A chave



O cheiro do lanche preparado por Helmut deleitava as narinas de Werner Schmidt. Magro como uma vara de pesca, o homem de ralos cabelos louros como trigo nunca daria a impressão de que era um bom gourmet. Mas ele era de fato. Sabia saborear um fino prato da gastronomia francesa ou mesmo um gorduroso sanduíche americano. Não era dado a frescuras, como costumava dizer. Só fazia questão de duas coisas: ingredientes de qualidade e limpeza. Posto que comesse muito, Werner estava sempre incólume. O fino bigode claro que lhe dava um ar antigo nunca ficava sujo com molhos ou bebidas. E sua roupa nunca exibia manchas provocadas por alimentos. Aliás, talvez fosse impossível encontrar alguém mais limpo do que ele.

- Aqui está. Espero que esteja do seu gosto – disse Helmut, bonachão como de hábito.

- Estará, estará. Não me lembro mais há quantos anos freqüento este lugar. Mas posso lhe assegurar que jamais me decepcionei – respondeu Werner, com cortesia.

Sorriu, recolheu o troco, deixando algumas moedas de gorjeta, e partiu com seu lanche, meticulosamente envolto numa embalagem para viagem. Helmut conhecia as manias do sujeito magro. Por isso, arrumara o embrulho com esmero. Na verdade, era apenas isso que conhecia. Nunca lhe ocorrera perguntar se Werner era casado, se tinha família ou mesmo onde trabalhava. Se tivesse essa curiosidade, provavelmente não receberia respostas francas. O pacato e zeloso Werner Schmidt não lhe contaria que era um bruxo e que trabalhava no Ministério da Magia da Alemanha. Mais precisamente no Departamento de Mistérios.

Embora em sua família não houvesse sangue trouxa, Werner adorava o mundo não-mágico. Apreciava a comida e o estilo de vida. Julgava até que viver daquele jeito era mais divertido. Apesar de viver cercado de mistérios quase insolúveis, não se interessava pelos segredos da bruxaria. Via mais encanto nos pequenos dilemas dos trouxas: suar para carregar as pesadas compras dos supermercados, gastar tempo e energia na arrumação da casa ou caminhar largas distâncias para economizar o dinheiro do transporte. É evidente que ele só podia achar graça nisso porque não era obrigado a encarar tais sufocos no cotidiano. Eventualmente, Werner fingia que era trouxa. Escondia sua varinha com cuidado apenas para dificultar seu acesso a ela. Aquela noite era uma dessas vezes.

Werner aspirou o ar noturno com satisfação. Estava tranqüilo. Tinha sido mais um dia entediante no departamento. Aliás, nunca havia nada no trabalho que pudesse mexer com suas emoções. Em geral, chegava ao ministério, entregava sua varinha para inspeção, pegava-a de volta e logo se dirigia a sua sala. Abria o imenso cofre que ficava escondido atrás de um quadro que tomava todo o lado de uma parede e, com um piparote da varinha, livrava o ambiente do pó. Havia caixas e caixas lacradas guardadas naquele lugar. Diariamente, conferia se elas estavam alinhadas milimetricamente, como era seu costume deixá-las. E verificava se os papéis que as identificavam ainda exibiam letras brilhantes. Burocrático até o último fio de cabelo, o bruxo jamais tinha produzido uma gota de suor para verificar o que havia naquelas embalagens. Primeiro porque detestaria ficar suado. Segundo porque não era um sujeito curioso. Terceiro porque não era sua missão. E ele gostava de receber ordens, não de fazer as coisas por sua própria conta. Quando entrara para o ministério, tinha sido incumbido de proteger o cofre e mantê-lo organizado. Somente isso. A resolução dos mistérios caberia aos aurores. Mas eles não se interessavam por tais velharias. Tanto era verdade que fazia tempo que não passavam pelo departamento. Werner não gastou dois segundos para se recordar quando tinha sido a última vez. Lembrava-se perfeitamente do dia em que sua rotina fora alterada. Enquanto caminhava pelas ruas ermas de Berlim, sua memória evocou a madrugada em que fora chamado às pressas para retornar ao ministério. Tinha arregalado os olhos ao encontrar em sua sala um grupo de pessoas que nunca vira antes conversando nervosamente com o ministro, acompanhado de três aurores.

- Ah, você está aí – exclamou o ministro, exibindo um sorriso forçado. – Herr Schmidt, por favor, abra o cofre. Já tentei várias vezes, mas não consegui – completou, parecendo bastante contrariado com o fato.

- E nem seria possível, senhor. Só uma chave abre esse cofre. A minha – respondeu, puxando um cordão do interior das vestes. Na ponta, um objeto cor de bronze, pesado e zelosamente polido. Desconfiado, olhou para os estranhos e hesitou. – Podem me dar licença?

- Herr Schmidt, eles estão comigo – respondeu o ministro, com o rosto inflado como um balão.

Naquela ocasião, Werner dera de ombros, embora não tivesse aprovado a presença de tanta gente desconhecida no departamento. Mas achava que não devia contestar a decisão do comandante supremo dos bruxos alemães. Pegou sua chave e a colocou na fechadura com cuidado. Girou duas vezes para a direita e uma vez para a esquerda. Era um truque seu. Imediatamente, uma faixa de luz amarelada percorreu a porta, movendo-se como se fosse uma cobra. Deu duas voltas para a direita e de repente mudou de direção até completar uma volta para a esquerda. A luz se intensificou e o lacre mágico se rompeu, fazendo o cofre se abrir. O ministro adentrou o ambiente e pediu que os visitantes o seguissem. Só então Werner percebeu que um dos estranhos arrastava um baú antigo e empoeirado.

- Senhor, o que é isso? Não é permitido trazer objetos de fora para este lugar.

- Perdão, mas é que... – começou a se desculpar o homem, um rapaz de cabelos vermelhos que falava alemão com forte sotaque.

- Ele é um convidado do ministério, herr Schmidt. É um jovem valoroso que resgatou a Arca da Ordem dos Inseparáveis e a está trazendo para que nós a guardemos – cortou o ministro, irritado com o que considerou um excesso por parte de seu funcionário.

- Lamentamos chegar desse jeito, herr Schmidt, e obrigar o senhor a vir tão cedo para cá! Mas este é um objeto que realmente precisa ser bem protegido. Seus colegas aurores poderão lhe explicar melhor assim que sairmos – respondeu outro estranho, um bruxo de cabelos brancos e barba prateada que usava óculos em formato de meia-lua. Ao contrário do jovem, seu alemão era perfeito.

- Mas é preciso preencher os papéis para dar entrada a este baú e também...

- Você não tem mesmo a menor noção do que é esta arca, não é, Schmidt – bufou um dos aurores alemães.

- Qualquer que seja o mistério desse baú, as regras são claras neste departamento – retrucou Werner, cujo rosto adquirira um tom de beterraba.

- Ora, não vamos criar caso. Senão o que vão pensar estes nossos colegas ingleses, herr Schmidt? – disse o ministro, cada vez mais desconfortável com a situação.

- Eu não sei como vocês fazem em Londres, mas no meu departamento tudo é muito organizado – replicou, mortificado, olhando para os estranhos.

- Nós também não sabemos como fazem em Londres. Permita-me apresentar meus colegas. Este é Rony Weasley, que é candidato a auror, mas que tem vivido aqui, em Berlim, nos últimos meses. Esta é Nimphadora Tonks, auror do Ministério da Magia do Reino Unido. Devo salientar que não está alocada no departamento de mistérios?! Ela foi enviada para cá pelo nosso ministério porque esta noite o jovem Weasley, que é inglês, e mais alguns de seus colegas foram atacados por Comensais nesta cidade. Um deles, infelizmente, sucumbiu e não está mais entre nós. Esse homem, herr Dieter Gutmann, já foi condecorado por vocês no passado e era o último guardião desta arca. As investigações estão em curso e serão compartilhadas pelos dois ministérios. Eu sou Alvo Dumbledore, membro da Confederação Internacional dos Bruxos. Estou aqui porque sou amigo de alguma das vítimas. E graças também a uma liberação especial do ministério, em Londres. Não sou funcionário deles. Ou seja, tampouco sei como se procede nestas horas. A única coisa que lhe peço é que cuide bem desta arca. Nada mais. E serei eternamente grato por nos ajudar neste momento tão inglório, acelerando o processo. Ainda temos muitas tarefas a providenciar. Entre elas, um enterro – afirmou tristemente o bruxo de óculos de meia-lua.

O ministro suspirou de alívio quando o funcionário encerrou a discussão ao materializar diante de todos uma caixa semelhante às outras que estavam arrumadas no cofre. O rapaz ruivo levitou o baú e o fez repousar delicadamente na caixa. Werner tinha acabado de pegar o tampo para fechar a caixa quando o jovem bateu com a varinha na arca e a fez desaparecer.

- O que pensa que está fazendo? – grasnou, ofendido.

- É só um cuidado extra que herr Gutmann gostaria que fosse adotado – apressou-se a dizer.

- No meu departamento não fazemos assim... – começara Werner, tentando fazer a arca reaparecer, sem sucesso.

- Herr Schmidt, chega por hoje – interrompeu o ministro, cedendo a passagem para que Dumbledore e Tonks pudessem sair do cofre. – Lacre logo essa caixa. Estamos todos cansados e com o tempo correndo contra nós. Herr Weasley, por favor, me acompanhe.

O jovem fizera um aceno com a cabeça, despedindo-se. E Werner fechara o tampo e a cara para os aurores alemães, que se riram dele na hora em que saíram de sua sala. Tinha ficado tão aborrecido com tudo que se passara que se esquecera de perguntar ao rapaz de cabelos vermelhos que feitiço de ilusão tinha utilizado para camuflar o baú.

O funcionário do departamento de mistérios estava tão entretido nesses pensamentos que atentou depois que se desviara muito de seu caminho. “Isso que dá ficar lembrando de coisas que aconteceram há quase cinco anos”, lastimou-se. O bruxo estava nas cercanias do Portão de Brandenburgo, o famoso monumento da cidade. Levaria mais 15 minutos para chegar em casa e seu estômago estava fazendo ruídos por estar vazio. Resolveu se conformar. “Faz tempo que não passo por aqui. Não custa nada dar um passeio noturno”, disse para si. Arrumou a alça da maleta que carregava, pegou o embrulho do lanche e começou a comer enquanto andava pelo lugar. Subitamente, teve a sensação de que alguém o seguia. Olhou para trás, com a boca ainda cheia do sanduíche. Parou de mastigar. Ficou quieto até que viu um casal de japoneses tirando fotos a torto e a direito. Werner os encarou com uma ruga funda na testa e o par tratou de se afastar, intimidado.

- Turistas! – resmungou.

Atravessou o portão e saiu a esmo, engolindo o último bocado. Em seguida, tratou de bater a roupa para se livrar das migalhas. E soltou uma imprecação. Descobrira uma pequenina mancha de molho na camisa. Era quase invisível, porém bastava para mexer com os brios do bruxo. “Mein Gott, se eu tivesse minha varinha agora...”, gemera. Werner procurou em vão remover a sujeira com um lenço que sacara do bolso. Distraíra-se mais uma vez. O ruído de uma motocicleta, entretanto, chamou sua atenção. Parecia ter surgido do nada. A moto parou a poucos metros dele, jogando a luz alta dos faróis sobre o funcionário do ministério. Werner ergueu uma das mãos cobrindo a vista. Um homem inteiramente vestido de negro desceu do veículo. Apenas sua silhueta era visível. Um trouxa comum teria escapado, temeroso de um assalto. Mas o bruxo não imaginava que isso poderia acontecer com ele. O sujeito de negro saltou sobre ele, puxando sua maleta. Assim que percebeu o que estava acontecendo, Werner lutou, tentando se desvencilhar. Gritou, assustado, porém ninguém veio em seu socorro. O bruxo fez, então, o que podia fazer. Desaparatou. Protegido pela escuridão e escondido atrás de algumas árvores, Werner puxou o lenço novamente, enxugando o suor da testa. Pela primeira vez em sua vida, tinha sido atacado. À distância, via os faróis ainda acesos. “Deve ser algum bandido atrás do dinheiro de turistas. Escapei por pouco”, murmurou. Teria sossegado o coração se não tivesse pensado que no dia seguinte precisaria fazer um relatório, justificando seu ato. “Mas este não é um caso de mau uso da magia”, concluíra, afastando-se do lugar, doido para se ver em segurança, em casa. Não foi o aconteceu. Das sombras, o homem de negro reapareceu e lhe apontou uma varinha. Chocado com a cena, Werner não teve condições de desaparecer. Foi estuporado.


*****

Uma enfermeira gorducha olhava intrigada a ficha do paciente desconhecido que chegara naquela noite no hospital. Ela não compreendia por que o homem magro que estava prostrado na cama não recuperava a consciência. Seus sinais vitais estavam perfeitos. Assim como seus dados orgânicos. Tinha acabado de tirar a pressão do sujeito. Estava normal. Dirigiu-se à porta até que ouviu um gemido.

- Muito bem. O senhor acordou – saudou a enfermeira, retornando à beira do leito.

- O que houve? – perguntou Werner, completamente assombrado de se encontrar ali. – Onde estou?

- Relaxe, senhor. Isto aqui é um hospital. Policiais encontraram o senhor desmaiado, perto do Portão de Brandenburgo. Um casal de turistas japoneses disse que viu o senhor ser atacado por um ladrão numa moto. Mas eles também disseram que, de repente, o senhor sumiu.

- Como?!

- Foi o que perguntamos. Como? Ah, eles estão meio confusos. Porque também tiveram a impressão de ter visto o atacante desaparecer. Bom, eles não falam nada na nossa língua e arranham o inglês. Talvez não tenham se expressado direito. E o senhor, o que nos conta?

- Eu não sei. Eu tinha fugido. Só que de repente esse homem apareceu na minha frente.

- Quer que eu chame o policial de plantão? Ele pode te ajudar.

- Policial? Não! Eu preciso falar com um auror... – respondeu, atrapalhado.

- Um o quê? Acho que não entendi.

- Oh, é verdade! Isto é um hospital de trouxas...

- De quê? – espantou-se a enfermeira. – Bem, o ataque foi traumático para o senhor. Não encontramos nenhuma marca de violência. Nem sequer um galo na cabeça. Mas certamente provocou algum colapso nervoso. O senhor apagou de um jeito que não conseguimos te despertar. Fora isso, o senhor está ótimo.

Werner olhou para si e notou que estava usando uma espécie de camisola branca.

- Onde estão minhas coisas? Minhas roupas? Minha maleta?

A enfermeira apontou um armário. O bruxo saiu da cama e correu até o móvel, procurando seus objetos com desespero.

- Calma, senhor. Tudo o que os policiais encontraram está aí. Eles vasculharam a maleta em busca de seus documentos. O ladrão deve ter levado porque não acharam algo que pudesse identificar o senhor. Nada. Nenhum cartão de crédito ou mesmo um passaporte. Aliás, qual seu nome? É daqui mesmo? Ou está em Berlim a passeio?

O bruxo, entretanto, não respondeu. Estava pálido. Depois de revirar suas coisas notou que apenas um objeto faltava. A chave do cofre do departamento de mistérios.

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