Capítulo 2
Cambaleando enquanto tentava levantar o malão, que agora parecia pesar cinco vezes mais, Harry se sentia um idiota. Tinha certeza de que o rosto vermelho denunciava seu embaraço. Ao seu lado, Ginny, que tentava com as mãos trêmulas acomodar a gaiola de Hedwig no porta-malas, também estava longe de ter a autoconfiança que demostrava no colégio. Estava visivelmente constrangida pela situação. Levou mais de um minuto até que um dos dois decidisse quebrar o silêncio quase palpável que se estendia entre eles.
- Er... Pequeno este porta-malas, né? Mas acho que ela está bem... É, apoiada no malão assim ela não cai mais – e com um baque surdo que encobriu um pio rabugento de Hedwig, Ginny bateu o porta-malas do novo carro dos Weasley.
- O Ron...?
- No beco diagonal com a mamãe. Foi comprar um chapéu novo pro casamento, sabe. O velho chapéu do meu tio-avô que mamãe queria que ele usasse não combina nada com o traje de gala que o Fred e o George deram pra ele. Ele se recusou a subir no altar com aquela coisa horrível, e como ele vai ser o padrinho... – ela explicou, enquanto contornava o carro, sentando-se no banco do motorista.
- Mas o Charlie...?
- Não vai poder vir. Ele já tinha se programado pra daqui a uma semana, e com a mudança na data o posto de padrinho sobrou pro Ron. O Bill não conseguiu escolher entre o Fred e o George, então... – O Ford Taunus começou a se mover lentamente pela rua - E com você, Harry, está tudo bem?
- Ah, sim, tudo certo... Quer dizer, essa cena que você viu... A despedida dos meus tios, não foi tão mal quanto parece... – Mas sem achar nenhum argumento que pudesse ajudá-lo a mostrar que realmente não havia sido ruim, ele achou melhor se calar.
Mais alguns minutos de silêncio constrangedor se seguiram, até que Harry achou que podia se fazer útil.
- Naquela esquina, virando ali, depois do Largo das Magnólias, tem um beco. Acho que de lá podemos subir com o carro sem ninguém ver.
- Subir? – e uma expressão confusa passou pelo rosto de Ginny por um segundo – Ah, não... Não, Harry, este não voa... Fred e George deram este para o papai quando os negócios começaram a andar bem, e ele ainda não teve tempo de enfeitiça-lo. Vamos ter que ir no chão, como os trouxas.
Harry sentiu os músculos de seus ombros se contraírem. A idéia de enfrentar uma longa viagem ao lado de Ginny era extremamente desconfortável. Quantos desses silêncios constrangedores caberiam entre a Rua dos Alfeneiros e A Toca? Como se tivesse lido seus pensamentos, Ginny ligou o rádio, e a voz grave do locutor do jornal de Little Whinning encheu o ar.
- ...continua prejudicada em função do tremor de terra que ocorreu na manhã desta quarta-feira em Londres. Tremores secundários foram sentidos nas cidades vizinhas, mas ao que parece não há nenhuma vítima fatal. De qualquer forma, você que está saindo de casa agora, é melhor não contar com o metrô durante o dia de hoje. As autoridades competentes ainda não tem nenhuma previsão para que a rede volte a funcionar, já que ainda não se sabe a origem deste tremor que deixou a região sem eletricidade. Voltaremos a qualquer momento com mais notícias. Vamos agora à previsão do tempo...
E o resto da viagem foi preenchido por discussões sobre o tempo, sobre como a nova música das Weird Sisters lembra o estilo dos Holyhead Harpies no começo da carreira, sobre banalidades que os dois se esforçavam para estender pelo maior tempo possível.
Pouco mais de uma hora depois a paisagem começou a ficar mais familiar. Era entranho chegar na Toca por terra. Todas as vezes que tinha estado lá ele tinha chegado voando ou viajando pela Rede de Floo, mas o cheiro da grama misturado com a fumaça do almoço cozinhando e a confusão de sons dos objetos mágicos trabalhando dentro da casa eram inconfundíveis.
À porta da casa não estavam os caldeirões enferrujados e as botas de borracha de sempre. Havia sido instalado, claramente de improviso e provavelmente por mágica, um chafariz de mármore branco com um anjo (que, se Harry não estivesse enganado, era o mesmo gnomo enfeitiçado que enfeitava a árvore de natal no ano passado) que jogava água com a ponta dos dedos nos muitos arranjos de flores que descansavam encostados na parede. Estátuas de gelo nas mais variadas formas brilhavam no sol forte da manhã e junto à cerca na lateral da casa se estendia uma tenda lilás sob a qual Fleur e uma bruxa que Harry não conhecia conjuravam todos os tipos de mesas e cadeiras, bandejas, taças e toalhas imagináveis.
- Ah, esqueci de contar – falou Ginny, ao ver a cara de espanto de Harry pelo retrovisor – a família da Fleur está aí. Nós deixamos a Toca pra eles e vamos dormir na sede da Ordem nos próximos dias. É mais seguro pra você lá. Pra todos nós, na verdade. Qualquer um que ficar sob o mesmo teto que a Fleur nos próximos três dias vai estar correndo sério risco de vida!
E com a risada que nenhum dos dois conseguiu conter todo o mal estar entre eles se desfez, e pela primeira vez Harry conseguiu acreditar que poderiam voltar a ser só amigos, como haviam sido até um ano atrás.
Enquanto desciam do carro e passavam pelo que costumava ser um armário de vassouras, mas agora havia se transformado em enorme mostruário de diferentes cores e estampas de tecidos, Hermione desceu os degraus da entrada gritando alguma coisa que Harry não conseguia entender para alguém dentro da casa.
- Ela me enlouquece! Juro que eu tento me controlar, mas ela realmente me enlouquece!!! – ela continuou gritando para Ginny enquanto atravessava o gramado desviando das galinhas que ciscavam a terra, e levou alguns segundos pra tomar conhecimento de que havia mais alguém ali – Ah, Harry, você já chegou!
- O que foi dessa vez?
- Bichento. Ela diz que está com alergia do pêlo dele, que não pode subir no altar ao lado da irmã com o nariz inchado e vermelho, que é melhor eu prendê-lo se não quiser que ele acabe petrificado. Ela que experimente encostar aquela varinha em um pelo do Bichento... aí sim ela vai ver o que é um nariz inchado e vermelho!
- É pior do que a irmã, se é que isso é possível... – disse Ginny, olhando torto para Gabrielle Delacour, que atravessava o gramado saltitando em direção à tenda lilás para se juntar às outras duas nos trabalhos de decoração da casa.
Pelo lado de dentro a Toca continuava exatamente a mesma, aconchegante como sempre. Na cozinha as panelas se mexiam sobre o fogão, as facas trabalhavam descascando algumas batatas enquanto na pia a louça do café-da-manhã se lavava sozinha. Tinham acabado de se sentar à mesa quando Bill apareceu à porta.
- Ah, Harry, é você...
- Oi, Bill – Disse Harry, se esforçando para disfarçar o choque ao ver as marcas da luta contra Greyback no rosto dele. Além das cicatrizes que atravessavam toda a sobrancelha direita, deixando-a estranhamente angulada, passavam pelo nariz cujo formato havia sido completamente alterado, e se acabavam na bochecha direita com um fundo onde deveria estar o osso da maçã do rosto, havia outras marcas que começavam abaixo do queixo e se perdiam no meio dos pelos acinzentados que saiam pelos botões abertos de sua camisa branca.
- Pensei que fosse mamãe e Ron, ou Fred e George. Estou preocupado com eles. Parece que aconteceu alguma coisa em Gringotes hoje cedo e o Beco Diagonal está o caos. Segundo o Profeta Diário o Ministério ainda não conseguiu descobrir se foi acidente ou se foi intencional, mas parece que uma parte dos túneis que levam aos cofres desabou. Já tiraram uma dúzia de duendes lá de baixo, mas nenhum deles fala coisa com coisa.
Instintivamente os quatro olharam para o relógio, que havia novamente sido pendurado na parede, e mostrava o Sr Weasley, Bill e Ginny em casa e os gêmeos, a Sra Weasley e Ron a caminho. Harry deduziu que aquela bola de metal retorcido, pendurada molemente para baixo, era o que um dia havia sido o ponteiro de Percy.
Poucos segundos depois uma luz verde surgiu na sala, e da lareira sairam Fred e George, seguidos pela Sra Weasley e Ron. Sacudindo as cinzas dos cabelos, os quatro retomaram a conversa que aparentemente estavam tendo antes de passarem pela lareira.
- Mas é impossível roubar Gringotes! Todo mundo sabe disso! Ainda mais agora, com a segurança reforçada... – disse Ron.
- Nada é impossível! – respondeu George.
- Pensei que crescendo ao nosso lado você já tivesse aprendido isso – acrescentou Fred.
- Harry, querido, você já chegou! – espantou-se a Sra Wealsey – Então já podemos almoçar! Ginny, me ajude com os pratos! Mione, você acha que consegue aumentar um pouco a mesa? Acho que está meio apertada pra todos nós...
E enquanto delegava ordens pela cozinha ela se aproximou de Harry e verificou se ele não havia sido mal alimentado nos últimos quinze dias em que estivera na casa dos tios. Com um afago que deixou um rastro preto de fuligem em sua bochecha, ela pareceu ter se dado por satisfeita, e subiu as escadas para deixar no andar de cima a sacola com o novo chapéu de Ron.
- Fleur, Gabrielle, Valentine, o almoço está na mesa! – Ela gritou pela janela da escada enquanto passava, e voltando-se para a sala – Fred, George, Ron, lavem essas mãos antes de comer! – e para o andar de cima - Arthur! Pode descer, o almoço está pronto!
Menos de cinco minutos depois a cozinha abrigava confortavelmente a família Weasley e seus convidados. Valentine Delacour, a mãe de Fleur, comia porções generosas de batata, e, entre uma garfada e outra, elogiava a comida da Sra Weasley, que sorria fingindo não ver as migalhas que voavam enquanto ela falava. Seu nariz pronunciado e seus cabelos castanhos não lembravam em nada o semblante de Fleur ou mesmo o de Gabrielle. Era óbvio que a parte veela da família vinha de Sebastien, o pai. Era dele que as garotas tinham puxado os cabelos e os olhos claros e os traços finos. Mesmo estando um pouco castigado pelo tempo, dava pra ver que ele tinha sido bonito um dia. Ele discutia animadamente com Bill sobre a legalização da caça aos dragões no território francês.
Em meio ao barulho da mesa, aproveitando que Hermione e Ginny trocavam técnicas de feitiços para alisar os cabelos e Fleur e Gabrielle falavam em francês, olhando furtivamente para Bichento que dormia em um cesto no canto da sala, Harry conseguiu finalmente conversar em particular com Ron, Fred e George.
- Quer dizer que foi um assalto a Gringotes?
- Ao que tudo indica não – explicou Ron – parece que foi só um acidente mesmo. Um problema nos túneis. Quer dizer, aquele lugar existe a milhares de anos, era de se esperar que alguma hora uma coisa assim acontecesse...
- Essa é a sua opinião, irmãozinho – interrompeu George – pra mim a coisa foi toda premeditada.
- É... aquele barulho tinha mais cara de explosão do que de desabamento – completou Fred – Só não consigo imaginar que criatura burra pensaria em assaltar um banco explodindo seu único caminho de saída. Espera aí, Ron, você estava lá, tem certeza de que não foi coisa sua?
- Muito engraçado, Fred... É por isso que eu acho que não foi assalto. Não é tão fácil passar pela segurança daqueles duendes. Alguém inteligente o suficiente pra enganá-los não ia cometer um erro tão estúpido.
- Mas então – ponderou Harry – se foi uma explosão, mas não foi um assalto...
- Ninguém sabe ainda o que foi, Harry – interrompeu a Sra Weasley, que entre uma garfada e outra perambulava pela cozinha certificando-se de que todos estavam bem servidos – E se você quer um conselho, deixe essa história para o Ministério – ela acrescentou em um tom mais alto, enquanto procurava apoio no olhar do Sr Weasley.
- É, Harry – ele concordou – acho que você já tem muito o que pensar sem se preocupar em fazer trabalho de polícia. Deixe nossas autoridades trabalharem sozinhas dessa vez.
- Pra eles convencerem o presidente do Banco a tirar algumas fotos entrando no ministério e apertando a mão do Ministro da Magia e fingirem pra todo mundo que estão fazendo um trabalho sério de investigação? – perguntou Harry entre os dentes, sem conter a ironia na voz. Ele já não conseguia conceber que, depois de tudo que ele tinha enfrentado, as pessoas ainda pensassem tanto em mantê-lo longe de problemas.
- Se você tivesse concordado em fazer isso, talvez muitas coisas tivessem sido diferentes, Harry – disse Arthur, olhando de lado para o rosto deformado do filho.
- Não foi culpa minha... o que aconteceu com Bill... com Dumbledore...
- Não estou dizendo que foi, Harry – ele respondeu com uma voz de quem estava cansado demais para discutir – só estou dizendo que às vezes ter o apoio do Ministério pode ajudar a evitar tragédias. Afinal o Ministério tem muito mais aurores do que nós temos na Ordem, tem equipes treinadas, tem feitiços especiais. Só quero evitar que mais pessoas importantes pra mim acabem machucadas ou mortas. E isso inclui você.
Essa última frase deixou Harry completamente desarmado, sem qualquer argumento para responder, e sem nenhuma vontade de procurar um. Pelo resto da refeição as conversas animadas se transformaram em sussurros, e os assuntos se reduziram aos eventuais “me passa o purê, por favor?” e “você tem certeza que não quer mais um pouco de rosbife?”.
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