. Duas pedras empilhadas, diante dele, lembravam uma mesa ou um altar e, ao lado desta, havia dois enormes menires que pareciam pilares segurando o céu. Harry tentava perceber cada movimento, cada lufada de vento irregular a sua volta. Sabia que estava fazendo o que Voldemort queria. Sabia que ele provavelmente o observava agora. Via com satisfação Harry indo se postar “obedientemente”, como uma peça de tabuleiro, no lugar em que ele esperava tê-lo nas mãos. Uma nota bizarra de riso passou na mente do rapaz.
Na primeira vez em que enfrentara Voldemort – sem ser um bebê salvo pela mãe – houvera um jogo de xadrez e Rony o vencera. Em todas as outras vezes, o acaso e – hoje Harry entendia isso – seu coração o haviam ajudado a, pelo menos, sair vivo dos jogos propostos por seu inimigo. Havia um novo jogo agora. Tanto ele quanto Riddle tinham mais segredos e conhecimento do que o outro podia adivinhar. De fato, talvez não fosse xadrez, desta vez, mas uma mão de cartas. E Harry sabia que Voldemort confiava nas suas bem mais que ele nas dele. Por isso, ele decidira blefar até onde fosse possível e esperar que todos os planos traçados por Hermione, Rony, Snape, Remo e ele próprio dessem certo. E, talvez, ele pudesse, com um pouco de sorte, e com aquela pedra que pulsava como uma esmeralda viva no bolso junto ao seu peito, surpreender o seu adversário.
– ‘Aqui’ – murmurou para Hermione quando chegaram ao centro do círculo. – ‘Faça!’
– ‘Tem certeza?’
– ‘Tenho. Comece. Depois os chamaremos’.
Sem retrucar mais, Hermione iniciou lentamente a se movimentar a sua volta. Não era possível vê-la e ele mal conseguia distinguir, por sobre o barulho do vento e do mar, o som da espada riscando o chão. Se desse certo, Harry teria mais uma dívida com Hermione e Snape. Fora ela quem sugerira o círculo de proteção. Sua amiga, sempre brilhante, aparecera com um livro sobre magia ritual e lera para ele, e um igualmente boquiaberto Rony, várias páginas complicadas e, bem... nojentas, sobre cerimoniais mágicos realizados com invocações de espíritos, sacrifícios animais e coisas do gênero. Os bruxos que se envolviam com esse tipo de coisa não eram burros de confiarem apenas em suas varinhas para se protegerem de forças além de sua compreensão. Sofisticadas fórmulas rúnicas eram traçados em torno daquele que se expunha a essas violentas forças das trevas. Harry e Rony entenderam rapidamente o conceito, mas não muito mais que isso. Já Hermione, em poucas horas, sabia reconhecer os traçados como se os lesse desde criança, no dia seguinte, ela era capaz de desenhar os mais simples com firmeza e, dois dias depois, os mais complexos.
O uso da espada fora idéia de Snape.
“Riscar o chão com a mais lendária espada do mundo? – indignara-se Rony. – Que bom que não sou mais seu aluno, aí eu posso finalmente dizer: você-é-LOUCO!”
Snape tinha ignorado isso e se voltado diretamente para Hermione.
“Com o que esses bruxos que você estudou em seu “livro”, Granger, traçavam o círculo de proteção?”
Ele perguntou como quem propõe uma questão acadêmica, o que não surpreenderia se alguma vez, em todo o tempo que fora professor deles, Snape tivesse se interessado em ouvir qualquer resposta de Hermione. A garota, no entanto, demorou a responder. Harry achou que fosse pelo choque, mas logo o rosto dela brilhou como só acontecia quando coisas muito geniais passavam a fazer sentido na sua cabeça.
“Espadas...” Ela murmurou ainda embasbacada.
“E por que será que a mais poderosa espada do mundo caiu em suas mãos exatamente quando você precisa tanto de uma para fazer um círculo de proteção contra a pior raça de demônios que conhecemos?”
O queixo de Rony caíra. O próprio Harry ficara estupefato.
“Espantados?”, debochara Snape, “Eu também. Acho que nunca deixarei de me espantar com o fato de ignorantes como vocês chegarem onde estão”, disse dirigindo-se a Harry e Rony. “E Weasley, riscar o chão não é nem um décimo do que essa espada pode fazer”.
Ainda assim, tudo agora tinha um novo sentido. Eles haviam compreendido o que fazer com o Graal. Intuíram o uso que teria o Pendragon. Então, a espada que não podia ferir... ela poderia proteger, da forma mágica mais eficiente que havia, contra as forças das trevas. Que Snape os insultasse, ora bolas! Quem ligava? Fora a eles que Bóreas, o guardião, entregara essas relíquias e o ex-professor não pode apagar os sorrisos presunçosos dos dois rapazes, o que o deixou irascível por horas.
O desenho a volta de Harry não ficaria visível graças à sutileza da noite. E seria demorado. Mas ganhar tempo era ainda a arma mais eficaz na qual Harry poderia pensar.
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Nem um movimento! O garoto chegara ao meio do círculo e parara. Voldemort achou que ele procuraria com mais afinco, ou gritaria. Talvez pela mulher. Pelo filho. Talvez, por ele. Mas Potter continuava parado. A mesma postura de quem espera um ataque a qualquer momento, mas não parecia disposto a atacar ou fugir.
Não negava que estava frustrado. Contudo, havia algo de interessante ali.
Lord Voldemort se quis saber o quão frio esse homem Harry Potter tinha se tornado. Quanto será que o treinamento de Auror havia feito pelo menininho arrogante, impetuoso e cabeça-quente? Teria sido competente em transformá-lo num adulto capaz de apenas... esperar? Ele não tinha grande crença nisso tendo em vista o que Lucius tinha narrado de sua fuga de Azkaban. Talvez... fosse a hora de saber.
Num gesto firme, o bruxo deu um sinal para Tilial.
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Um grito de dor, insuportável de ouvir, rasgou a noite. Hermione estacou imediatamente e Harry pode sentir uma urgência histérica subir seus nervos acima.
– ‘Harry...’ – sussurrou Mione cheia de pavor agarrando-se ao seu braço.
O berro seguinte tinha ainda mais agonia. Era de mulher. O ar frio da noite deixara de chegar aos pulmões de Harry. Mais um grito. E ele parou de respirar.
– HAARRYYY!!!!!!
– Gina... GINAAAAAAAA!! GINAAAAAAAA!! – sua garganta rasgava e ele teria corrido em direção ao lugar de onde os gritos vinham se Hermione não o estivesse segurando com todas as forças de que era capaz. – Me solta! – Ele rosnou. – GINAAAAAA!!!!!!!!!!!!
– HARRYYY!! – Gina estava chorando de dor. – POR FAVOR!!! ME AJUDAAAA!!!
Ele não gritava mais, ele urrava. Era como se fosse nele. O que quer que ela estivesse sofrendo, era nele que doía. Mas Hermione continuava a segurá-lo. Então, um choro de bebê varreu o alto da ilha e Harry não sabia mais como qualificar o desespero enquanto tentava se livrar de Hermione, que parecia ter lhe lançado um feitiço do corpo preso para que ele não se movesse.
– ‘Me solta!’ – não foi uma ordem, ele implorou.
– ‘Não’ – Hermione tinha a voz aguada. – ‘Eu ainda não acabei. O círculo vai segui-lo quando estiver pronto, mas ainda não está...’
Ela falou tudo muito rápido, mas Harry mal distinguiu as palavras, tudo que ele ouvia eram os gritos de desespero de Gina. Pedindo. Suplicando que deixassem seu bebê em paz. Harry se pôs a lutar contra o feitiço lançado por Hermione. Uma raiva surda se voltou contra ela. Tinha vontade de bater na amiga, caso pudesse se mexer. Como ela podia? Como ela queria que ele ficasse parado enquanto...
Mas ele podia se livrar. Uma parte inexplicavelmente fria e lúcida da sua mente lhe disse que ele tinha poder suficiente para se livrar do feitiço de Hermione. Bastava se concentrar. Logo, ele poderia salvar Gina e Lyan. Parou de lutar com os músculos. Era em sua mente que o poder estava. Respirou profundamente enquanto visualizava as correntes invisíveis que o prendiam quebrando e caindo. Contudo, quando aquela que estava sobre seu peito caiu, algo mais aconteceu. Antes que ele pudesse dar um passo sequer, o Graal vibrou.
Não era aquele pulsar cômodo e reconfortante ao qual ele estava acostumado, era um tipo diferente de vibração.
– ‘Pronto’ – disse Hermione, numa urgência cheia de dor – ‘desculpe, Harry. Eu tinha... Vamos logo!’
Harry esticou o braço e a fez parar. Os gritos continuavam cada vez mais lancinantes e Hermione chorava muito.
– ‘É Voldemort, Mione. Não acredite em tudo que ouve... ou vê.’
– ‘Mas...’
– ‘Ele quer que eu vá ou não a fariam gritar e...’ – uma calma do tamanho de um cobertor quente desceu sobre ele – ‘não é ela’.
– ‘O quê? Como pode ter certeza?’
– ‘Gina não gritaria’ – afirmou com certeza absoluta. Gina não chamaria por ele naquela situação. Não deixaria que a fizessem de isca. Harry tomou fôlego e berrou: – VOCÊ JÁ FOI MAIS ESPERTO, VOLDEMORT! POR QUE ACHOU QUE EU CAIRIA NOVAMENTE NESSE TRUQUE? NÃO ACHOU QUE EU TIVESSE APRENDIDO QUANDO VOCÊ USOU SIRIUS PARA ME LEVAR AO DEPARTAMENTO DE MISTÉRIOS?
Ele cruzou os braços deixando clara sua disposição de não se mover. Não demorou muito para os insuportáveis gritos femininos pararem. Harry deixou o ar preso nos pulmões sair lentamente. Um blefe e uma aposta. Harry tinha vencido dessa vez.
De trás de uma pedra alta, saiu um bruxo cujas feições jovens eram ainda reconhecíveis, muito embora as faces encovadas e de uma brancura amarelada lhe dessem aparência de um cadáver que andava. Não havia grande claridade, as tochas mal conseguiam ir além de si mesmas para iluminar, porém Richard Oates caminhava para Harry e era impossível não ver em seus olhos aquela horrível luz vermelha. Se ainda havia algo do Auror naquele corpo era tão pouco e tão fraco que ele certamente não teria condições de esboçar um gesto. O senhor daqueles passos era Voldemort. A cicatriz na testa de Harry rompeu de fora a fora com tanta vontade que ele achou que cérebro se dilaceraria. Piscou rápido para conter as lágrimas de dor e focalizou em Voldemort. Isso, estranhamente, serviu para manter-lhe a lucidez e não o deixou sucumbir.
Os dois inimigos se encaram longamente. Harry achou que sua raiva por Oates se manifestaria quando eles estivessem frente a frente, mas não aconteceu. Mesmo sem o rosto ofídico, ainda era Voldemort. Richard merecia apenas a piedade que se daria a um moribundo. Talvez uma piedade ainda maior pelo fato de seu assassino ter o descaramento e o mau gosto de roubar-lhe o corpo e usá-lo como um casaco, com o qual não se deveria ter nenhum cuidado.
– Harry Potter – disse Voldemort anunciando cada letra. – Parece que seu “felizes para sempre” foi bem curto, não é?
– É. Eu também achei que “danação eterna” durasse um pouco mais.
– Vejo que a sua língua continua afiada, mas estou impressionado com o novo estilo. – O bruxo o analisou jocoso. – Tão... frio. Profissional, eu diria.
– Ah claro! Eu tinha esquecido que você prefere enfrentar bebês, crianças e adolescentes não treinados. Problemas com gente do seu tamanho, não é?
O sorriso debochado falhou por um segundo, mas não sumiu.
– Esse é o seu sonho, não? Você fantasia que eu, Lord Voldemort, o único bruxo com poder o suficiente para buscar a imortalidade e, realmente, vencer a morte, um dia poderia temê-lo, como você acha que eu temia ao velho.
– Você temia Dumbledore, Riddle. Isso é um fato.
Voldemort pressionou os lábios de Oates numa linha fina. Ele ainda não gostava de ser contrariado. Porém, por alguma razão ele preferiu não discutir.
– Se quer se apegar a isso, não posso impedi-lo. Mas escreva, Harry Potter: Lord Voldemort não teme você!
– É, eu vou anotar isso. E vou anotar também que você precisou se aliar com a raça de seres mais infecta da terra, e se esconder atrás da saia da minha mulher e dos brinquedos de oito crianças para me enfrentar. – Aquilo certamente incomodou Voldemort e Harry prosseguiu com satisfação. – Acho que vou anotar, além disso, a sua obsessão para que eu estivesse aqui sozinho enquanto você está cercado de uns trinta bruxos armados mais os bichinhos de estimação? Estou estupefato com o tamanho da sua coragem, Riddle. Você realmente não tem o menor medo de mim...
– CALE-SE! Você é apenas uma pequena engrenagem na minha tomada do poder, Potter! – Os olhos de Oates saltavam das órbitas, impulsionados pela força alucinada de Voldemort. – Hoje eu compreendo isso! Tudo o que aconteceu teve um propósito. Uma única finalidade. Tornar a mim o bruxo mais poderoso que já existiu! O único a vencer a morte mais de uma vez! O único a tornar-se imortal! Você e seu patético bebê existem apenas para isso. Doeria bem menos se aceitasse, pois não há nada que possa fazer contra mim, garoto!
Num gesto de comando, o topo da ilha-fortaleza, antes vazio e plano, se encheu de gente que parecia brotar como fumaça do chão. Em segundos, Harry estava cercado de Comensais da Morte e beusclainhs. Havia uma grande excitação ali. Os sorrisos e caçoadas lembraram a Harry um bando de hienas cercando uma vítima ferida. Talvez fosse esse o momento de igualar as coisas, mas então Enos Throop apareceu próximo ao canto esquerdo dos olhos de Harry. Ela arrastava Gina por um braço e ela parecia ainda menor perto do traidor de altura gigantesca. Hermione soltou um gemido baixo, enquanto Harry devorava a figura da esposa. Gina estava mais magra. Usava ainda o vestido da festa de inauguração que os dois nunca foram e este caía frouxo dela. Havia marcas no rosto e nos braços até onde Harry podia ver.
– Jogue a sua varinha para cá, Potter! – ordenou Throop.
Harry estava tão alheio que mal o ouviu falar. Seus olhos mal desprendiam dos de Gina. Ela tentava manter-se ereta e firme, mas havia muita dor, tanta dor.
– Você não ouviu? – Foi mais a voz do que ordem que ativou os sentidos de Harry. – Jogue a varinha! – berrou Bellatrix Lestrange.
Ele voltou a olhar para Gina. Pegou a varinha sem titubear, seria uma troca fácil. Tudo que ele queria era abraçar sua mulher, nem que fosse por um segundo... Por outro lado, os seus inimigos o queriam desarmado; e eles não sabiam que não faria diferença nenhuma. Seus olhos buscaram cumplicidade nos da esposa e ela o incentivou a entregar a varinha balançando a cabeça, assustada. Rápido demais. Entregar a varinha tinha outros riscos... Um arrepio percorreu a coluna de Harry e ele instintivamente consultou o Graal, que vibrou. Estava lidando com Voldemort, não podia esquecer-se disso.
– Talvez não seja ela, Harry – sussurrou baixinho Hermione, que parecia pensar junto com ele. – Ele faria de novo. Quer você fraco.
Harry assentiu imperceptivelmente enquanto observava Throop sacudir sua presa pelo braço com grande brutalidade. Ela gemeu alto e convincentemente. Era bem claro que eles pretendiam fazê-lo se desarmar com o mínimo de resistência possível. A mente de Harry trabalhava com uma rapidez impressionante para dar conta do problema que se criava no momento. A varinha não era imprescindível para enviar o sinal para os outros, mas ele não queria revelar tão cedo do que era capaz; e permitir que Hermione o fizesse, poderia expor a posição da amiga e o fato de que outros, além dele, poderiam entrar na ilha. Isso tiraria o elemento surpresa do “seu exército”, coisa que Harry realmente não queria.
Caso ele entregasse a varinha, haveria duas outras complicações. Qualquer bruxo, minimamente atento, perceberia que ele não carregava nada além de um pedaço de madeira transfigurado. Por outro lado, a seqüência de ação dos Comensais seria, provavelmente, deixar que a falsa Gina se aproximasse dele e assim tentasse extrair o que ele pretendia fazer. Mas um beusclainh, o que certamente era o ser metamorfoseado em Gina, à sua frente, não transporia o círculo de proteção. E isso também os revelaria cedo demais.
Para ganhar tempo e representar bem a sua cena, Harry olhou longamente para a varinha, com pesar, enquanto decidia como não entregá-la.
– Está enrolando, Potter! – Reclamou Voldemort. – Lucius, tome a varinha dele ou teremos de convencê-lo de forma menos suave – falou apontando para a falsa Gina.
Por algum motivo, eles não estavam lhe mostrando sua verdadeira mulher e isso deixou Harry mais assustado do que tudo. E se ela já estivesse morta? Se ela não tivesse resistido às torturas? Se, num dos seus ataques de fúria, Voldemort tivesse simplesmente a eliminado contando com a capacidade metamorfaga dos beusclainhs para sugestionar Harry na batalha final?
Lucius Malfoy parou na sua frente e esticou a mão esperando que ele lhe entregasse a varinha. Harry podia ver as dobras da sua capa roçando o seu círculo de proteção. Felizmente ele não dera mais um passo. Os olhos sempre frios do velho Malfoy, no entanto, tinham uma pontada de medo que Harry nem saberia dizer como reconheceu, mas, num átimo de loucura, resolveu usá-la. Lembrou do que Lucius tinha lhe dito no dia em que fugira de Azkaban, ameaçando-o por ser Harry o responsável pela morte de Narcisa e, acreditava ele, por Draco tê-lo abandonado na prisão. Baixou a voz para que apenas o bruxo o ouvisse, enquanto, numa lentidão dramática, lhe estendia a varinha.
– ‘Draco está conosco’ – foi possível perceber Lucius gelar – ‘por sua causa. Ele quer salvá-lo.’
– ‘Eu não preciso ser salvo, Potter. Você sim’ – rosnou Malfoy, mas ele não elevou a voz e Harry viu aí uma possibilidade.
– ‘Ele fez um Voto Perpétuo’ – Lucius arregalou os olhos e engoliu em seco. – ‘Prometeu que o salvaria ou morreria tentando.’
– ‘Mas...’
– ‘Se ele mudar de lado ou deixar você agir contra nós, ele morre’.
– ‘Draco não seria tão estúpido’.
– ‘Se pensa isso é porque conhece muito mal o seu filho’.
– ‘Ele não pode entrar aqui!’ – sussurrou raivoso e em resposta Harry sorriu de um jeito que dizia que havia muitas coisas de que Lucius não sabia e, só então ele, deixou a varinha falsa cair sobre a mão do bruxo, que a segurou.
Foi possível ler nos olhos de Lucius Malfoy uma sucessão rápida de triunfo, confusão e, depois, medo. O bruxo encarou Harry como se nunca o tivesse visto na frente. Ele observou a varinha e depois lançou um olhar questionador ao rapaz.
– ‘Onde...?’
Harry apenas abriu os braços numa atitude clara de que ele não escondia nada. Estava completamente desarmado. Foi aí que a pouca cor no rosto do velho Malfoy sumiu de vez.
– Algum problema, Lucius? – Voldemort impacientou-se, embora não parecesse ter percebido o diálogo nervoso entre os dois homens a poucos metros dele.
– Hã – Malfoy se voltou fazendo uma mesura para o chefe. Harry prendeu a respiração, estava confiando demais em duas coisas: o amor de Lucius pelo filho e sua fascinação pelo poder. Naquele momento, a lealdade de Lucius Malfoy vacilava porque ele não sabia mais qual era o bruxo mais poderoso sobre aquela ilha. – Nenhum problema, Milorde.
Pelo visto ele optara pela posição tradicional dos Malfoys, aquela que lhes era conveniente e, no momento, era conveniente para Lucius não interferir no rumo dos acontecimentos.
– De que é a varinha? – perguntou Voldemort.
– Carvalho e corda de coração de dragão – respondeu Harry antes mesmo que Lucius endireitasse a coluna diante de seu mestre. Voldemort não pareceu impressionado.
– Uma varinha bem tradicional – escarneceu o bruxo. – Traga-a aqui Lucius.
Malfoy tremeu de forma quase imperceptível, mas não deu outras mostras de titubear. Sem transparecer nada, ele caminhou até Voldemort, com toda a atenção dos que compunham o círculo nele, e estendeu-lhe a varinha de Harry. Contudo, antes que o bruxo a tocasse, a varinha deu um pinote, como se tivesse vida própria, e lançou-se ao ar, para o espanto de todos.
– Mas o quê...?
Guiada por uma força invisível, a varinha saiu pulando sobre as cabeças dos comensais e dos beusclainhs. Os bruxos lançavam feitiços convocatórios tentando, inutilmente, pegá-la, porém a varinha escapava graciosa, ao mesmo tempo em que ia subindo sem parar. Gritos e vozes alteradas se mesclaram ao barulho dos feitiços. Um Voldemort frenético ameaçava e apontava a varinha de Oates com fúria, tentando caçar o feixe de carvalho transfigurado, que dançava sobre eles.
– ‘Você é minha heroína, Mione’ – Harry murmurou baixinho, mal mexendo os lábios. Ela tinha aproveitando que todos estavam olhando para Malfoy e Voldemort e não para Harry e, por sob a capa de invisibilidade, passara a controlar a falsa varinha. Mas Hermione não se rendeu ao pequeno triunfo.
– ‘Observe-o’ – ela disse – ‘Voldemort. Ele está fraco. O corpo do Oates...’
Sim, era bem óbvio. Por algum motivo, o corpo do Auror não parecia tolerar mais estar sendo vampirizado pela alma de Voldemort. O rapaz morria um pouco cada vez que Voldemort fazia magia. Sua força de vida se esgotava. Logo, haveria apenas uma alma naquele corpo e Harry intuía que, sem Richard, Voldemort também não poderia continuar ali. O tempo dele se esgotava rapidamente.
– ‘Mande o sinal’ – sussurrou Harry. – ‘Vamos aproveitar que não estão olhando. Agora!’
Hermione entendeu sua urgência e agiu imediatamente. A varinha de Harry, então, explodiu sobre a ilha num clarão muito forte e um dragão de tamanho descomunal, composto de fagulhas vermelhas, se distendeu poderoso sob os céus. Os beusclainhs soltaram berros animalescos e se esconderam sob as pedras. O belo fogo de artifício – cortesia das Gemialidades Weasley – abriu as asas, jorrou chamas pela boca e mergulhou na ilha fazendo com que os Comensais corressem para todos os lados. Harry quase sorriu. Um sinal totalmente mágico não teria sido tão eficaz. Mas os fogos Weasley, tinham baixa quantidade de magia, podiam queimar a noite inteira e, com uma pequena ajuda de Hermione que o havia colocado dentro da varinha falsa de Harry, não eram sólidos o suficiente para serem aprisionados pela maior parte das barreiras conhecidas no mundo mágico.
– ‘Vamos aproveitar a confusão e procurá-los’.
Antes, porém, que Harry começasse a puxar Hermione uma luz forte, vinda do lado externo círculo de pedras, explodiu o dragão em milhares de luzinhas vermelhas que caíram como chuva sobre o mar e sumiram. Os gritos de homens e bestas cessaram instantaneamente e Harry parou de se mover. Lá se fora o seu sinal.
Com passos lentos, um beusclainh de aparência velhíssima, apoiado em uma bengala e numa outra criatura, que o ajudava, vinha em sua direção. Harry reconheceu o beusclainh ajudante quase imediatamente. Era o demônio que o havia enfrentado duas vezes. Uma quando ele resgatara as crianças trouxas e outra, quando o mesmo quase matara Rony, em Stonehenge. Apesar da aura maléfica que este possuía, foi o olhar do velho que fez Harry, discretamente, empurrar Hermione para trás de si e suplicar, mentalmente, que Rony e os outros tivessem visto o sinal da praia.
Os Comensais deram espaço para as criaturas passarem. Havia respeito nesse afastamento e também pavor. Apenas Voldemort parecia não ser atingido por eles. Os dois beusclainhs caminharam lentamente até chegarem próximos a Harry. O velho largou o braço do outro e apoiou-se unicamente na bengala. Não era muito diferente dos outros a não ser pela aparência venerável, contudo Harry jamais se sentira tão incomodado com uma presença em toda a sua vida.
– Eu sei quem você é – falou numa voz enrouquecida como a de um fumante de longa data. – Você sabe quem eu sou?
Hermione voltara a cravar as unhas, com força, no braço de Harry e murmurou muito baixo o que a mente dele já informava.
– Mefistófeles – disse Harry em voz alta, sentindo o Graal gelar contra o peito e pesar como se tivesse vários quilos.
Os beusclainhs não gostaram. Ficaram agitados e alguns arreganharam aqueles horríveis dentes serrilhados para ele. Poucos homens teriam coragem para pronunciar o nome de um demônio, estando frente a frente com ele. No caso de Harry não era apenas coragem, mas uma boa dose de temeridade e outra não menor de ignorância.
Contudo, nem Mefistófeles, nem o demônio que o acompanhava pareceram se incomodar. O mais velho dos beusclainhs somente inclinou a cabeça, numa espécie de cumprimento e, depois, voltou a encarar Harry com grande curiosidade.
– Foi um belo truque o que fez com a varinha – Harry manteve o rosto impassível. Será que ele havia notado a presença de Hermione? Ou que a varinha não era verdadeira? – Que tipo de feitiço usou?
O rapaz fez força para não soltar um bufo de alivio. Abriu a boca com lentidão ao mesmo tempo em que acelerava o cérebro para enrolar o quanto pudesse.
– Um feitiço Postumus – desdenhou Bellatrix Lestrange. – Nunca achei que veria um grifinório fazer um desses. É um feitiço de covardes que esperam fugir desviando a atenção.
– Ou de um bruxo que quer manter a real natureza da sua varinha incógnita – sugeriu Enos Throop com inteligência. – Potter lançou o feitiço antes de entregá-la a Lucius e minutos depois a varinha executou um show de luzes para ocultar-se.
Harry teve de segurar o sorriso, Bellatrix e Throop nem aventaram a possibilidade de um simples fogo de artifício que, de todo modo, não poderia ser escondido dentro de uma varinha verdadeira. Mas as explicações dos dois Comensais da Morte lhe foram bem convenientes.
– ‘Adoro gente inteligente’ – caçoou Hermione num sussurro próximo à orelha de Harry.
O ex-Auror parecia muito seguro de que aquela alternativa era a verdadeira e lançou um olhar significativo para Voldemort. Este, contudo, parecia mais frágil após tentar capturar a varinha dançante de Harry. O corpo de Richard Oates tinha começado a arquejar como se fosse varrido em cada centímetro por dores atrozes. Só os olhos continuavam febris e vivos. Ele deve ter percebido o jeito atento com que Harry o analisou, pois sua voz tinha muita força quando ele falou.
– Procurem-na! Achem a maldita varinha! – Sua ordem foi seguida por todos os Comensais com exceção de Bellatrix Lestrange. Esta correu para o lado do mestre e tentou ampará-lo, mas ele a recusou num movimento raivoso com o braço, contudo, não o suficiente para que ela saísse do seu lado.
– Me intriga... – a voz asmática de Mefistófeles voltou a chamar por Harry, desviando-o de observar Voldemort e os Comensais – a pouca atenção que deu à sua esposa.
Harry mal se deu ao trabalho de olhar para Throop e sua prisioneira, que haviam se aproximado do lugar onde ele estava.
– Não é a minha esposa – sua certeza não admitia réplicas.
Talvez por isso a reação do velho beusclainh tenha sido uma risada rouca e aspirada, que o demônio ao seu lado acompanhou e foi seguido pelas outras criaturas. Harry notou que, ao contrário dos Comensais que, seguindo as ordens de Voldemort, buscavam agora por sua varinha, os demônios haviam se mantido no círculo à sua volta. E mais, o haviam fechado para cobrir os espaços deixados pelos bruxos. Apenas Throop, Voldemort e Bellatrix se mantinham ali. Os beusclainhs não pareceram abalados com a percepção de Harry. Pareciam muito interessados em caçoar e lançar risos de desprezo para a falsa Gina.
– Pelo visto, você andou perdendo a mão, Tilial – ridicularizou Mefistófeles. – É a segunda vez que o humano não cai nos seus truques.
Pelo canto externo do olho, Harry viu a criatura, com uma expressão furiosa, abandonar lentamente a forma de Gina. O cabelo longo e vermelho sendo absorvido pelo crânio até este ficar liso e oleoso; as feições tornando-se rapidamente asquerosas, a pele ganhando aquela cor cinzenta, baça e carocenta; o corpo perdendo a forma na mesma medida em que o vestido de festa era substituído por aquela túnica grosseira de couro que os beusclainhs usavam. Enos Throop, ao dar-se conta da transformação, soltou o braço da criatura num gesto de repugnância.
– Deve ser a idade – falou o demônio que amparara Mefistófeles, erguendo a voz acima da algazarra de seus companheiros. – Acho que terá de se restringir a imitar as velhas, Tilial, e deixar as belas jovens para alguém que consiga enganar um humano.
O tal Tilial saiu de perto de Throop cheio de raiva e mau humor.
– Pelo que eu me lembro – falou alto para ser ouvido – esse é o mesmo “humano” que o colocou para correr uma vez, não é mesmo, Marmodeu?
Os outros beusclainhs guincharam de prazer quando Mefistófeles olhou com o mesmo desprezo, antes dedicado a Tilial, para seu companheiro. A humilhação dos demônios perante os pares tinha se tornado, para o grupo de beusclainhs, muito mais interessante que todo o resto. Marmodeu ficou furioso e arreganhou os dentes para Tilial que retribuiu e a platéia só faltou bater palmas esperando que ambos fossem às vias de fato.
Harry contemplava tudo aquilo mantendo o braço levemente esticado para trás, protegendo Hermione. Observar aquelas criaturas tão de perto lhe dava a real e exata dimensão da insanidade Voldemort e seus Comensais. Como eles puderam se associar com seres como aqueles? Eles não eram uma espécie como os dementadores, cujo único motivador era o desejo orgânico da raça em se alimentar da felicidade humana. Os beusclainhs não agiam coletivamente, eram seres individuais, com suas próprias rixas, sua própria política. Os humanos, para eles, eram um meio e não um fim em si. Seu alimento e, mais que isso, seu prazer, era estimular a raiva, o ódio, a inveja, o despeito. Conheciam muito bem sentimentos assim, porque eles próprios eram feitos dessa matéria, e os destilavam como um veneno.
– Chega! – Mefistófeles calou-os sem esforço e as criaturas se encolheram um pouco, mas seus olhinhos maldosos continuaram a brilhar cheios de perversidade. – Voldemort – o demônio chamou o nome do bruxo como se o acariciasse – eu não creio que a varinha será encontrada. O rapaz é mais esperto do que o que você me havia dito. Ele deve tê-la programado para explodir-se ou jogar-se ao mar.
– Nem mesmo Potter seria tão tolo a ponto de desarmar-se – rosnou Voldemort e imediatamente levou a mão ao peito, como se uma fincada o houvesse feito se curvar.
– Milorde – Bellatrix socorreu-o pressurosa e, dessa vez, ele nem teve forças para rechaçá-la.
Os Comensais, pelo visto, haviam começado a parar de procurar pela varinha. Seus olhos convergiam para o mestre e havia receio e urgência neles.
– Mas ele já fez isso antes, Voldemort. Você me contou. Seu jovem inimigo parece acreditar que nem toda a magia vem do uso de uma varinha. – Ele considerou Harry por um instante. – Acho que devemos respeitar uma atitude assim, mas também devemos considerar... – Ele esticou a mão em direção a Harry. Não havia dúvidas de que ele tentava convocar alguma varinha escondida, parecia ser o único a considerar que a entregue a Malfoy podia ser falsa; e, por um instante Harry, temeu que a varinha de Hermione a abandonasse, contudo nada aconteceu. – Considerar que Harry Potter ainda tenha segredos para nós – completou baixando o braço e analisando Harry com ainda mais atenção, se era possível.
– ‘O círculo funciona’ – exultou Hermione bem baixinho. – ‘Eles não podem nos tocar aqui dentro, Harry!’
Voldemort fez força para falar alguma coisa, mas suas palavras falharam junto com o passo que ele deu à frente. Harry se lembrava de um Voldemort cujo rosto tinha a brancura de um crânio nu, mas o rosto de Richard Oates tinha um outro tipo de palidez. Uma palidez amarelo-cadáver, macabra e nauseante. Throop avançou e igualmente se pôs a sustentar o mestre, parecia preocupado, quase tanto quanto Bellatrix.
– Sim, meu amigo – Mefistófeles continuou no mesmo tom de voz que agora rasgava o novo silêncio a que sucumbira o alto da ilha. – O tempo se esgota. Merrick, Leobal, Azael! Tragam nossos amiguinhos e nossa encantadora convidada para cima. – Três beusclainhs sumiram em baforadas fedorentas de fumaça e o coração de Harry ficou mais leve: Gina estava viva! – Creio que as estrelas logo estarão prontas para ouvirem a decisão do Sr. Potter.
– Decisão? – algo duro rolou dentro de suas entranhas.
– Sim – o rosto do demônio se contraiu no que era para ser um sorriso cruel e ele mudou de posição sobre a bengala mantendo os olhos fixos nos de Harry. – Ninguém pode acusar a minha raça de não dar escolha aos humanos nos nossos “negócios”. Marmodeu?
O beusclainh adiantou-se com a mesma expressão sardônica com a qual encarara Harry em Stonehenge.
– Num inverno, há sete anos, Enos Throop nos invocou, implorando por nossa ajuda e propondo um pacto: o retorno do seu mestre, pelo retorno do nosso. – Marmodeu indicou Mefistófeles reverentemente. – Selamos, então, um acordo. Os humanos trariam de volta nosso mestre, cuja prisão encontrava-se em um lugar em que não poderíamos entrar. – “Hogwarts”, pensou Harry. – E, em troca, usaríamos nossa mágica superior para invocar o espírito de Voldemort das regiões profundas da morte. Depois, quando o momento se apresentasse, o faríamos transpor a barreira dos mundos. E, por fim, na noite de sua primeira ressurreição, quando o pequeno e o grande maléfico brilhassem mais forte no céu da lua negra, nós lhe daríamos um novo corpo(1). Não apenas um corpo humano, novamente mortal, mas uma carne capaz de resistir ao tempo por séculos, como a nossa.
– Séculos? Vocês subestimam Voldemort – ironizou Harry. – Ele quer a eternidade.
– E a terá! Nós podemos dá-la! Essa noite será única em toda a história, porque... – Marmodeu não pareceu gostar da expressão que viu no rosto de Harry. – Você desdenha de nossos poderes, Harry Potter? – perguntou com selvageria.
– Nãh, quero dizer, é bem óbvio que vocês acreditam tê-los e...
– ACREDITAM? – Tilial rosnou furioso ao lado de Mefistófeles e Hermione ofegou baixinho: “não os provoque...” – Você tem muita coragem, humano! Ou é louco!
Harry bem que poderia parar, mas Mefistófeles estava impassível e isso, de alguma, forma, lhe dizia que se ele quisesse saber quais eram os planos tinha de irritá-los, de fazê-los falar. Alguma coisa ditava isso em seus ouvidos e Harry não discutiu consigo mesmo.
– Bem... eu nunca ouvi falar de uma magia que fosse capaz de fazer isso – os beusclainhs chiaram – a não ser, claro, que se esteja levando em conta lendas fantasiosas e histórias para assustar crianças e... seduzir crédulos.
– NÃO? – Foi Enos Throop que se intrometeu, lançando uma carga enorme de desprezo em cada uma das suas palavras. – Nunca ouviu falar da grande bruxa Medéia e sua poção capaz de rejuvenescer e prolongar a vida do mais alquebrado dos homens? Com quem acha que ela aprendeu tal coisa? – Um beusclainh a sua direita deu um risinho mordaz. – O caldeirão de Pwyll e sua capacidade de trazer os homens de volta a vida? O Graal e seu poder infinito de cura? A imortalidade, Harry Potter, não carece de coragem, mas de conhecimento e obstinação!
– Eu sei disso tudo – disse Harry e Mione gemeu. – Mas talvez eu tenha me expressado mal: nunca ouvi falar de uma magia capaz de trazer mortos a vida que tenha dado certo... permanentemente.
Throop não gostou e se adiantou para Harry, mas Voldemort o segurou pelas vestes com o braço frouxo e ele parou.
– Veja Harry... – Voldemort avançou lento e trôpego, o corpo de Oates amparado por Bellatrix, a juventude doente do rapaz parecendo mais obscena frente à claridade mortiça das tochas – é por isso que você luta? – Ele abriu os braços dando a Harry o doloroso espetáculo de ver a morte caminhando por um corpo sem rugas. – É por essa decadência... essa dor? Você poderia ser meu aliado. Juntos, poderíamos ir além dos mais maravilhosos sonhos jamais sonhados, mesmo pelos bruxos mais poderosos. Eu lhe ofereçi partilhar comigo o universo! Mas não... o heróico Harry Potter prefere permanecer fiel aos ensinamentos de Dumbledore – ele cuspiu o nome com ódio. – Prefere continuar a lutar por isso, por essa perda sem fim – novamente ele apontou para o rosto moribundo de Richard. – Você luta pela morte, Harry; eu luto pela vida!
– Você luta pelo seu medo, Riddle! Ele é tão maior do que você que vai estar aí sempre, matando-o, mesmo que viva.
Voldemort deformou o rosto de Oates ainda mais, num sorriso desdenhoso.
– Você aprendeu a falar em enigmas, igualzinho ao velho. Tornou-se tão tolo e obtuso quanto ele. Como ele, você prefere que nos escondamos como baratas quando podíamos ser deuses. Como ele, você quer que aceitemos em nosso meio esses usurpadores de nossos poderes, esses sangues-ruins sujos que deveriam ser eliminados no momento em que nascessem! Vocês e o seu apreço pelo amor... – a palavra saiu como se lhe queimasse a boca. – Quer seguir seu mestre, Potter? Pois você vai ser eliminado, exatamente como ele foi. E eu vou olhar para o seu rosto todos os dias e saber que eu venci!
Harry piscou confuso.
– Estou acostumado a ouvir as suas ameaças, Riddle, mas confesso que essa última...
– ‘Ahh...’ – choramingou Mione e Harry temeu o que ela tivesse entendido e ele não, porém, a garota permaneceu quieta.
A voz rascante de Mefistófeles se interpôs.
– Acho que o Sr. Potter talvez precise ser melhor “informado” sobre o que está prestes a acontecer. Eu creio que, bem, saber da extensão do que ele ainda não compreende, vai dissuadi-lo de, como direi,... tentar resistir.
Ele lançou um olhar de exortação a Marmodeu, que voltou a falar.
– Somos uma das raças mais antigas sobre a terra. Os homens ainda eram crianças e nós já éramos senhores de poderes com os quais sua espécie jamais sonhou. Contudo, para preservar a integridade da nossa espécie, que sempre foi belicosa, nossos veneráveis anciões decretaram que cada um de nós fosse o senhor de um único e extraordinário poder, assim permaneceríamos unidos pelos séculos a fora. Muitos humanos se sentiram atraídos por nossa mágica poderosa e, como ocorre com tudo o que não possuem: os humanos a desejaram. Muitos foram os que tentaram desvendar os nossos segredos e partilhar os nossos poderes. Alguns conseguiram chegar bem perto. Outros, porém, nos tiveram tanto medo, horror e inveja, que se dedicaram unicamente a nos manter afastados, criando magias repulsivas, alijando-nos de todos os que não nos chamassem conscientemente. E os que chamaram e tiveram coragem, aprenderam mais do que ousariam sonhar. Alguns de forma que...
Marmodeu se calou e pareceu a Harry que tinha algo que ele não sabia como dizer.
– Foi um erro tolo da minha parte... eu assumo – falou Mefistófeles, admitindo o que Azmodeu tinha calado. – Travei amizade com um humano. Admito que fiquei fascinado, jamais havia conhecido um que fosse tão inteligente, poderoso e, ao mesmo tempo, tão receptivo. Meu pacto com Fausto foi celebrado com grande alegria. Um bruxo com as capacidades dele, de posse de nossos segredos, conseguiria romper as barreiras que outros, como Mérlin, haviam colocado para nós. E Fausto... ah, ele queria saber tudo! Nada da sabedoria parcial ou limitada. Fausto não tinha medo de saber sobre todas as coisas, sem medida. Saber e experimentar. Convenci os meus a entregarem a ele segredos sem igual, na certeza de nossa aliança, mas, no fim, ele nos traiu. Me traiu! Me fez prisioneiro por séculos, recusou até mesmo o maior de todos os poderes, o poder sobre a morte.
– É uma questão de ponto de vista – disse Harry quando Mefistófeles silenciou, ruminando seu ódio. – Eu diria que ele recobrou a lucidez.
– Nesse caso – o demônio respondeu com a voz turva de perversidade – espero que esteja bastante lúcido para escolher entre a sua vida e a do seu filho.
Uma garra gelada circulou o pescoço de Harry e o impediu de responder. Risinhos rodaram por todo o círculo a volta dele.
– Sou eu que detenho o segredo da eternidade, Harry Potter. Eu, Mefistófeles, e somente eu! Por isso sou o chefe deles. Por isso, era necessário que eu estivesse aqui! Não somos eternos, não como carne, mas nossas almas migram quando nossos corpos não mais nos servem. E só eu sei como desalojar uma alma de um corpo e de como fazê-lo ser nosso. Jarbon sabe recobrar a vida, quando ela começa a falhar, e pode fazê-lo por séculos. Tilial ensina a transfigurar a aparência para nos mesclarmos a quem quisermos. Marmodeu, como nenhum outro, sabe instigar, naqueles que nos cercam, os sentimentos que nos alimentam e fortalecem. Merrick sabe desvendar os mais secretos desejos do coração humno... Mas a eternidade... essa... pertence a mim! Vê! Somos uma força muito superior a de um único homem ou bruxo.
– Olhe! – Azmodeu apontou para Voldemort. – Você o matou! Mas nós o trouxemos de volta! Invocamos sua alma por sete luas, usamos o poderoso cheiro do sangue inocente para romper a barreira entre os mundos e, quando vertemos o sangue das sete crianças sobre a terra, a alma de Voldemort já estava presa novamente à nossa dimensão. Não pense que você nos atrasou ou impediu nossos planos que qualquer forma quando libertou os pirralhos. Para Voldemort eles não eram mais necessários, embora você tenha nos impedido de fazer um pequeno ritual “particular” em nosso próprio benefício. – Harry definitivamente não gostou do tom que ele disse isso. – Mas não nos incomodamos, sabemos que logo não haverá nenhum impedimento a qualquer um dos nossos desejos. Ainda duvida do que somos capazes?
Criados por trouxas na primeira infância, Harry e Hermione conseguiam agora entender porque, apesar de todos os esforços dos bruxos em restringir a ação desses demônios, eles ainda eram matéria para os pesadelos de muitos dos não-bruxos. Harry sentia a amiga tremer colada às suas costas, e sabia que os pensamentos dela estavam no pequeno Sirius mais do que em qualquer outra coisa, mas ele não podia sucumbir. Os demônios queriam que ele ficasse toldado pelo medo, pelo ódio, pelo pavor. E só Harry sabia o esforço com que ele se controlava a cada palavra dita por eles. Porém, sua intuição lhe dizia para refletir sobre o que realmente o apavorava, lhe dizia para perguntar, para entender. Mandava manter o medo e a raiva controlados em sua mente e não deixá-los petrificar o seu coração. Voldemort arquejou mais uma vez, Bellatrix e Throop o sustentaram.
– Como colocaram Richard nisso? – Harry se voltou para Throop – Ele é seu sobrinho! Você não sente nada em vê-lo morrer dessa maneira?
– Quando nos colocamos a serviço do Lorde das Trevas, colocamos nossas vidas a seu serviço. Richard sempre soube disso.
– Mas ele não era um Comensal da Morte – argumentou Harry. – É pouco mais que um garoto.
Não havia sentimentos no rosto de Throop e ele lembrou a Harry a mesma louca fascinação que transformara Quirrel num braço de Voldemort.
– Você não devia ter pena dele, Potter. O que o trouxe aqui foi justamente a inveja por você e o desejo pela sua mulher. Richard foi um voluntário entusiástico.
Uma onda de náusea subiu até a garganta de Harry e ele achou que iria vomitar diante do descaso do homem perante o sofrimento tão óbvio do outro. Marmodeu e Tilial riam.
– Eu creio... – Mefistófeles voltou a falar – que está preocupado com a pessoa errada, Harry Potter. Talvez, ao saber exatamente quais coisas seu ex-colega concordou em fazer, você não lhe tenha tanta piedade.
– Nossa mágica – começou a explicar Marmodeu – não poderia trazer Voldemort de volta a qualquer momento. Precisávamos de um momento ideal. Precisávamos que seu assassino tivesse descendência.
– O quê?
– Você e Voldemort têm uma conexão única. A profecia ligou os seus destinos. O sacrifício de sua mãe lhe deu armas para igualar seus poderes. O ritual de sangue feito por Voldemort deu-lhe um corpo que descendia do seu. Vocês são iguais e diferentes em medidas extremas. Donos de grandes poderes, destinados um ao outro por uma identidade mágica que os aproxima e separa. No fim, só um existirá, mas para isso, terá de absorver o outro.
A fala fascinada do demônio terminou num silêncio profundo. Se havia outras pessoas por ali, Harry não era capaz de percebê-las.
– Sinto sua raiva aumentar, Harry Potter – Marmodeu inspirou como se estivesse diante de um perfume. – Muito bom...
– O que isso tem a ver com o meu filho? – Harry tentou ao máximo manter a voz muito fria e sua própria mágica sob controle.
– Poderíamos trazer Voldemort de volta da morte e lhe dar vida longa, mas não a eternidade, não enquanto você não tivesse filhos. Os humanos continuam em seus filhos e sem eles, os seus poderes estariam destinados a perecer. A vinda de um herdeiro era o sinal de que a identidade mágica e os poderes conquistados por Lorde Voldemort continuariam além de vocês dois. Logo, esse era o sinal. Poderíamos trazê-lo de volta e cumprir o pacto, afastando-o, finalmente, de toda a morte.
Quando soubemos que eram dois foi preciso saber qual deles seria o escolhido. Fizemos rituais e invocamos poderes muito além de sua compreensão para saber qual das crianças seria o receptáculo ideal. Tentamos até mesmo matar o mais fraco, ainda no ventre – Harry concentrou toda a força no estômago e na garganta para não vomitar. – Foram os poderes de sétima filha de sua mulher nos impediram. Contudo, o destino foi generoso, e quando nossos esforços anteciparam o nascimento, seu filho nasceu no mesmo dia em que Voldemort viera ao mundo. Nada poderia ser mais perfeito.
– Nós sabíamos – disse Tilial – que não poderíamos usar a criança antes da data designada pelos astros, tampouco pequena demais. Porém, assim que a criança nasceu, era preciso fazer a alma atravessar o portal dos mundos, a demora poderia nos fazer perdê-la para sempre. Era necessário uma carne... provisória.
– E Richard se ofereceu para isso? – perguntou Harry ainda nauseado e incrédulo.
– Ele sonhava em ter grandes poderes, em ser admirado – respondeu Tilial. – Queria se igualar a você. Mas, sua carne era frágil. Nossos rituais foram feitos para demônios, não para humanos. Foi preciso fortalecê-lo.
– Por isso vocês fizeram o ritual do roubo de poder e mataram Gerard Griffyn?
– Exatamente! – Confirmou Throop. – E quando o momento para o ritual apareceu, Richard estava pronto para servir ao mestre. Ele lançou a Maldição Imperius naquele tonto do Tibério Stuwart, e nos deu todas as informações que precisávamos para acessar o Portal dos Mundos que está nas mãos do Ministério (sim, Potter, existem outros).
– E Stonehenge?
– Voldemort foi morto em um círculo de pedras consagradas pela antiga magia, – explicou Marmodeu – somente em outro ele poderia reencarnar. É claro que não esperávamos que vocês chegassem tão depressa, contudo, ao final, nós saímos ganhando. Afinal, com um “pouquinho” de persuasão, seu amigo ruivo nos entregou o endereço de sua casa e a localização das dos irmãos. Ele foi bem útil, eu diria.
Foi preciso que Harry retesasse o braço com força para conter Hermione, que pretendeu saltar sobre o demônio. Ele agradeceu a escuridão e rezou para que ninguém tivesse percebido que havia outra pessoa ali. A outra parte de sua oração foi para que Rony e os outros chegassem logo. A demora já o estava deixando preocupado. Será que o sinal fora suficiente? Ou eles, por algum motivo, não estavam conseguindo encontrar a ilha?
Uma tosse seca e as pernas de Oates não conseguiram mais sustentar Voldemort.
– Milord! – desesperou-se Bellatrix. – Chega dessa conversa mole! – Seus olhos tinham fogo e pânico. – Precisamos fazer isso logo! Ele... ele está morrendo...
Mefistófeles olhou para o céu e muitos dos beusclainhs o acompanharam. Pelo olhar que ele e Azmodeu trocaram, ainda não era o momento exato.
– Precisamos fortalecê-lo! – Marmodeu fez um gesto e vários demônios saíram do círculo que cercava Harry e Hermione e correram em diferentes direções. Um deles foi se postar ao lado de Mefistófeles.
Os Comensais se empenharam em sair do caminho dos beusclainhs, que logo retornaram ao centro do círculo de pedras, cada um trazendo algum tipo de objeto que Harry não soube identificar de primeira em função da pouca luminosidade. Três deles empurraram com grande dificuldade um enorme caldeirão cheio até a frente do demônio que se postara ao lado de Mefistófeles.
– ‘Acho que é o tal de Jarbon’ – sussurrou Hermione. – ‘O tal que domina a poção que amplia a vida’.
Harry ouviu e não ouviu. Pouco lhe interessava o nome do demônio. Queria saber o que ele faria para fortalecer Voldemort e precisava descobrir, urgentemente, o que eles pretendiam com Lyan. Marmodeu acendeu, com um toque na base, o fogo sob o caldeirão e este começou a borbulhar quase imediatamente. Uma fumaça cinzenta arroxeada subiu em direção aos céus e diminuiu ainda mais a visibilidade sobre a ilha.
– ‘Espero que esse não seja o tal caldeirão de Pwyll que o Throop mencionou’ – Hermione voltou a falar na sua orelha.
– ‘Por quê?’ – os lábios de Harry nem se movimentaram.
– ‘Nossa superioridade numérica vai ir para o espaço. Eles poderão encher isso aqui de inferi com aquele caldeirão. É só colocar os ingredientes certos.’
– ‘Isso se os nossos chegarem’ – o pessimismo de Harry atingiu Hermione. A garota oscilou e ele resolveu manter a atenção no caldeirão. – ‘E se for? Como os impedimos?’
– ‘Só tem um jeito. Mandando algo vivo para dentro dele’. – Ela fez uma pausa. – ‘Nem pense nisso’.
– ‘Não pensei’ – Harry mantinha a atenção presa a cada gesto do demônio. – ‘Mandar um beusclainh lá para dentro conta?’
– ‘Não’ – lamentou Mione – ‘seria como mandá-lo para umas férias num resort. Mas eu empurro o primeiro que tocar um dedo no meu filho. Isso vale para os Comensais também’.
Harry não pode deixar de se perguntar o que haveria para aquele que entrasse lá. Morte? Ou algo pior? Por outro lado, ele não tinha nenhuma tentação à piedade se o “empurrado em questão” tivesse feito alguma coisa contra qualquer uma das crianças ou contra Gina.
Jarbon elevou a voz fina e esgoelada e começou a adicionar as ervas, fornecidas por seus companheiros, ao caldeirão.
– Do grande maléfico, o meimendro traz o broto. Sob a luz da Lua escondida, caem as folhas de um salgueiro torto. Do maléfico pequeno, a urtiga espanta o veneno. Giro, torço, corto e emendo, nada escapa quando Jarbon quer vida correndo.
O inocente unicórnio deu o chifre e a feia salamandra os olhos; a tartaruga de séculos despejou seu casco e as tétricas asas do morcego se transformaram num frasco.
Sou eu que mexo e eu que faço. Sou eu que viro e sou eu que passo. É só Jarbon que prolonga, quando a vida quer terminar num empacho.
O beusclainh serviu a poção numa taça, que pareceu a Harry, ser de algum metal escuro e se deslocou naqueles passos feios e arrastados até onde Voldemort mantinha-se em um Oates à beira da morte.
– Faça-o abrir a boca – ordenou para Throop. Este apertou os maxilares do sobrinho para que ele deixasse a poção, que manteria Voldemort forte e ele mais perto da morte, entrar.
– ‘Que coisa horrível’ – Harry soube que Hermione tinha escondido o rosto em suas costas para não ver.
– ‘O que isso vai fazer com ele?’
A moça segurou um soluço.
– ‘Mantê-lo vivo... e sofrendo, até que Voldemort não precise mais do corpo’.
Para quem imaginava já ter visto quase todos os níveis de perversidade, Harry se sentia preso dentro de um pesadelo. Uma parte de sua mente ficava duvidando e implorando para que ele acordasse. A outra parte era aquela que fazia seu coração ribombar contra a garganta e distribuía pelos seus braços e pernas a sensação de que ainda haveria pior.
Quando Jarbon se afastou, Voldemort estava voltando a ficar de pé. O suor frio ainda se espalhava pelo rosto cadavérico de Richard Oates, mas lá estavam novamente os olhos vermelhos, ofídicos, brilhando. E havia um grande triunfo neles.
– Perfeito! – a voz asmática de Mefistófeles também era exultante. – Agora Harry Potter, creio que já não duvida do que podemos fazer e, talvez... possa nos dizer qual a sua escolha ¬– disse tornando a colocar toda a sua atenção em Harry. – Antes do retorno de Voldemort, meus fiéis prepararam tudo para que o novo corpo a ser lhe dado tivesse poder, mágica e juventude para suportar uma alma escura e pronta para a eternidade. Seu filho era nossa escolha. Oh, não creio que haja necessidade de lhe descrever o ritual pretendido, já que você deve ter estudado as missas negras com grande afinco nos últimos meses. Estou certo?
Harry ofegou. Suas mãos tremiam incontrolavelmente e jamais, em toda a sua vida ele sentira tanta repulsa, raiva e ódio por alguma coisa como sentia por aquelas criaturas e a aquela gente que o cercava.
– Seus sete sobrinhos – prosseguiu sem piedade – dariam seu sangue mágico num ritual milenar para tornar o novo corpo absolutamente invencível! É claro que Voldemort não poderia usar os poderes da sétima, pois não sendo mulher, eles lhe são vedados, mas o teria em seu sangue para protegê-lo, pois em todos os aspectos da carne, ele seria filho de Harry e Gina Potter.
O resmungar baixinho de Hermione era a única coisa que mantinha Harry lúcido o suficiente para continuar seus esforços titânicos em controlar-se. Onde diabos estavam Rony e os outros?
– Veja Harry – Voldemort tinha a voz fraca, mas insuportavelmente viva, embora ele ainda fosse sustentado por Bellatrix e Throop – estava tudo preparado. Porém, ao contrário do que você pensa, não sou um bruxo de uma crueldade gratuita... Sou um homem de propósitos. Levei muitos anos da minha vida elaborando e adquirindo poderes que você usurpou! É somente isso o que quero de volta.
– Seu filho não sofrerá nenhum dano, Harry Potter – Marmodeu parecia deliciado com o desespero que aumentava em Harry a cada instante em que o céu permanecia escuro e o horizonte sem movimento – desde que você o substitua.
Harry teve certeza de que Hermione abafou um grito.
– Você está falando em...
– Seu corpo, Potter! – rosnou Voldemort e a voz de Oates pareceu a Harry muito fria e cortante. – Essa é a sua escolha. Ou você entrega seu corpo de bom grado para a minha eternidade (coisa para a qual você foi preparado desde o dia em que nasceu) ou eu tomarei o do seu filho e, depois, eu vou matar você com as minhas próprias mãos. Não vai ser difícil. Afinal, eu já matei meu pai uma vez, não é mesmo? O que você escolhe?
– Pensei que seus rituais não eram feitos para humanos. Logo, estarei imprestável como o Richard.
– Não – garantiu Mefistófeles – com você e Voldemort é diferente. A identidade mágica os faz iguais. Você É o corpo dele, Harry Potter. Vocês estão destinados a ser um!
Harry não acreditava mais naquela coisa de destino. De fato, ele sabia como o destino funcionava. Era preciso querê-lo, desejá-lo. Mas ele não tinha escolha se a alternativa para salvar Lyan era essa. Por outro lado, só ele sabia da extensão dos poderes que absorvera das horcruxes. Sabia ter poderes que mesmo Voldemort jamais tivera porque, quando Harry destruíra as horcruxes, ele havia recebido não somente os poderes de Voldemort, mas também força mágica dos objetos usados pelo bruxo. A idéia de que Riddle pudesse ter tudo o que ele continha a tanto custo era mais um pesadelo.
– ‘Cadê o Rony?’ – Hermione lamuriou.
Precisavam de reforços imediatos. Mesmo com todos os poderes de Harry, com a espada e o Graal ele não poderiam contra todos aqueles bruxos e demônios. Talvez não pudessem nada, mesmo se conseguissem juntar Gina a eles. Os olhos de Harry devem tê-lo traído buscando ajuda nos céus.
– Espera mais alguém, humano? – Tilial debochou. – Como acha que receberá ajuda numa ilha que não pode ser vista ou penetrada... E não parou de se mover desde que você chegou aqui.
Hermione fez um movimento convulsivo, batendo-se contra as costas de Harry. Ela e Harry perceberam juntos que, mesmo que o breve dragão de fagulhas tivesse sido visto, ele marcaria um lugar muito distante do que o que eles estavam naquele momento. O triunfo de todos à volta deles era bem visível.
– Viu, Pottezinho – ironizou Bellatrix fazendo aquela voz infantil e enjoada – como a gente sabe brincar direitinho. Oh! Ele achou que ia nos passar a perna... Ahh! Que fofo... ele não mudou nadinha!
Um riso de escárnio a fez contrair os ombros e arregalar os olhos na sua habitual expressão de louca. Os outros Comensais riram em concordância, o único a manter-se sério foi Malfoy. Os olhos dele cruzavam o céu como os de Harry. Ele parecia ainda não saber de que lado deveria ficar.
As alternativas eram poucas e Harry começou a pensar rápido em como poderia usá-las, ao menos para que Hermione, Gina e as crianças pudessem escapar. O problema era: “como?” Pensou no Graal, mas este voltara a pulsar de forma calma, querendo confortá-lo. Contudo, uma rebeldia conhecida se opôs a acreditar na pedra. A verdade, é que estavam sozinhos. Harry não conhecia os poderes do Graal o suficiente para ver onde ele poderia ajudá-lo. E o fato é que não adiantava olhar para o nada e esperar. Harry teria de agir com o que tinha. E ele não tinha muito, a julgar pela desvantagem que eram os poderes dos demônios que o cercavam.
– Então – falou quase recuperando o fôlego – é o que quer, Voldemort? O corpo que tem os seus poderes.
– É o justo – retorquiu o bruxo.
– O que me garante que você manterá meu filho vivo?
– Você terá o pacto com os beusclainhs – rosnou Marmodeu, como se Harry os tivesse ofendido. – Pelo pacto, nada acontece ao garoto.
– Ora Harry – Voldemort parecia mais seguro nas pernas de Oates agora – eu não tenho a intenção de fazer qualquer mal ao menino. De fato, eu pretendo criá-lo como se ele fosse meu próprio filho.
Harry engoliu em seco. Sentia o Graal, mas sua presença ali, querendo dar-lhe paz, era dolorosa e incômoda.
– E as outras crianças? O ritual... continua... sendo o mesmo?
Mefistófeles estreitou os olhos antes de responder.
– Não. Você sendo voluntário, o ritual é outro.
– Roubo de poder?
– Não.
Respirando fundo, Harry achou que poderia negociar um pouco mais.
– Então, se eu me entregar, nada acontece às outras crianças também?
Os beusclainhs se agitaram.
– Eu lhe garanto que elas saem vivas... daqui – disse Mefistófeles.
– E a minha mulher?
Dessa vez, Harry não teve dúvidas, não haveria uma resposta dúbia.
– Não. – Respondeu Mefistófeles, categórico. – Entenda Harry Potter, para que eu desaloje a sua alma, ela não pode estar intacta. Uma alma escura como a de Voldemort – e vocês dois se lembram disso – não pode habitar um corpo tão cheio de... sentimentos quanto o seu. Quando matou Voldemort há nove anos, você o fez em sua defesa e de outros. É preciso que você seja um assassino consciente, voluntário, que parta a sua alma. Que mate o que mais ama. E eu tenho certeza de que nada vai destruí-lo mais do que matar sua própria mulher.
Um vento frio subiu pelos tornozelos de Harry indo alojar-se em seu peito, agarrando-o com as unhas e puxando-o para baixo. A escolha não era entre ele e Lyan, mas entre Lyan e Gina. “Não mate” , tinha lhe dito Snape, mas se ele não a matasse, seu filho morreria e forneceria o próprio corpo para Voldemort. Ele fechou os olhos procurando pelo próprio ódio, queria estourar, pois nada mais importava. Mas não o encontrou. Achou só cansaço e dor. Nem mesmo quando Voldemort tentara possuí-lo no Ministério da Magia tantos anos atrás, Harry sentira tanta vontade de não se importar, de morrer, de deixar tudo aquilo para trás.
Como que esperando uma deixa, nesse instante, de trás de um dos grandes menires, um grupo começou a aparecer, materializando-se à diante do altar. Harry reconheceu os três demônios que haviam sumido e depois as silhuetas de Hector, Mel, Josh e Chantal em pé. Estavam muito parados e pareciam numa espécie de transe. Depois, sobre a tal pedra que parecia uma mesa de sacrifício, ele divisou os meninos pequenos: Kenneth, Sean e Sirius. Os três também pareciam estranhamente adormecidos. Hermione fez um movimento involuntário atrás dele. Por fim, saindo de trás do outro menir, uma figura feminina carregando um bebê.
– Dessa vez não há enganos, humano – assegurou Tilial.
Mefistófeles fez um gesto e Gina começou a caminhar até ele, avançando para a luz. Ela tinha os olhos fechados. Não estava ali. Quando parou, a poucos metros de Harry, o mundo inteiro parou.
– Pegue a criança – ordenou Mefistófeles e Marmodeu foi até lá e arrancou Lyan dos braços da mãe, que não ofereceu resistência. Quando ele se afastou, Gina tinha em suas mãos uma faca. – O grande maléfico brilha com a luz da morte, Harry Potter. E seu pequeno aliado despeja sangue dos céus. – Ele apontou para o alto e Harry viu Saturno e Marte muito próximos e intensos. – Esse é o momento.
Como que obedecendo, Gina começou a caminhar para Harry.
(Fim da primeira parte)
– – – XXX – – –
(1) O grande Maléfico é como a Astrologia denomina o planeta Saturno. O pequeno Maléfico é o nome dado ao planeta Marte. O primeiro é o augúrio da morte e da desgraça e o segundo do sangue e da guerra.
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