O Pingente
Seus dedos finos afastaram o lenço de algodão e com delicadeza entrelaçaram-se à correntinha de ouro branco. A retirou da caixa de marchetaria com todo cuidado, examinado-a pela luz da vela que havia acendido em sua penteadeira.
Pousou o pingente cravejado em diamantes na palma ligeiramente suada de sua mão direita. “B” de Black. Conspurcado, ironicamente, pelo mesmo sangue que lhe dava significado. As rubreas máculas, já secas, eram vestígios da doce e mórbida infância.
Colocou a corrente em volta do pescoço, o metal gelado em contato com sua pálida tez, o pingente caiu por dentro de suas vestes, alojando-se em seu peito, o ônus daquele bibelô instaurando-se em sua existência mais uma vez.
Na primeira ocasião, ela tinha apenas nove anos de idade. Era certamente uma jóia exagerada para uma criança, mas fora a maneira mais eficiente encontrada por seus pais para mostrar-lhe o peso de ser a última Black.
Ela lhes pertencia. Todas elas, prisioneiras de sua estirpe, cujos sonhos de noites de chuva eram apenas pueris desejos de três ingênuas indigentes de amor.
Ela talvez soubesse o que lhe esperava, mas a compreensão era menos relevante que o respeito a seus progenitores, e Narcisa fechou-se em um casulo mudo. Mas a incauta Bellatrix tinha já um poder libertador sobre a irmã.
As duas correram descalças pela chuva, livrando-se da imundícia daquela casa opressora, esquecendo-se que as correntes corriam fundo, em suas veias. Era uma tarde de verão semelhante àquela.
As árvores fechavam-se cada vez mais a sua volta, abafando os ruídos distantes do mundo real. Ali poderiam ser o que quisessem. Só queriam ser elas mesmas. Selvagem Bella selvagem. Sonhadora Cissy sonhadora.
Pararam às portas do mausoléu. O reduto funéreo dos Black. Bellatrix empurrou as pesadas portas de carvalho e as duas entraram em seu mórbido lúdico refúgio.
Bella acendeu uma tocha, mas a manteve bem distante. Elas adoravam o frio correndo por seus ossos, prestes a rachá-las ao meio, causando-lhes agradável dor.
Sentaram-se junto ao túmulo de seus antepassados, Cissy deitou sua cabeça no peito da irmã para que esta lhe contasse uma história. Bella tirou o livro de contos detrás de uma placa funerária. Mas Bella fizera treze anos e treze anos era uma idade em que contos de fada não fascinam mais as pessoas como antes.
- Cissy, vamos fazer um pacto?
- Um o quê?
Bella levantou-se em um pulo e foi mexer na caixa funerária atrás do altar. Cissy observou-a curiosamente. A morena tirou um pesado cálice de prata da caixa e o pôs sobre o altar. Seus escuros olhos azuis brilharam fantasmagoricamente, enquanto pressionava sua varinha contra seu antebraço, até que um fluído vermelho começou a jorrar direto para o cálice.
- Aproxime-se Cissy.
É estranho quando temos a sensação de que sabemos exatamente o que vai acontecer em seguida, mas ao mesmo tempo tudo está obscuro e apesar de sabermos que devemos evitar o que está para acontecer, não o fazemos, deixando a nossa moral o trabalho de arrependimentos.
Crianças não o fazem com freqüência, mas elas eram crianças Black. E crianças Black viviam em uma constante de pecados e culpas, sorrisos e lágrimas. Crianças Black eram deliciosamente errôneas e devastadoramente conscientes. Bom, não Régulo. Régulo era apenas mimado.
Assim Narcisa viu escorrer para o cálice também seu sangue. Bellatrix mexeu o conteúdo do cálice e então encarou a irmã mais nova com muita seriedade.
- Cissy, eu te ofereço meu sangue, minha existência, e tomo teu sangue, tua existência, em prova de minha lealdade eterna a você.
Então ela bebeu. Como uma pequena vampira, sugando para si tudo o que podia. Promessas, amor, lealdade. Coisas que facilmente poderiam ser perdidas. Coisas indignas dos Black. Mas Bellatrix as desejava, e Bellatrix tinha tudo o que desejava.
- Sua vez. – ela ofereceu o cálice à irmã. –
Cissy sentiu um arrepio percorrer-lhe. Não pelo ritual em si, certamente uma inventividade de Bellatrix, normal a crianças ricas entediadas pelo mundo luxurioso que era mantido fora de seus alcances por horas de dormir e mesas de jantar de crianças e colégios internos. Foi a fatídica promessa que perturbou-lhe a razão, mas elevou-lhe o espírito.
- Para todo sempre, Bella, leal a você, minha amada irmã. Eu aceito teu sangue, vindo de teu coração.
E bebeu também.
Narcisa foi tirada de suas divagações por uma leve batida a porta. Ela encarou a si mesma no espelho. Viu sua criança interior desaparecer de seus olhos para as sombras, talvez persuadindo algum capricho extraordinário em sua imaginação, talvez retirando-se para um longo sono.
Aquela presença a invadia e envolvia e a puxava para a realidade com cruel intensidade. “Você é uma mulher agora”, sussurravam-lhe os fantasmas do passado ao pé do ouvido em um agudo assobio. Ou seria a gélida voz de seu namorado?
- Narcisa, nós vamos nos atrasar.
- Eu estou pronta.
Ela fechou a caixa de madeira, encerrando ali aquela delícia de fantasias extasiantes próprias da pouca idade, à perspectiva de muitas visitas futuras em tardes de verão chuvosas.
- Lúcio e Narcisa, meus queridos, entrem.
O casal platinado aproximou-se de Slughorn, com sorrisos falsos em seus semblantes angelicais. O velho Horace cumprimentou-os energicamente.
- Lúcio, tem alguém aqui que quero que conheça.
Os três aproximaram-se de um bruxo moreno, de porte atlético e distinto e sorriso simpático.
- Este é Ernesto Kohn, dono do Pludmere United. Ernesto, esse é o herdeiro Malfoy, Lúcio e a adorável caçula dos Black, Narcisa.
Após os cumprimentos, Narcisa afastou-se. Foi servir-se de um pouco da fabulosa comida que o professor servia.
- Narcisa.
Ela virou-se para verificar quem havia falado com ela. Sorriu simpaticamente.
- Fabian.
- Como vai?
- Muito bem. E você?
- Maravilhosamente.
- Isso é porque você não tem N.O.M.s esse ano.
Os dois riram. Narcisa e as irmãs freqüentavam a casa dos Prewett quando eram crianças. Adoravam brincar com Gideon e Fabian. Mas eles foram ambos para Corvinal, causando o afastamento entre os jovens.
Fabian, um ano mais velho que Narcisa, tinha se tornado um atraente homem. Atlético, por ser artilheiro do time da Corvinal, Andrômeda costumava dizer que Fabian era dono dos olhos mais sinceros e doces que já vira. Realmente os olhos verde-oliva do garoto eram um atrativo, e com seus ondulados cabelos cor-de-mel formavam um conjunto incrível, mas era pelas covinhas dele que Narcisa sempre fora atraída.
- Posso pegar um pouco de hidromel pra você?
Ela olhou de esguelha para Lúcio, completamente entretido em uma entediante conversa de negócios, cheia de números e estatísticas.
- Sim, por favor.
Os dois sentaram-se no canto da sala e desataram a falar dos velhos tempos.
- Quem vive de passado é museu, vamos falar do agora. – ele sugeriu. –
- Certo. Como anda você?
- Bom foi uma lástima perdermos a Copa de Quadribol, mas todos os times estavam excelentes esse ano.
- Certamente. – retorquiu ironicamente deixando evidente seu desprezo pelo assunto. –
- Eu acabei de comprar um cavalo alado fabuloso.
- Que tipo de cavalo alado? – Narcisa sempre tivera certo encantamento por cavalos alados e desde criança, Fabian era um exímio cavaleiro. –
- É um puro-sangue alemão, todo dourado, igual ao seu cabelo. – Fabian passou os dedos pelos sedosos fios de Narcisa. – Você iria adorá-lo.
- Eu gostaria de conhecê-lo algum dia.
- E você? Como anda?
- Atarefada por causa dos N.O.M.s e um pouco cansada de tantos estudos.
- E brigada com Lúcio.
- Não.
- Você está aqui, ele está lá. Você parece chateada.
- As coisas poderiam estar melhores, sem dúvida. Mas é o curso natural das coisas, aprender a ultrapassar obstáculos, resolver problemas.
- Você passa tempo demais naquelas masmorras. A vida não precisa ser um martírio.
- Não há recompensa sem esforço, Fabian.
- O amor deve ser incondicional, Cissy.
- Podemos mudar de assunto?
- Claro. Falamos do passado e do presente, vamos falar do futuro.
- Sim. Você primeiro. – o futuro era uma temática particularmente incômoda de se discutir com qualquer um que não fosse muito íntimo. –
- Eu decidi ser fotógrafo.
- De moda, da natureza?
- Da realidade, Cissy. Da guerra. Não acha importante nós documentarmos tudo isso que anda acontecendo, para que todos saibam e não repitam nossos erros?
Ela abaixou os olhos e ficou observando suas próprias pernas, seu estômago se revirando. Tentou colocar a expressão mais dissimulada em sua face.
- Sim. – ela o encarou finalmente. –
- Eu decidi ficar um ano em Praga estudando fotografia quando acabar Hogwarts.
- Dizem que Praga é lindíssima. Eu talvez viaje um pouco quando acabar Hogwarts.
- Onde você quer conhecer?
- Rússia, China, talvez o Brasil.
- Eu fui lá, Brasil. Você não vai gostar. Faz calor, e você não gosta de calor e as pessoas são calorosas, e eu sei que você é bem reclusa.
Narcisa pegou-se pensando em Gideon. Sem conseguir controlar-se, soltou uma risada. O fato de que ela estava pensando em Gideon daquela maneira no meio de um óbvio flerte despertou-lhe a consciência de que não podia evitar, só tinha olhos para Lúcio.
- Eu disse alguma coisa engraçada?
- Não. Me desculpe. É que quando eu era criança eu tinha uma queda por você e você tinha uma queda por min...
- E nós brincávamos de medi-bruxo.
- Não diga isso em voz alta. Eu gosto de você, você é o máximo, mas nós estamos em direções opostas aqui.
- Eu sei que você e Lúcio se gostam...
- Nos amamos. É bem definitivo. Mas mesmo se não fosse, você e eu jamais funcionaríamos. Se é que você me entende...
Fabian a observou por alguns segundos e uma óbvia decepção denunciou-se em seu rosto.
- Você vai seguir os passos da Bella.
Narcisa encarou a parede.
- Por favor, seja prudente Narcisa. Você não é como ela.
- Eu sou mais fraca.
- Menos corajosa talvez. Mas a coragem da Bella nunca a levou a lugares melhores. Quando nós brincávamos, era ela sempre que terminava machucada ou de castigo. Tente não se machucar ou ficar de castigo.
- Eu queria saber de Gideon.
- O que tem ele?
- Ele está solteiro?
- Eu pensei que você e Lúcio fossem definitivos.
- Andrômeda sempre gostou muito de Gideon. E seria bom ela encontrar um sangue-puro decente antes que ela se perca de vez.
- Deixe Andrômeda fazer o que ela quiser.
- Se ela fizer o que ela quiser ela vai sofrer como um elfo. Vai acabar expulsa da família, humilhada, passando necessidades. Eu só quero o melhor pra Andie. Meus pais vão querer obriga-la a casar com alguém velho, feio, mal-humorado e com mau-hálito. Eu quero convence-la a casar-se com alguém de quem goste.
- Bom, Gideon vai ser o próximo campeão de duelos da Grã-Bretanha. Ele vem tornando-se muito popular entre as garotas.
- Que garotas?
- Inga Rosier.
- Inga? Jura?
- Sim. Algum problema?
Inga era uma ano mais jovem que Bella e era o mais próximo que a irmã já teve de uma amiga, sem contar Narcisa. Ela era tão imprudente quanto Bellatrix e Narcisa nunca tivera dúvidas de que ela se juntaria a Voldemort. Mas agora tinha suas dúvidas.
Gideon jamais namoraria esse tipo de garota. Mas a lembrança de Inga lhe trouxe outra idéia. Até onde ela sabia, Cao Rosier ainda era solteiro. Era bonito, jovem e amigo de Severo e Rabastan. Mas Andie jamais gostara muito de Cao.
- Narcisa. – Slughorn chamou antes que a menina pudesse responder Fabian.
Ele estava agora jogado em sua poltrona, saboreando os abacaxis cristalizados que Lúcio lhe comprara. Ernesto aparentemente já tinha ido embora e Lúcio estava sentado ao lado do professor. Algumas outras pessoas já haviam se retirado.
- Venha se sentar ao meu lado, minha querida.
Ela sabia que “ao meu lado” significava ao lado de Lúcio e foi onde ela se situou segundos depois. O restante dos alunos se reuniram em volta. Narcisa evitou encarar Lúcio e observou o pequeno grupo reunido ali. Severo, Rabastan, Fabian, Lílian, Remo, Tiago, Sirius, Frank, Alice, e mais alguns. Um grupo atraente, ela tinha que reconhecer.
- Então Professor, quem você apoiará para Ministro da Magia?
- Lúcio, Lúcio, que menino impertinente. – Slughorn balbuciou sério. Todos viraram-se para Lúcio, nem um pouco constrangido. Narcisa também manteve-se firme. Então Slughorn abriu um grande sorriso. – Você sabe fazer as perguntas certas na hora certa, meu garoto. Daria um Ministro genial. – Lúcio sorriu. – A verdade é que eu não simpatizo com nenhum dos candidatos. Mas Fudge me parece mais persuadível, se é que você me entende.
- Claro que entendo. – Lúcio emendou com um sorriso. Narcisa sabia que Fudge era a óbvia escolha das famílias tradicionais, inclusive os Malfoy e os Black, pois era um homem facilmente manipulável. –
Os Sonserinos presentes sorriram também, mostrando certo deslumbramento pelo garoto. Lúcio tinha o carisma dos líderes natos. E tinha já seus servos. Apenas Severo mostrou-se indiferente a influência de Malfoy. Narcisa apenas recostou-se contra o peito de Lúcio, ainda contrariada, mas mostrando apoio àquele que seria seu marido, e ele acariciou o braço dela com certa pose de dono, deixando ainda mais irritada.
Slughorn sorriu, e mais uma vez o casal sorriu falsamente.
Narcisa e Lúcio foram os últimos a deixar a sala de Slughorn e quando entraram em sua sala comunal, esta encontrava-se às moscas. O fogo já havia extinguido-se e estava tudo tão escuro e frio. Narcisa sentiu Lúcio aproximar-se por trás e tocar com a ponta dos dedos em seus braços.
- Você saberá quando chegar à hora certa.
- Eu não sou uma política muito boa, Lúcio.
Ele passou um dos braços pela cintura dela trazendo-a para si. Ela sentia-se tão segura, mas tão vulnerável. Ele podia fazer a ela o que quisesse. Colou a boca em seu ouvido e sussurrou gentilmente.
- A vida é uma t
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