Sereníssima
Capítulo 15
Sereníssima
Maeve voltou do passeio pelas escarpas à beira-mar com novo ânimo. O vento frio e úmido lhe havia insuflado um vigor desejado e necessário, especialmente agora.
Ficou um momento a admirar o castelo que pertencera à família de Edward por uma centena de anos e percebeu que já não lamentava os dias nem compartilhava dos lamentos das damas mudas que arrastavam suas vestes diáfanas e suas vidas esquecidas pelos corredores de pedra. Havia uma maravilhosa razão para viver, mesmo que fosse naquele lugar tão afastado do mundo.
Não voltara a Hogwarts desde que de lá partira nem estivera em contato com os amigos a não ser com Helga, quando esta esteve em casa a tomar providências quanto a Nessie. Maeve achou que a amiga estava, embora agitada, bastante bem e cheia de planos. Trouxe-lhe novidades da escola e presentes de Rowena, de quem sentia saudades. Contou-lhe da cerimônia de seleção dos alunos novos e do improviso de Godric ao escolher seu chapéu como selecionador, no que Maeve achou muita graça. Lembrou-se de uma conversa que tiveram, Godric e ela, em Godric’s Hollow, um pequeno chalé que Godric mantinha em sua área de caça. Acolhedor mesmo que simples, tinha um muro de pedras baixo, ao estilo daqueles que se usava na Irlanda, acercado de um pomar. Naquela tarde, as árvores frutíferas estavam cheias de pássaros que se deliciavam com os pomos maduros e cantavam. Uma brisa suave soprava e a lareira estava acesa. Godric falara dos planos e de todas as conversas que tivera com Merlin sobre a escola, afirmando ainda não ter resolvido por que meios fariam a seleção. Não estava seguro de que a divisão dos alunos por casas, conforme seus fundadores, fosse uma solução ideal, e muito menos que critério selecionador seria esse. Maeve o ouvia embora não prestasse atenção inteiramente, pois se lembrava de ter amado um dia aquele homem, com sua postura ereta e digna, o coração sonhador, a coragem de um leão e que, sentado junto ao fogo, distraidamente rolava o chapéu de caça de uma mão à outra. Brincando, Maeve disse-lhe:
– Deixe que seu chapéu decida!
Agora, entraria no seu castelo e buscaria seus aposentos, onde o sonho estava concretizado. Quando Maeve deixara sua família e o lar de seus antepassados, decidira-se por seguir uma trilha percorrida por poucas bruxas. Apenas Morgana conhecia profundamente o significado de ser uma bruxa no mundo trouxa e isso não era alentador. Os ressentimentos de Morgana a haviam secado por dentro; pelo amor frustrado por Arthur e por Lancelot, nada lhe restara senão se voltar para as artes negras, o lado escuro da deusa, que não se negara a destruir tudo pelo que Merlin lutara. Não, nem mesmo a ele, o mago maior de seu tempo, a mão da deusa no mundo dos mortais. Morgana jamais o perdoou pelo abandono em Tintagel, onde seus dias cinzentos consumiram-lhe a beleza e o frescor, e onde, impotente, observou seus sonhos murcharem à vista do oceano infinito que tinha diante de si, entregue às saudades eternas de seu lar em Avalon.
Morgana retornara, finalmente, para a ilha quando ela fechou-se em definitivo ao mundo dos homens, guardando os segredos da deusa dentro de si como uma mãe possessiva guarda em seu ventre um filho sempre tardio. Com a ilha, as fadas da floresta afastaram-se da realidade, tornando-se inacessíveis, de onde brotariam agora apenas em sonhos, com suas asas de musselina fina e faces inescrutáveis, a soprar uma palavra perfeita nos olhos sonolentos dos mortais.
Maeve tinha sangue de fada, se é que se pode chamar dessa forma a doçura e a ilusão de existir. Trazia consigo essa marca indelével nos verdes olhos, intensos e distantes, sempre a recordar uma memória esquecida, mal delineada, que aflora sem mostrar-se. Seu marido caíra de amores por seus olhos e nunca lhe negara nada. Nem quando a buscou em Hogwarts, destruído pela dor do que temia fosse o abandono por Maeve, sequer chegou a recriminar-lhe o comportamento. Edward a amava e Maeve, por fim, chegou a conclusão que não fizera a escolha errada. Podia construir seus dias alegres ali mesmo, em Castlegregory, cercada por penhascos e colinas, bosques e imenso mar, histórias de feitos heróicos em canções noturnas, longe da confusão do mundo e da história que chegava ao fim.
No berço junto à janela, Maeve encontrou adormecida a razão maior de sua felicidade e ela estava feliz. Entre as cobertas alvas, rosto rosado e tez tranqüila, repousava sua filha. Não duvidou que escolhera o nome apropriado pois era como uma flor belíssima que brotara na palidez dos dias, enchendo seu coração como uma taça de hidromel compartilhada com a vida. Serena, Lilly sonhava, ouvindo palavras perfeitas sopradas pelas fadas de quem herdara a doçura e a cor dos olhos.
FIM
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