cap3



Passaram o dia em casa da Ana a conversar sobre a escola e os amigos, o tempo que passaram juntos, as brincadeiras, relembrando os bons momentos.

Quando repararam era tarde, por volta das dez, resolveram então ir para casa para não preocupar os pais de Tiago.

Abriram a porta, a casa estava às escuras e provavelmente os pais dele já tinham ido deitar-se. Pé ante pé subira as escadas e cada um desejou boa noite, logo a seguir entrando no quarto.

***

Tinham passado dois dias, os dias ali passavam rápido e eles divertiam-se muito enquanto estavam todos juntos, tanto que Lily acabou por se esquecer completamente do sonho que tivera.

Era de noite e enquanto todos dormiam, Lily sonhava…

“O lugar era frio e húmido, o vento acariciava-lhe os cabelos, mas ela olhava à volta e não havia vento. Escuridão era tudo o que via, vazio. Sentia frio, o seu corpo estava gelado e ela não conseguia pensar. Onde estava afinal?

Andou às cegas sem saber para onde, andou, andou, mas não havia nada. Alguma coisa brilhou à sua direita. Ela estendeu a mão para aquele pontinho luminoso e agarrou-o. Era um pirilampo. Do nada, mais pirilampos apareceram e iluminaram o local.

Um salão amplo e circular iluminado pela luz da lua, completamente envidraçado.

Uma rapariga de cabelos pretos compridos e olhos verdes entrou a correr no salão, o vestido branco e rodado completamente molhado, descalça e com a respiração acelerada.

Atravessou o salão passando por Lily como se ela não existisse e quando estava a abrir uma porta para passar para outro quarto, parou com a mão na maçaneta enquanto ouvia passos aproximarem-se.

Um homem entrou na sala, o corpo escondido por uma capa negra. Os passos ecoaram no chão de mármore como tambores num funeral. A rapariga virou-se para ele, ciente de que não havia por onde escapar, escorregou até ao chão e baixou a cabeça, deixou-se ficar ali encolhida, à espera.

O homem sorriu por detrás do capuz, um sorriso cruel. Andou até a rapariga e apontou-lhe a varinha.

-Para quê fugir afinal?

A rapariga continuou em silêncio.

-Não vais dizer nada? Por exemplo…quem são os guardioes?

Ela levantou a cabeça e fitou os olhos verdes tristes nos pretos frios do homem.

- Há certas coisas, Riddle, certos segredos que as pessoas levam para o túmulo quando morrem. – e sorriu triunfante ao ver o olhar de raiva do outro.

-Para quê tanto sacrifício, eu até te pouparia a vida… se me contasses.

Ela sorriu – o meu serviço aqui, está acabado.

-É uma pena porque és muito poderosa, desperdiçaste o teu poder com essa estúpida ideia de ajudar toda a gente.

-Eu fui a escolhida, eu sou a escolhida, os gardioes ficarão bem pois eu sei que vou estar sempre com eles se assim precisarem, só tem que chamar.

Os olhos dele arregalaram-se de ódio e pegando nela pelos cabelos fê-la atravessar a porta e a seguir largou-a.

Árvores, apenas árvores e um lago iluminado pela lua. Era o lugar mais calmo que vira em toda a sua vida, apenas incomodado pelo vento agora visível, que soprava sem parar.

O homem abaixou-se e agarrou-a pelo pescoço, fazendo-a olha-lo nos olhos.

-Olha bem para isto. Vês? Pois então, olha bem porque será a última vez.

Pegou na varinha e apontou-a para ela. Lily ao ver a morte tão próxima da rapariga, gritou. Um grito agudo. Não a conhecia mas sabia ter que protegê-la, posicionou-se à frente dela como que por instinto e olhou o homem de olhos frios à sua frente.

Estava pronta para morrer no lugar da jovem de 20 anos, não tinha medo.

Mas nada do que ela pensou ser a sua morte aconteceu. ela ouviu-o pronunciar as palavras cruciais e fechou os olhos pronta para apanhar o feitiço, mas este apenas passou por ela, atravessou-a.

Abriu os olhos. A rapariga jazia morta, deitada sobre a terra húmida, os olhos fechados, nos lábios um sorriso calmo, parecia estar a dormir mas não, ela estava…morta.

Uma chuva fina começou a cair do céu e o vento soprou fortemente. Nuvens carregadas posicionaram-se sobre o corpo dela, a lua brilhou mais forte, as árvores abanaram ao sabor do vento. Pareciam estar tristes com a morte dela. O mundo parecia chorar a morte dela, ela parecia ser importante.

Lily olhou aquela cena paralisada pelo terror. Tentou tocar na rapariga mas a sua mão atravessou-lhe o corpo como uma imagem. Virou-se e deu de caras com o homem, então tudo começou a girar e caiu.

Sentou-se, estava sentada na relva em frente ao lago, o mesmo lugar onde a vira morrer.

Sentiu alguém sentar-se ao seu lado, olhou. Conhecia-a, a rapariga do seu sonho, observou-a. Os olhos eram tão verdes como os seus, o mesmo formato.

-Quem és? – Acabou por perguntar

-Alguém, isso não importa muito – a voz era tão calma…

-mas… es acabei de te ver…

-Era uma lembrança.

-Uma lembrança tua?

-Sim.

-Afinal quem és tu? É a segunda vez que apareces nos meus sonhos.

-Isso não interessa, o que tu tens que saber é que daqui para a frente tu és a deusa da visão e é tua obrigação encontrares os outros guardiões. Não te esqueças: os teus sonhos são importantes, acredita neles.

-Como é que vou voltar a ver-te?

-sonha…

-Mas…como é que te chamas?

-Um dia saberás…– e então começou a cair, ainda ouvindo a voz da rapariga como eco.

Acordou a suar, levantou-se e foi até à janela. Abriu-a e um ar quente abraçou-a acentuando ainda mais a sensação de frio e solidão. Sabia que aqueles sonhos eram importantes, importantes por alguma razão que ela desconhecia, mas não podia deixar de se sentir extremamente mal disposta com eles. Eles incomodavam-na, eram mortes e lembranças e depois o segredo a que ela sabia pertencer mas não sabia qual era.

Precisava falar com alguém, precisava de contar o que se passava a alguém. Mas quem?

Quando deu conta já tinha aberto a porta do quarto dele e entrado. “Será que devo?” Tiago dormia tranquilo, os lençóis todos para trás devido ao calor, mas se estava calor porque é que ela estava toda encolhida? Olhou-o, era injusto incomoda-lo com os seus sonhos…principalmente sonhos sem sentido, mas ainda havia aquele homem com quem sonhara e ele morrera, era tudo confuso demais.

Deu meia volta decidida a sair do quarto.

-Lily?

Virou-se, ele tinha acordado “que desculpa vou dar para estar a meio da noite no quarto dele?”

-Sim?

-Passa-se alguma coisa?

-Não – mentiu descaradamente

-Então o que estas aqui a fazer?

-Nada - “Isto não está a soar nada convincente”

Ele levantou-se e andou até ela. Olhou-a.

-Porque não te sentas e me contas o que se passa?

Ela sentou-se na cama dele e olhou com pena “coitado está cheio de sono”, pensou enquanto o via esfregar os olhos.

-Entao? O que se passa?

Foi nesse momento que percebeu que não queria que o seu melhor amigo estivesse envolvido, preferia ter certeza do que se passava antes de lhe contar.

- Não posso dizer…

- Nem para mim?

Ela sorriu.

-Não dá

-Ok não faz mal, só não quero que fiques triste, olha queres passar a noite aqui?

Ela encostou a cabeça no peito dele e enroscou-se nos seus braços pedindo-lhe conforto, o conforto que ansiara a noite toda e que agora conseguira. Sentiu os braços dele enlaçarem-na e a mão acariciar-lhe os cabelos ruivos, olhou para a lua...lua cheia.


***

Entrou e fechou a porta…estava quase na hora. Sentou-se na cadeira, já meio partida, olhou para a parede já meio descascada e para o sofá meio ruído. A janela à sua frente com fortes grades de ferro completava o cenário.

A lua antes atrás de uma nuvem começou a aparecer devagar para acentuar ainda mais a dor do lobisomem, para aumentar a ansiedade de que tudo passasse. Suspirou tristemente quando viu uma parte da lua entre as grades e logo a seguir cerrou os punhos com força na cadeira.

Estava na hora, tinha chegado o momento mais uma vez. A lua iluminou completamente o pequeno sótão e o rapaz de cabelos castanhos-claros encarou a sua inimiga, enojado com o brilho que dela emanava. Então, sem aviso a mudança começou.

Os músculos do seu corpo começaram a aumentar rasgando as roupas e as unhas tornaram-se garras, os seus dentes aumentaram e ficaram presas e a pele branca estava agora coberta por pelo castanho. Os seus olhos de um tom normalmente azul estavam agora negros cor das trevas e sem pupila. O coração abandonou-o quando a amizade e o amor foram substituídos por sentimentos como a angustia e a raiva.

O último pensamento que teve foi para os seus amigos, que sabia estarem em casa a pensar nele, depois tudo deixou de existir para ele. Já não raciocinava, não distinguia o bem do mal, o certo do errado. Era um monstro agora… um monstro que sabia ter que ser para sempre. Um uivo quebrou o silencio instalado pela transformação da fera…mais uma noite tinha começado.


Era de manha quando acordou. O sol brilhava lá fora por entre as grades. Tentou mexer-se mas desistiu, no chão uma possa de sangue. Arranhões cobriam-no por todo o corpo, arranhões feitos por ele, pela vontade selvagem de querer sair dali e voar à luz da lua enquanto procurava sangue e carne fresca. Arrastou-se até à porta, tentou abri-la mas como sempre estava trancada, então esperou.

Passado uma hora o seu pai abriu a porta do sótão e pegou no filho de catorze anos que estava meio debilitado e levou-o para o quarto. Curou-lhe as feridas sem dizer nada, não havia palavras de consolo para aquilo.

-pai sabe por acaso que dia é hoje?

O pai olhou-o, sabia muito bem que dia era aquele. Quatro anos, tinham feito quatro anos. Maldito dia.

-sei sim

-desculpe – ele disse sem se conter

-não tens do que pedir desculpa

O pai olhou o rapaz. Era mágoa no olhar dele, aquilo que vira? Era sim. Era tristeza e magoa, era saber que magoara alguém que gostava muito e tristeza por tê-la perdido. E ele sabia, o filho sofria em silencio, sozinho.

-Não queres vir comer qualquer coisa?

-Não eu vou ficar aqui mais um tempo.

O pai fechou-lhe a porta do quarto e ele ficou lá, deitado na cama apenas a olhar o teto e a pensar nela… nos seus olhos extremamente azuis, no cabelo castanho e ondulado. Tinha-a perdido, perdido para aquilo que era a morte, aquilo que ainda não percebia. Tantas vezes sonhara com ela, lembrara-se de quando era ainda uma criança e ela sempre brincava com ele. Queria tê-la ao seu lado outra vez. Sentia a sua falta, sentia falta do seu sorriso.

Foi numa noite fria, de lua cheia que tudo aconteceu, que a sua vida tinha virado um inferno, o único momento em que se lembrava de como ser lobisomem. Mais tarde chegou à conclusão que quando um lobisomem mata, ele lembra-se de quem matou, como matou, como forma de castigo por parte dos deuses por ser o que é.

Ele lembrava-se, lembrava-se da parte mais horrível da sua vida. Ele tinha visto, tinha sido ele. Ainda sentia o sangue dela na sua boca, o corpo preso sobre a sua mandíbula. Lembrava-se do olhar dela ao ser surpreendida pela besta, ele tinha-a morto, acabado com a vida dela…para sempre.

E agora ela não estava mais ali…a sua mãe à cinco anos que não a via, sentia falta dela. Aos poucos começou a ver aquilo como um pesadelo e tentado esquecer. Mas sempre, a cada ano que passava, no dia em que a tinha morto ele chorava por ela, ainda derramava lágrimas pela pessoa especial que ela era, pela falta que ela fazia.


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